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Sete Conferências sobre Tomás de Aquino, de Jean Lauand, Editora da Escola Superior de Direito Constitucional, 148 páginas, R$ 20,00

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Deve-se conferir aos primeiros monges cristãos – a começar dos pioneiros Santo Antão e São Pacômio, no século 4 – o crédito de ter feito as mais profundas descobertas sobre a alma. Em seu objetivo de se isolar no deserto por dezenas de anos, e assim forçar a alma a retornar a seu estado de pureza original, como se encontrava antes de o pecado corrompê-la, eles experimentaram sentimentos e emoções que revelaram traços ocultos da psicologia humana. Mais tarde, homens como João Cassiano e São Gregório Magno investigaram essas experiências e relacionaram os sete principais vícios a que a alma está suscetível – o que ficou conhecido como “os sete pecados capitais”, assim chamados porque cada um deles tem a capacidade de atrair consigo “uma multidão” de outros pecados. Esses vícios são: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia.

Ao contrário dos outros vícios bem conhecidos – ninguém tem dúvidas sobre o que é inveja ou gula, por exemplo –, a acídia atravessou os séculos praticamente ignorada. Após a Revolução Industrial, no século 18, ela chegou até mesmo a ser mal traduzida por “preguiça”, possivelmente numa tentativa de condenar a indolência e evitar a queda de produção dos operários nas fábricas européias. Agora, o medievalista Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da USP, mostra para o mundo contemporâneo o significado desse vício, tema do ensaio “O pecado capital da acídia na análise de Tomás de Aquino”, publicado no livro Sete Conferências sobre Tomás de Aquino, recentemente lançado pela Editora da Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).

Tristeza e alegria – Segundo Lauand, acídia é um estado da alma decorrente da contemplação de si mesmo e do mundo. Abandonada à reflexão profunda, a alma indaga sobre o sentido das coisas, do ser e da existência. Tal consciência é algo tão terrível que o ser humano tende, até inconscientemente, a fugir dela. Para Lauand, é a isso que se refere o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662), quando afirma, em seus Pensamentos, que o homem não consegue ficar a sós consigo mesmo num quarto. Ao contrário, as pessoas se agitam, tratam de arrumar várias atividades a fim de se manter ocupadas, buscam a variedade, fazem guerras, promovem revoluções – tudo para não pensar em si mesmas e em sua condição.

A profunda contemplação de si mesmo pode levar o indivíduo a duas situações opostas, segundo Lauand. Uma delas é um estado de grande euforia e arrebatador entusiasmo. Isso porque, ao analisar as coisas ao redor, a alma chega à conclusão de que o mundo – criado por Deus, que é o perfeito Bem e só pode dar origem a coisas boas – é maravilhoso demais. O Universo infinito, os astros cintilantes, a água cristalina, a delicada flor, os olhos de uma criança, o amor de Deus: tudo é indescritível e extraordinariamente belo, e a consciência disso produz uma alegria igualmente indizível.
Entretanto, conhecer-se profundamente provoca outra situação – o desespero. O homem se vê só, destituído de tudo o que possa disfarçar sua condição, um ser insignificante diante do mundo infinito, sem saber de onde veio, para que veio e para onde vai. O resultado é a tristeza, a depressão, a inatividade, a angústia. “Isso acontece porque, como ensina Tomás de Aquino, o homem, como criatura de Deus, procede do nada, Deus o criou do nada”, explica Lauand. “Em si ele é treva. Só é luz na medida em que participa do ser de Deus.” Dada essa capacidade de fazer a alma transitar da euforia à depressão, Lauand acredita que a acídia pode ser uma das causas do transtorno bipolar, o mal que leva a variações bruscas do estado de humor do indivíduo.

