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A linguagem de Guimarães Rosa parece criar uma outra realidade, porque, nela, a palavra ganha uma espécie de transcendência, como se valesse por si mesma. Na obra do escritor mineiro, a palavra é criadora e transcende a matéria narrada. Essa análise é do crítico Antonio Candido de Mello e Souza, professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Segundo Candido, a originalidade de Rosa impediu que os autores posteriores fossem influenciados por ele em sua maneira de escrever, ao contrário de Machado de Assis e Graciliano Ramos. “Estes, de certo modo, trabalharam dentro dos cânones da prosa literária de nossa língua”, diz Candido. “No caso de Guimarães Rosa isso não me parece possível. Não o vejo exercendo influência criadora, porque a sua marca é tão peculiar que transforma a influência em servidão.”

Candido estará na abertura do Seminário Internacional Grande sertão: veredas e Corpo de baile – 50 anos, que o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP realiza nesta semana no Auditório do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (leia texto na página seguinte). Para falar da obra de Guimarães Rosa, Candido recebeu os jornalistas Natalia Engler Prudencio e Paulo Favero, da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, e deu a seguinte entrevista:
Grande sertão: veredas é considerado um marco da literatura brasileira. Em sua opinião, quais são as características que tornam essa obra tão única no panorama literário brasileiro?
Antonio Candido – Antes de mais nada, é preciso mencionar a genialidade do autor, que sentimos mas não somos capazes de definir. Depois vem a sua percepção originalíssima do mundo físico e humano, mas, sobretudo, a extraordinária capacidade de invenção lingüística.

O que significa esse livro na trajetória do autor?
Candido – Penso que, na obra de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas é o ponto mais alto. Ele me disse, uma vez, que eu era injusto com as novelas de Corpo de baile, tão boas, segundo ele, quanto Grande sertão: veredas. Mas continuo achando que este é mesmo a sua obra-prima, superior ao que escreveu antes e ao que escreveu depois.

Em seu ensaio “O homem dos avessos”, o senhor declara que em Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler. O que significa exatamente essa afirmação?
Candido – Se lembro bem (faz meio século), eu queria dizer que Grande sertão: veredas é desses livros inesgotáveis, que podem ser lidos como se fossem uma porção de coisas: romance de aventuras, análise da paixão amorosa, retrato original do sertão brasileiro, invenção de um espaço quase mítico, chamada à realidade, fuga da realidade, reflexão sobre o destino do homem, expressão de angústia metafísica, movimento imponderável de carretilha entre real e fantástico e assim por diante.

A obra de Guimarães Rosa é vista, muitas vezes, como sendo ao mesmo tempo regionalista e universal. Como esse paradoxo pode existir nela?

foto: Cecília Bastos

Antonio Candido: obra de Rosa é um “mergulho profundo na realidade essencial de certo Brasil arcaico e, ao mesmo tempo, no vasto mundo de todos os homens”

Candido – No regionalismo brasileiro predominaram inicialmente o pitoresco e, não raro, o anedótico, numa espécie de exotismo interno. Bem mais tarde houve uma forte injeção de naturalismo radical. Em ambos os casos o mais importante eram os temas, e a linguagem parecia sobretudo veículo. A propósito da maneira personalíssima de Guimarães Rosa, falei há muito tempo em “super-realismo”, porque ele elabora o regional por meio de um experimentalismo que o aproxima do projeto das vanguardas. Nele não há pitoresco ornamental, nem realismo imitativo, nem consciência social e, sobretudo, a dimensão temática é menos importante do que a dimensão lingüística, que parece criar uma outra realidade, porque a palavra ganha uma espécie de transcendência, como se valesse por si mesma. Quer dizer que ele não apenas sugere o real de um modo nada realista, mas elabora estruturas verbais autônomas. Nele a palavra é criadora por si mesma e transcende a matéria narrada. Por isso Grande sertão: veredas transforma o particular da região num universo sem limites, que exprime não apenas o sertanejo, mas o “homem humano”, para falar como Riobaldo. Guimarães Rosa é um caso supremo de certas tendências da ficção latino-americana de vanguarda, que o crítico uruguaio Angel Rama definiu muito bem, ao mostrar que elas realizaram um extraordinário paradoxo: fundir o regionalismo, conservador por natureza, porque ligado ao mundo arcaico, com as linguagens modernistas, plantadas no presente e voltadas para o futuro. A supremacia de Guimarães Rosa nesse processo me foi sugerida por um eminente escritor cubano, Cintio Vitier, que há muitos anos me disse o seguinte em Havana: “Se pusermos num prato da balança toda a produção do boom hispano-americano e no outro prato Grande sertão: veredas, este segundo prato pesará muito mais”.

Na época do lançamento de Grande sertão: veredas os críticos se dividiram entre os que falavam de simples cópia da linguagem popular e os que registravam um preciosismo erudito. Onde se situa a linguagem de Guimarães Rosa?
Candido – Não me lembro dessa divisão de opiniões. Lembro que Grande sertão: veredas foi recebido em geral com apreço e consciência do que significava, salvo gafes de um ou outro crítico, como aquele que o considerou um mero livro regionalista a mais. Na minha lembrança ficaram as posições compreensivas, como a de Cavalcanti Proença, que viu logo o caráter criador da sua linguagem, ao mesmo tempo tradicional e moderna, popular e erudita. Além de assinalar as analogias com temas medievais, Proença registrou a rara capacidade de criação vocabular de Guimarães Rosa, inclusive analisando com muita percepção os seus extraordinários neologismos.

De que forma essa linguagem influenciou escritores e intelectuais das gerações posteriores?
Candido – Faz muitos anos que perdi contacto com a produção literária brasileira do nosso tempo, de modo que não saberia responder especificamente. De modo geral, lembro que escritores como Machado de Assis ou Graciliano Ramos podem influenciar em sentido positivo a maneira de escrever dos mais moços, porque de certo modo trabalharam dentro dos cânones da prosa literária de nossa língua. É possível inspirar-se neles sem perder a personalidade. No caso de Guimarães Rosa, isso não me parece possível. Ele pode ser admirado até o fanatismo, como acontece, mas não o vejo exercendo influência criadora, porque a sua marca é tão peculiar que transforma a influência em servidão. Por isso, em relação à sua prosa talvez só caibam exercícios de imitação consciente e programada, como uma espécie de homenagem, num espírito parecido ao que os franceses chamam “ao modo de”. Lembro, a propósito, que meu irmão Roberto de Mello e Souza publicou duas novelas muito interessantes que são imitações intencionais desse tipo, ambas consistindo em transpor com linguagem roseana narrativas medievais para o interior de Minas Gerais, onde fomos criados: A tisana, transposição da lenda de Tristão e Isolda, e O pão de cará, transposição da “procissão do Gral”, segundo Chrétien de Troyes.

O que é o sertão na obra de Guimarães Rosa?
Candido – Em Grande sertão: veredas é um mergulho profundo na realidade essencial de certo Brasil arcaico e, ao mesmo tempo, no vasto mundo de todos os homens.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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