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Manifestação diante da estátua do general Bem, o revolucionário polonês que, em 1849, liderou tropas húngaras contra o
imperador austríaco

Atirar! Atirar! – cidade de Debrecen, 18 horas de 23 de outubro de 1956. “Atirar! Atirar!” – Budapeste, 21 horas e 37 minutos do mesmo dia. Tombam os primeiros estudantes e operários sob o fogo da polícia política. Em poucas horas alastra-se pela capital e outras cidades do país a luta do povo húngaro contra as forças de opressão – no início a ÁVH, a KGB da Hungria e dirigentes, membros armados do partido comunista. Algum tempo depois, o enfrentamento se amplia com a intervenção das tropas de ocupação soviéticas.

Eclodia, assim, há 50 anos, o levante em que o povo magiar enfrentou o totalitarismo stalinista. As manifestações, no princípio pacíficas, eram de apoio à nação polonesa, já mobilizada por reformas – “A Polônia é o nosso exemplo!”, traziam alguns cartazes –, enquanto outras davam voz às próprias demandas: “Sigamos o caminho húngaro!”. Não surpreendeu que, em face da milenar amizade entre os dois povos, um dos principais pontos de reunião dos manifestantes tivesse sido a estátua do general Bem, o legendário revolucionário polonês que, em 1849, conduzira forças húngaras, em outra guerra pela independência, contra as tropas do imperador austríaco e do aliado deste, o czar de “todas as Rússias”.

A reação violenta do regime às demonstrações do povo provocara um daqueles raros eventos verdadeiramente épicos, cuja importância não desvanece com o tempo.

Cinqüenta anos depois é proveitoso, em lugar de nova enumeração dos feitos heróicos da revolução, examinar seus aspectos mais relevantes, o impacto sobre as mentes contemporâneas e suas conseqüências, que ecoaram através das décadas subseqüentes. Com essa intenção recorremos, no que segue, com freqüência às palavras do historiador Péter Kende, estudioso da importância e da influência do 1956 húngaro sobre os acontecimentos mundiais posteriores.

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A estátua de Stálin derrubada: povo húngaro provoca evento épico

Império sacudido – Em primeiro lugar, a Revolução Húngara dá uma forte sacudida no até então aparentemente inabalável império soviético. Segundo, a ação dos operários, estudantes e escritores arrasa a ficção filosófico-política do socialismo proletário e outros dogmas da esquerda européia. Terceiro, constitui um exemplo de movimento revolucionário das massas, que, chegando à tomada de armas, desafia internamente o sistema totalitário, no anseio de recuperar os direitos elementares e a liberdade suprimidos pela ditadura.

A liderança soviética e seus sequazes nos países satélites e na China se empenharam em intensa propaganda na tentativa de apresentar a luta estudantil-operária como uma contra-revolução, que objetivaria o restabelecimento das condições prévias à Segunda Guerra Mundial. Há indícios, porém, de que, à sua maneira, reconheciam o significado épico da Revolução Húngara. Os acontecimentos posteriores sugerem essa conclusão. Pois os aproximadamente 30 anos seguintes do sistema soviético se caracterizam por uma série de medidas tomadas no sentido de se evitar a repetição de 1956. Não só na Hungria. O temor de o povo chinês se inspirar na atitude dos magiares manteve o próprio Mao Tsé-Tung permanentemente alerta e tal receio foi pelo menos uma das causas da ignóbil Revolução Cultural.

Para os reformadores checos e eslovacos de 1968, assim como aos líderes oposicionistas poloneses em 1980, os acontecimentos da Hungria de 1956 representavam um precedente, cujas lições deviam ser levadas em conta na elaboração da estratégia a seguir. E, 30 anos após a derrota dos magiares, o próprio Gorbatchóv ainda via no levante um desafio que fora tratado com inabilidade.

No contexto histórico contemporâneo, a lição imediata foi de que as grandes potências ocidentais raciocinavam em termos de uma divisão nítida de esferas de influência e que, apesar de sua retórica, irradiada pela Rádio Europa Livre na língua dos países ocupados pela URSS, não pensavam em transgredir tal autolimitação. Há quem diga que o verdadeiro momento da partilha do mundo foi o dos acontecimentos de 1956 e não uma decisão tomada em Yalta.

Assim, enquanto os soviéticos hesitavam quanto à medida a adotar diante da revolução operária-estudantil, Grã-Bretanha e França, com a colaboração de Israel, não titubearam em se lançar numa aventura neocolonialista atacando o Egito de Nasser, na tentativa de retomar a zona do Canal de Suez. Embora a agressão ao país árabe tenha sido planejada independentemente dos acontecimentos no campo dito socialista, foi a hora de o Kremlin entender que os europeus ocidentais estavam mais interessados na manutenção de seu sistema colonial do que na emancipação de países submetidos à URSS. As ambições franco-britânicas foram frustradas pelos Estados Unidos, cuja política externa na época ainda se baseava no bom relacionamento com as nações árabes; mas o destino da Hungria fora selado. Em 1956 as potências ocidentais mostraram, mediante sua inação e com mensagens diplomáticas explícitas, que a tutela de Moscou sobre as “democracias populares” gozava de sua aprovação. Essa percepção acabou sendo fator determinante das futuras atitudes do império soviético.

