Renata Sant’Anna era uma
menina de olhos redondos e cabelo bem liso dividido do lado e
preso por uma fita branca. Não gostava de ler, preferia
mesmo era desenhar. Cresceu pintando, ouvindo o pai contar as
histórias de Monteiro Lobato e olhando as imagens dos
inúmeros livros que habitavam a sua casa. Sonhava o tempo
todo. Adorava desenhar na areia das praias da cidade de Santos,
onde nasceu e cresceu. Queria ser artista. Aos 9 anos, foi pintar
na Escola Artelândia e quando cresceu veio para São
Paulo estudar Artes Plásticas na Fundação
Armando Álvares Penteado.
No bairro da Mooca, em São Paulo, uma outra menina de
cabelos cacheados e muito irrequieta esparramava os livros no
chão. Mal sabia falar e fazia de conta que sabia ler.
Contava para a irmã mais nova as histórias que
a mãe lia antes de dormir. Foi assim que Valquíria
Prates aprendeu a olhar atentamente as ilustrações.
Lia as formas e cores. O pai, toda sexta-feira, a presenteava
com uma sacola cheia de novos livros. Um dia seria escritora.
Foi estudar na Escola País das Maravilhas. E quando cresceu
resolveu fazer Letras na Universidade de São Paulo.
A casa onde vive o artista, no sul
da Bahia: sonho de criança |
O tempo passou. As duas foram trabalhar com arte e educação
no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Ficaram amigas.
E hoje estão escrevendo livros de arte para crianças.
Livros como elas gostavam de folhear e que fazem parte de uma
coleção especial da Editora Paulinas. Com muitas
obras, cores e histórias. Neste mês, elas apresentam
Frans Krajcberg, um artista que mora em Nova Viçosa, no
sul da Bahia, e que realizou o sonho de muitas crianças:
a sua casa foi construída no topo de uma árvore,
a 12 metros do chão. E, o mais importante, Krajcberg defende,
através da sua arte, as florestas do Brasil e mostra o
quanto é importante o homem se integrar com a natureza. Uma lição que Renata e Valquíria ensinam
entre pinturas, gravuras e esculturas. Com muita criatividade,
elas incentivam as crianças a observar a natureza por
meio da arte, a imaginar e criar.
A árvore que virou carvão – Frans Krajcberg
denuncia as ações do homem destruindo as florestas.
Usa os restos das queimadas para construir a sua obra, transformando
a arte em um manifesto para defender o ambiente.
O som da madeira crepitando, dos galhos e de árvores
que quebram e caem após os incêndios provocados
pelo homem, deixando para trás milhares de hectares destruídos.
Esse som é o grito de Krajcberg.
Com essa linguagem simples, as autoras mostram a função
social da arte. “Procuramos enfocar a atitude da obra do
artista, na defesa do ambiente”, explicam. Renata e Valquíria
conseguem mostrar para as crianças algo que para os adultos
parece ser muito complicado. Ou seja, o processo criativo e mental
do artista na elaboração de sua arte. Através
das imagens, a criança consegue entender a destruição
da natureza e, ao mesmo tempo, como o artista se utiliza das
cores, texturas e contornos das folhas, pedras e galhos para
fazer as suas obras.
“Vou para a floresta e me sinto tão queimado quanto
as árvores”, diz o artista. Cansado da violência
do homem contra o homem, ele encontrou na natureza sua inspiração,
a possibilidade de viver e trabalhar.
Obras de
Krajcberg: “Vou para
a floresta e
me sinto tão
queimado
quanto as árvores”,
diz o artista, que, cansado
da violência
do homem
contra o
homem,
encontrou
na natureza
sua inspiração
Além de apresentar os trabalhos e o pensamento de Krajcberg,
o livro é acompanhado por um caderno-ateliê, incentivando
a criança a exercer também a criatividade e a perceber
que a arte está no cotidiano, entre as coisas mais simples. “Desenhar é um
exercício de observação, uma maneira de
olharmos com atenção para detalhes que nunca havíamos
notado”, explicam as autoras. “Chegue bem perto de
uma flor ou folha. Olhe atentamente suas partes, cores, texturas
e contornos. Desenhe o que você achou mais interessante.
Imagine como você a veria se ela fosse maior que você.
Como se você pudesse andar sobre suas pétalas e
folhas. Faça outro desenho e o compare com o primeiro.
Em que eles são parecidos ou diferentes? Por quê?”
Renata e Valquíria lembram que Krajcberg recolhe terra,
pedras e galhos e os organiza em novos espaços para construir
seus quadros-objetos. Um exemplo que pode muito bem ser seguido
pela garotada. Ensinam: “Em seu próximo passeio
em um parque, praça ou jardim, recolha galhos, folhas
secas ou outros elementos descartados pela natureza e leve tudo
para sua casa. Para transformá-los em quadros ou placas,
pegue a tampa de uma caixa de sapato ou de pizza e distribua
os objetos coletados, ocupando todo o espaço livre. Experimente
colocá-los de várias maneiras diferentes. Quando
achar que terminou e quiser que os elementos fiquem fixados,
passe bastante cola branca entre eles. Deixe secar por 48 horas
e escolha um local para pendurar seu exercício”.
