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Martim Lutero, fundador da
tradição protestante: evangélicos são 15,4% da população brasileira hoje

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Revista USP, número 67, dossiê Religiosidade no Brasil, publicação da Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da USP (telefone 11 3091-4403), 330 páginas.


As várias religiões em atividade no Brasil atualmente: caldeirão de crenças

O mapa religioso do Brasil mudou nos últimos 25 anos. O número de católicos, que em 1980 representava mais de 90% da população brasileira, chega hoje a 125 milhões de pessoas, o equivalente a 73,8% dos brasileiros, segundo o Censo de 2000. Já os evangélicos, em que se incluem as igrejas pentecostais e as denominações ditas “históricas” ou “tradicionais” (luterana, presbiteriana, metodista e batista, entre outras), ganharam fiéis e agora registram índice de 15,4% da população. O Censo detectou também o aumento do contingente dos que se dizem “sem religião”, que são 7,3%. O restante da população – uma fatia de 3,5% – é disputado por uma variada série de religiões e credos, como judaísmo, islamismo, espiritismo, budismo, anglicanismo, ortodoxia e xamanismo, além dos rituais praticados nas reservas indígenas.

Investigar essa diversidade religiosa é o objetivo da edição número 67 da Revista USP – recém-lançada pela Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da USP –, que traz o dossiê Religiosidade no Brasil. Com 330 páginas, a revista apresenta 17 ensaios sobre o tema, escritos por especialistas de várias universidades do Brasil. As diferentes faces do catolicismo, as características do protestantismo nacional, as origens do pentecostalismo brasileiro e os movimentos messiânicos na história do Brasil estão entre os temas analisados. “Foi pensando nesse cadinho, ou caldeirão, de crenças que publicamos este dossiê”, escreve no editorial o jornalista Francisco Costa, editor da Revista USP. “Já é lugar-comum dizer que o Brasil é um país religioso e predominantemente católico apostólico romano. Mas o que dizer do restante significativo da população? Qual é a sua fé? Como ela se dá e onde?” Além do dossiê, a Revista USP traz ainda uma seção com seis ensaios sobre Dom Quixote, para marcar os 400 anos da publicação da obra máxima de Miguel de Cervantes.

Faces do catolicismo

Ainda predominante no Brasil, o catolicismo não é uma religião homogênea, mas apresenta nuances que revelam diferentes “estilos culturais de ser católico”. É o que diz o professor Faustino Teixeira, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Segundo ele, a religião liderada pelo papa Bento 16 se expressa através de pelo menos quatro formas distintas: há um catolicismo “santorial”, um catolicismo “erudito ou oficial”, um catolicismo dos “reafiliados” e um emergencial catolicismo “midiático”.

Uma das formas religiosas mais tradicionais do Brasil, o catolicismo santorial está presente no País desde o período da colonização, escreve Teixeira. Tem como principal característica o culto aos santos. “O catolicismo brasileiro foi, durante muito tempo, um catolicismo de muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”, define o professor. “Os santos sempre ocuparam um lugar de destaque na vida do povo, manifestando a presença de um ‘poder’ especial e sobre-humano, que penetra nos diversos espaços de vida e favorece, numa estreita aproximação e familiaridade com seus devotos, a proteção diante das incertezas da vida.”


O catolicismo oficial

Aquele que difunde os valores religiosos instituídos – vive um momento de crise e declínio, segundo Teixeira. Citando outros pesquisadores da religião, o professor destaca que, nas sociedades contemporâneas, os indivíduos tendem a se “desencaixar” de seus antigos laços, desencadeando um processo de desfiliação institucional. Nesse processo, os vínculos sociais, culturais e religiosos se tornam opcionais e de fraca consistência. “Os últimos censos realizados no Brasil revelam claramente esse enfraquecimento ou mesmo declínio da figura do praticante católico”, nota Teixeira.

A terceira expressão do catolicismo brasileiro – o catolicismo de reafiliados –, segundo Teixeira, se refere aos fiéis que redescobrem a identidade religiosa até então vivenciada superficialmente e sentem, então, uma experiência de intensa religiosidade. Exemplo dessa expressão é a Renovação Carismática Católica (RCC). “A RCC é vista positivamente como um instrumento importante na estratégia de recatolização em curso, mas simultaneamente se torna motivo de controvérsia em razão de sua dinâmica autonomista, que pode significar uma ameaça ao modelo vigente de catolicismo clerical”, observa Teixeira. “Em razão dessa ambivalência, a instituição oficial católica oscila entre o incentivo e o temor.”