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"Russos, vão para casa", diz a mensagem escrita pelos manifestantes
(ao lado).

Multipartidarismo – Outra conseqüência da revolução dos operários e estudantes húngaros foi a rápida mudança no relacionamento entre o Kremlin e os partidos comunistas dos países satélites. Após a morte de Stálin já se manifestara entre os líderes soviéticos a tendência de mudar o papel desses partidos de meros agentes da dominação soviética a parceiros de consultas. Nesses esforços cabe a reaproximação com o ditador iugoslavo, Tito. O desafio húngaro, porém, com suas exigências democráticas, que abrangiam o estabelecimento do sistema multipartidário, tolheu o avanço da lenta e limitada abertura. As concessões feitas à Iugoslávia não seriam repetidas para os países em que estacionavam tropas do exército vermelho. Imediatamente em seguida à liquidação da revolução, Kruschov e companhia passaram a agir segundo o que, posteriormente, seria conhecido como doutrina Brejnev, dando fim ao processo evolucionário posto em andamento pela primeira geração de líderes pós-Stalin.

Por outro lado, até a reorganização mais radical admissível pelo grupo dominante era pouco diante das exigências dos revolucionários, que ao sistema multipartidário adicionavam a neutralidade. Assim mesmo, as deliberações soviéticas de antes do assalto franco-britânico-israelense ao Egito admitiam uma solução alternativa, a “finlandização” da Hungria.

A opção pela intervenção armada e as concomitantes concepções políticas significaram o retorno do império soviético ao exercício totalitário do poder. Esse foi o princípio seguido no caso da Primavera de Praga e, passados 25 anos desde a luta dos magiares, da Polônia.

A rigidez doutrinária dominante a partir de 1956 atrasou as reformas necessárias para a modernização do sistema soviético e, impedindo o natural amadurecimento das condições, fez com que as tentativas modernizadoras de Gorbatchóv levassem à implosão do império soviético e, em seguida, da própria União Soviética. Nesse sentido, a revolução húngara finalmente acabou conduzindo a um resultado muito além de suas metas iniciais.

Numa aparente contradição, a Kádár, considerado pelos húngaros um traidor da revolução, foi permitido, após os primeiros anos de represálias contra os revolucionários derrotados, implantar um regime econômico ligeiramente mais liberal e uma limitada liberdade artística. O lema “quem não está conosco está contra nós” foi substituído por “quem não está contra nós está conosco”

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Estudantes da Universidade de Eötvös Lorand em passeata
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Alegria socialista – O relativo bem-estar na Hungria, advindo das pequenas concessões, valeu ao país o epíteto de a “barraca mais alegre do campo socialista”. Não é impossível que a Hungria tenha servido de laboratório para a liderança soviética, no sentido de se estudar o efeito de alterações no sistema econômico e de uma limitada liberalização do regime. Se a experiência dos comunistas húngaros serviu de diretriz ou pelo menos de inspiração – e em que medida serviu – a Gorbatchóv, é algo de difícil constatação por enquanto.

Os líderes do partido comunista húngaro talvez tivessem sentido antes do que seus “irmãos mais velhos do Kremlin” que a economia marxista a médio prazo faria água. Aproveitando-se da relativa liberalização kadariana, enviavam seus filhos para estudar economia na Grã-Bretanha e outros países ocidentais, enquanto os filhos de operários e de camponeses que se destacavam por seus dotes intelectuais, ou sua fidelidade partidária, estudavam economia marxista nas universidades soviéticas.

A revolução bolchevique pôs a transformação espiritual iniciada com o Iluminismo a serviço de um regime tirânico, que controlava totalmente todos os movimentos e ações da sociedade. Apesar disso, o sistema social e político soviético se dizia o preenchimento daqueles ideais e o verdadeiro herdeiro deles. Por mais estranho que possa parecer, essa falácia era aceita também por gente que nada tinha a ver com concepções socialistas ou liberais esquerdistas. Um só exemplo: Jean-Paul Sartre se referia ao marxismo revolucionário como “o horizonte insuperável dos nossos tempos”.

Para o historiador Kende, sem a simpatia ou, pelo menos, a complacência do campo político e filosófico progressista europeu, o comunismo soviético não se teria tornado aquela poderosa força política dos meados do século 20. Certamente, a luta dos soviéticos ao lado dos aliados na Segunda Guerra Mundial dera sua contribuição para o apreço. E, mesmo quando a simpatia pelos soviéticos passou a declinar, um número considerável de intelectuais no Ocidente moveu-se para os partidos comunistas e declarava sua solidariedade direta à URSS. Tais simpatizantes não só subscreviam as metas ideais do comunismo, mas freqüentemente aceitavam os métodos baseados no terror de Estado – julgamentos-espetáculo e detenções em massa –, aos quais Stálin recorria para eliminar seus oponentes e consolidar o monopólio de poder.