Até a demorada técnica dos relevos em papel que
o artista cria com tanta originalidade pode ser recriada pelas
crianças. Renata e Valquíria orientam: “Recolha
uma folha seca de árvore ou planta ornamental de sua casa.
Passe sobre ela uma camada fina de vaselina. Prepare numa bacia
uma mistura com dois copos de água e cinco colheres de
cola branca. Corte três folhas de jornal em tiras de 2
centímetros de largura por 30 centímetros de comprimento.
Mergulhe uma tira na mistura da bacia e coloque-a sobre sua folha,
na horizontal, cobrindo-a da esquerda para a direita. Repita
essa ação até cobrir completamente a folha,
colocando algumas tiras na vertical, outras na horizontal e outras
na diagonal, fazendo várias camadas de papel que cubram
a área ao redor da folha também. Deixe secar por
48 horas. Separe cuidadosamente sua folha da superfície
do jornal. Pinte seu relevo com as cores que escolher”.
Como um pássaro – Diante desses
exercícios que também podem ser orientados pela
mãe ou pela professora, as educadoras Valquíria
e Renata acreditam que as crianças não vão
mais esquecer da história e da obra de Frans Krajcberg,
que, segundo o livro, “é como um pássaro
que migra de um local a outro à procura de um lugar para
seu ninho”.
Krajcberg é um dos grandes representantes da arte contemporânea
brasileira e já expôs em várias partes do
mundo. Tem dois ateliês: um em Nova Viçosa, na Bahia,
e outro em Paris, França. Nasceu na Polônia (Kozienice),
em 1921, combateu no exército soviético russo durante
a Segunda Guerra Mundial, quando perdeu toda a sua família.
Foi para a Alemanha e estudou na Escola de Belas Artes de Stuttgart.
Chegou no Brasil em 1948, veio morar em São Paulo, trabalhando
como pedreiro, faxineiro. Até que em 1951 foi trabalhar
na montagem da 1a Bienal de São Paulo e operário
no Museu de Arte Moderna (MAM). O convívio com os artistas
o incentivou a desenvolver paralelamente a sua própria
pintura. Um ano depois, realizou a sua primeira individual no
MAM. Morou em diversas cidades brasileiras, mas desde 1973 está na
Bahia. Vem apresentando os seus trabalhos na defesa da preservação
da Amazônia e do Pantanal em Oslo, Milão, Paris,
Jerusalém e Roma, entre outras metrópoles. |
Ler, ver e criar
Orientar as crianças no aprendizado e convívio
com a arte é a proposta das educadoras Renata Sant’Anna
e Valquíria Prates. Através da coleção
Arte à Primeira Vista, elas pretendem apresentar a obra
e a vida dos artistas contemporâneos brasileiros. O primeiro
livro da série trouxe a história de Lygia Clark.
Agora é a vez de Frans Krajcberg. Os próximos serão:
Leonilson, Iberê Camargo, Anna Bella Geiger e Regina Silveira.
Renata e Valquíria acreditam que esses livros podem colaborar
no ensino da arte nas salas de aulas. Explicam que a falta de recursos
das escolas, o desconhecimento sobre os processos de aprendizagem em
arte na infância e as dificuldades de acesso a instituições
culturais limitam o trabalho dos professores no ensino da arte. “É necessário
levarmos em consideração, também, que muitas escolas
não desenvolvem um trabalho sistemático na área
e não têm como prática levar os alunos às
exposições. Sendo assim, o ensino da arte para crianças é freqüentemente
centrado na aprendizagem de técnicas com materiais didáticos
limitados”, argumentam. “Diante desse panorama, baseadas
em nossa atuação com crianças e professores em museus
e escolas públicas, consideramos que os livros de arte para crianças
são um recurso fundamental no processo de aprendizagem da arte.
Privadas de um contato com a arte em seus poucos espaços,
o livro torna-se, muitas vezes, o único contato delas com
a obra de arte.”
As autoras consideram que, apesar do aumento do número
de edições de livros infantis, a maioria dos títulos
se dedica a apresentar a arte moderna com biografias de pintores
estrangeiros. As produções nacionais existem em
menor número e a maior parte se concentra também
em mostrar a pintura brasileira com enfoque na biografia e não
no processo de criação do artista. “Após
uma extensa pesquisa sobre essas publicações, constatamos
que o número de livros voltados para apresentar a arte
contemporânea brasileira para crianças é pequeno.
São poucas as obras que mostram artistas gravadores,
escultores ou fotógrafos. Ainda mais raras são
publicações sobre arte contemporânea com
trabalhos de artistas que se utilizam de diferentes espaços
e mídias e transgridem os lugares convencionais da arte.”
Ao considerar as dificuldades do ensino da arte no sistema
educacional brasileiro, Renata e Valquíria resolveram
criar a coleção, com o objetivo de despertar nas
crianças o interesse pela produção artística
atual, como forma de compreender o pensamento e as manifestações
culturais da sociedade contemporânea.
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