Relacionado à atuação da RCC no Brasil está o que Teixeira chama de catolicismo midiático. Através dos meios de comunicação, que soube utilizar de forma até então inédita entre os católicos, a RCC marcou uma nova atuação pública na sociedade brasileira. “Esses meios de comunicação foram também os instrumentos privilegiados que ela encontrou para fazer frente ao progressivo processo de ‘destradicionalização’ em curso na sociedade brasileira e apostar na reinstitucionalização católica.” O padre Marcelo Rossi – presença constante na televisão –, o padre Jonas Abib e o padre Antônio Maria são exemplos do sucesso do catolicismo midiático, segundo Teixeira. “Tudo isso é surpreendente”, conclui o professor, lembrando que o catolicismo pode ser visto como “uma religião que envolve muitas religiões”.

Novas teologias

No artigo “O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas”, o professor Antonio Gouvêa Mendonça, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, reconstitui a história do protestantismo brasileiro desde suas origens, nas primeiras décadas do século 19. Para ele, os anos que vão de 1824 a 1916 representam o “período de implantação” da religião em terras brasileiras, iniciado quando anglicanos ingleses passaram a realizar cultos num templo construído no Rio de Janeiro. “Assim considerados, os ingleses anglicanos constituem o primeiro grupo do chamado protestantismo de imigração”, afirma Mendonça, ressalvando que os próprios anglicanos não se consideram protestantes. Outro grupo importante – acrescenta o professor – é o composto pelos chamados “confederados” norte-americanos, que se estabeleceram principalmente em Santa Bárbara D‘Oeste (SP) logo após a guerra civil nos Estados Unidos (1861-1865). “Esses imigrantes eram compostos por protestantes de praticamente todas as denominações norte-americanas. Fundaram a cidade de Americana e construíram sua igreja comum”, diz Mendonça. “Embora eles mesmos não objetivassem a propagação de sua fé religiosa, de modo indireto contribuíram para isso, principalmente porque provocaram a vinda de pastores para atendê-los, que acabaram, alguns, por exercer atividade missionária entre brasileiros.”

Mendonça destaca outras etapas da presença protestante no Brasil. Ele cita, por exemplo, a década de 1950, quando entraram no País novas idéias teológicas. Até então, diz o professor, o ensino de teologia nos seminários era uma prática repetitiva baseada em manuais clássicos, como a Teologia sistemática de Berkhof. Em 1952, o missionário norte-americano Richard Shaull (1919-2002) chegou ao Brasil para atuar como professor no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas (SP). “Shaull introduziu seus alunos no mundo então desconhecido da teologia européia, pensamento produzido no turbilhão da guerra e do pós-guerra”, escreve Mendonça.

Um dos teólogos divulgados por Shaull foi Karl Barth (1886-1968). Conhecida como “teologia dialética” ou “teologia da Palavra de Deus”, a obra de Barth apontava para a ação contínua de Deus na história e com a qual o homem deveria colaborar. “A leitura de Barth, notável por sua oposição ao nazismo, representava, no pós-guerra, um apelo aos cristãos para que superassem o conformismo e avançassem na direção da construção de um mundo justo”, acrescenta Mendonça. “Além de levar a chamada teologia moderna para o ambiente em que atuava, ele mesmo passou a pôr em prática uma teologia da ação e no estilo aberto e ecumênico. Essa postura foi logo vista como uma crítica e um desafio às igrejas para que saíssem da inércia e do conformismo e tomassem parte e responsabilidade diante de um mundo em mudança. Passou a ser incômodo.”

O incômodo trazido por Shaull ao protestantismo conservador não foi maior do que uma inovação promovida pela Igreja Evangélica Brasileira (IEB), fundada em 1879 por Miguel Vieira Ferreira. Num meio religioso que defende com unhas e dentes o princípio calvinista sola Scriptura – só a Bíblia (o Velho e o Novo Testamentos) é regra de fé e prática para os cristãos –, a IEB elaborou um Novíssimo Testamento ou Testamento Eterno (NTTE). Trata-se de uma obra em 12 volumes que traz pregações, discursos e revelações do fundador da igreja e dos dois pastores que o sucederam à frente do rebanho. “Se levarmos em consideração que se trata de uma igreja de raízes protestantes, a questão do surgimento de um outro livro sagrado é muito provavelmente inédita na América Latina”, afirma o professor Paulo Barrera Rivera, da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), autor do artigo “A reinvenção de uma tradição no protestantismo brasileiro: a Igreja Evangélica Brasileira dentre a Bíblia e a Palavra de Deus”, também publicado na Revista USP. “A leitura da Bíblia, nos cultos da IEB, ocupa sempre menos tempo e atenção do que a do NTTE. As pregações são, regra geral, comentários de parágrafos do NTTE. Na Escola Dominical também o NTTE é o texto de consulta e de estudo por parte dos mestres encarregados do ensino.”