Garota de Ipanema – Em seu ensaio, Lauand mostra vários exemplos – extraídos da literatura, da poesia e da filosofia – de que a acídia é uma realidade bem presente na vida e no coração do ser humano. Um desses exemplos é a música Garota de Ipanema, composta em 1962 por Tom Jobim e Vinícius de Moraes. A composição dessa obra está marcada pela acídia, segundo o professor. Primeiro, os autores ficam extasiados diante da beleza da mulher:

Olha, que coisa mais linda
Mais cheia de graça (...)
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Logo depois, abruptamente, a letra deixa de exaltar a beleza das coisas para expressar solidão e tristeza:
Ah, por que estou tão sozinho
Ah, por que tudo é tão triste
E, num terceiro momento, volta a refletir uma alegria esfuziante:
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo sorrindo se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
O mesmo tédio típico da acídia foi captado pela sensibilidade de Carlos Drummond de Andrade, no poema Cidadezinha qualquer:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

Na inércia ou na atividade, o homem não consegue fugir do desconforto de si mesmo, diz Lauand, citando o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, que afirma: “Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim”.

Tomás de Aquino – lembra Lauand – considera que o oposto da acídia é o dom da fortaleza, ou seja, o esforço por não se deixar dominar por essa acidez da alma. Além de desenvolver tal dom, acrescenta Aquino, o homem deve meditar nos “bens espirituais” e, com isso, participar do ser de Deus, onde ele encontra a verdadeira felicidade. “É certo que a felicidade definitiva do homem reside na posse de Deus pela contemplação, pelo olhar de amor, mas, para Aquino, essa felicidade não é algo ‘transferido’ para depois da morte”, comenta Lauand. “É, sim, algo que irrompe, que já se inicia nesta vida, pela fruição do bem de Deus nos bens do mundo.”
Segundo Lauand, a acídia passa despercebida para a imensa maioria dos homens – que sente seus efeitos mas não a conhece (mesmo porque a palavra acídia, que dá acesso a essa realidade, praticamente saiu do vocabulário das pessoas). O ensaio do professor pode ajudar o ser humano a descobrir mais sobre si mesmo.

 


“O homem é um ser que esquece”

Além do ensaio sobre a acídia, o novo livro do professor Jean Lauand, Sete Conferências sobre Tomás de Aquino, traz outros instigantes artigos. Um deles é “A unidade da idéia de homem em diferentes culturas”. Nele, o professor mostra que diferentes obras da humanidade – dos textos sagrados do cristianismo e do islamismo até a mitologia grega e a música popular – revelam as mesmas características do ser humano, hoje ignoradas.

Uma dessas características é que o homem é “um ser que esquece”. Não se trata de esquecer de pagar o aluguel – brinca Lauand –, mas sim de ignorar as dimensões mais profundas do seu ser, como o fato de que ele é uma criação de Deus. Como tal, é uma criatura destinada à “última potência”, a realizar plenamente tudo aquilo para o que é chamado a ser.

Não foi à toa que os deuses, reunidos no Olimpo para ver as obras de Zeus, disseram ao soberano supremo da religião grega: “É tudo muito bonito, mas estão faltando criaturas que louvem e reconheçam a grandeza divina deste mundo”, pois o homem é um ser que esquece, escreve Lauand, parafraseando o poeta grego Píndaro (século 5 antes de Cristo).

No livro do profeta Isaías – um dos textos do Velho Testamento –, Deus garante que jamais se esquecerá do homem, ainda que a mulher (ser que esquece) se esqueça de sua criança de peito (Isaías 49:15). No Alcorão (20, 50-52), Deus se apresenta como “aquele que não esquece”, em contraposição ao homem. E a própria palavra homem em árabe, insan, significa “aquele que esquece”. “Só a partir dessa consciência de que o homem é esquecidiço é que se pode edificar uma educação digna desse nome”, afirma Lauand.

Outros ensaios publicados em Sete Conferências sobre Tomás de Aquino são “Deus ludens – O lúdico no pensamento de Tomás de Aquino e na pedagogia medieval”, “Antropologia e formas cotidianas – A filosofia de Tomás de Aquino e nossa linguagem do dia-a-dia”, “Ciência e Weltanschauung – A álgebra como ciência árabe”, “A filosofia da educação no novo Catecismo Católico” e “Método e linguagem no pensamento de Josef Pieper”.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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