Os artigos da nova edição da Revista USP não se limitam a falar de católicos e protestantes. O espiritismo brasileiro, por exemplo, é discutido pela professora Sandra Jacqueline Stoll, da Universidade Federal do Paraná, no ensaio “O espiritismo na encruzilhada: mediunidade com fins lucrativos?”; a professora Marta Topel, da USP, assina “Judaísmo(s) brasileiro(s): uma incursão antropológica”; e o professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, da Universidade Federal Fluminense, discute “Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil”. “Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais”, “Aspectos dos vários ‘budismos’ no Brasil”, “Novas religiões japonesas e sua inserção no Brasil” e “A Igreja Ortodoxa no Brasil” são outros textos publicados na revista.

Quixote revisitado

Além dos artigos acerca da religiosidade no Brasil, o número 67 da Revista USP traz ainda uma série de seis artigos que homenageiam aquele que talvez seja o mais importante e comentado personagem da literatura universal: Dom Quixote. Aproveitando ainda as comemorações do quarto centenário da publicação do romance de Miguel de Cervantes, os autores Santiago López Navia, da Universidade S.E.K. de Segóvia (Espanha), Gustavo Illades, do México, José Ángel Ascunce Arrieta, da Universidade de San Sebastián, na Espanha, Maria Augusta da Costa Vieira, da USP, Cory Reed, da Universidade do Texas, e Pedro Garcez Ghirardi, também da USP, vão fundo em um ato que vem fustigando especialistas há muito tempo: compreender e explicar a gênese do Quixote, analisando a fundo o personagem de riquíssima
e triste figura.

Desde Vladimir Nabokov a Jorge Luis Borges e Ortega y Gasset, entre tantos outros, muito se tem escrito a respeito de Dom Quixote de La Mancha. E muito ainda se tem a escrever, posto que o fidalgo espanhol, devorador de livros e que enlouqueceu justamente por acreditar em tudo o que havia lido – como apontou certa vez George Bernard Shaw –, representa um mundo com muitas latitudes ainda a serem descobertas. Entre essas novas descobertas estão justamente as publicadas na Revista USP, como o artigo de López Navia, no qual o professor espanhol trata de falar sobre as chaves da metaficção em Dom Quixote. “É possível determinar com clareza seis formas de estudar a ficção autorial no Quixote: explicar a origem e o significado do nome do falso autor, decifrar possíveis chaves contidas no nome, identificar as pessoas reais às que pode aludir, rastrear as fontes nas quais Cervantes pôde encontrar a inspiração necessária para desenvolver o recurso, entender as funções de seu funcionamento dentro do texto e examinar sua possível interpretação sócio-histórica e sociocultural”, escreve López Navia.

Já Illades prefere caminhar na direção da demência quixotesca, analisando como a loucura de Dom Quixote pode ser um “exemplo extremo do modo de ser das personagens cervantinas e, talvez, dos espanhóis do século 17”, uma época, segundo o autor, “singular”, quando cultura católica e estética barroca se fundiam. Por outro lado, Ascunce Arrieta analisa a figura de Cide Hamete Benengeli, o “primeiro autor”, que surge no romance de Cervantes em seu capítulo nove, enquanto Maria Augusta Vieira acaba por fazer uma fusão de estudos combinando elementos tanto do tema de Illades – a loucura – quanto de Arrieta – Benengeli –, tratando de como ambos os temas se complementam e são, na verdade, fundamentais na compreensão do universo quixotesco.

O professor americano Cory Reed parte para uma outra visão: aquela que alia tecnologia e ciência à ação do Quixote, associando os moinhos de vento combatidos pelo fidalgo e as asas mecânicas com a evolução tanto literária quanto científica que ocorreu na Europa à época do “nascimento” de Dom Quixote. Finalizando os artigos em homenagem ao personagem de Cervantes, Ghirardi, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, une ao Quixote um personagem essencial dos romances de cavalaria, o Orlando Furioso, de Ariosto, com este sendo, muitas vezes, inspiração daquele.

Como já foi dito, muito já se escreveu a respeito de Dom Quixote e ainda muito se escreverá sobre ele. Mas estes seis ensaios da Revista USP emprestam uma nova luminosidade ao personagem e a seu autor, deslindando um pouco mais o intricado labirinto literário que Cervantes criou há quatro séculos e com o qual parece se divertir até hoje.
(M. R.)

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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