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Uma das principais marcas da Revolução Húngara de 1956: a bandeira nacional sem os símbolos da Hungria comunista, retirados pelos manifestantes.

Ficção questionada – Essa influência política e “espiritual” do comunismo soviético foi abalada pelo levante húngaro. Começou em 1956 a decadência dos partidos comunistas ocidentais e o declínio do apoio que intelectuais lhes davam. A ficção de um socialismo fundamentado na ditadura do proletariado veio a ser questionada, quando não rejeitada, inclusive por muitos daqueles que nos tempos do reinado de Stálin ainda nela se embalavam. Ilustrando com o depoimento do ecologista gaúcho Augusto Carneiro: “Eu era do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, desde 1941, durante a guerra. Extra-oficialmente, participávamos de grandes campanhas pró-União Soviética, principalmente depois que ela entrou na guerra (...). A guerra da Hungria e o informe secreto sobre Stálin sacudiram conosco. A direção não aceitou o informe secreto, mas eu aceitei e já fiquei mal. Quando foi desencadeada a guerra da Hungria, simultaneamente com a guerra de Suez, constituímos um grupo de oposição e saímos do partido. Fomos nós que derrubamos a União Soviética, foi naquele momento que ela começou a se desmoralizar, pois a força moral que era a grande força dela acabou-se em 1956”.

O caráter antitotalitário da revolução húngara desde cedo se expressou em termos institucionais mediante a substituição do sistema unipartidário por um gabinete multipartidário, que propôs eleições parlamentares e se encaminhava para o cancelamento da dependência unilateral em relação à União Soviética. A revolução foi, nesse sentido, precursora dos eventos de 1989; um modelo que não teve paralelo entre 1956 e o colapso final do sistema soviético. Nem sequer a Primavera de Praga se lhe igualou. Esta, embora inspirada nos eventos húngaros de 1955 e 1956, contando com a conivência de significativo segmento do establishment comunista, não trazia clara a proposta de se substituir o sistema unipartidário por um governo pluralista.

Algo semelhante pode ser dito sobre o levante polonês dos anos 1980-1981, embora o movimento do Solidariedade tenha sido o maior e mais tenaz movimento de desobediência e oposição em toda a história do sistema soviético e o colapso de 1989 constitua a sucessão das movimentações de 1980-1981. Mesmo assim, as propostas polonesas do início dos anos 80 eram mais modestas do que as húngaras de 1956, pois não desafiavam o “direito” do partido ao poder e ao governo. Com essa autolimitação – o estabelecimento do pluralismo na esfera social apenas e não na política –, os poloneses desejavam evitar o destino trágico dos húngaros.

De um ponto de vista estritamente húngaro, a revolução foi o grande momento da reconciliação e união da nação. A Hungria de entre guerras vivia intensamente o trauma da mutilação pelo Diktat de Paz de Trianon. O diktat reduziu o território do país a um terço. O traçado das novas fronteiras cortava internamente regiões em que a etnia magiar era amplamente preponderante. Os tratados de Versalhes e arredores criaram condições não só para o aparecimento de Hitler, mas lhe produziram amplo espaço de manobra no confronto entre os prejudicados, que almejavam na medida do possível consertar as injustiças, e aqueles que, tendo sido beneficiados, não queriam abrir mão do domínio sobre as minorias húngaras formadas não pela emigração, mas pelo novo traçado das fronteiras. Nesse conflito de interesses o país dos magiares estava sempre exposto a uma invasão conjunta alemã, eslovaca e romena.

Mesmo tendo que manobrar em mares tão hostis, a Hungria é o país que após servir de rota de escape para dezenas de milhares de poloneses, judeus e outras vítimas do nazismo, pode apresentar de longe a maior comunidade judaica sobrevivente do Shoá na região. Ainda assim, o país chegou ao fim da guerra cindido. Essa cisão era alimentada pelos comunistas que, objetivando dar cabo do regime multipartidário, apoderando-se da direção do país, viam na destruição da auto-estima nacional um recurso que facilitaria o alcance de suas metas. A Revolução de 1956 foi o anticlímax dessa campanha, pois a nação se unira, independentemente de credos religiosos e de outros fatores antagônicos à solidariedade. Só havia dois lados: o das massas revolucionárias e o da oligarquia beneficiária do regime totalitário.

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A cidade de Budapeste em meio aos conflitos

História virtual – Os adeptos da história virtual levantam a questão sobre o que teria acontecido se a União Soviética tivesse se retirado da Hungria e este país se tornado neutro. É possível, conjecturam, que com essa concessão ter-se-ia iniciado uma mudança na própria URSS, em direção a uma modernização das idéias políticas e, numa evolução lenta e segura, a sociedade socialista ter-se-ia consolidado em uma forma capaz de sobreviver ao lado do Ocidente. Ao invés disso, o que aconteceu foi o colapso, conseqüente de uma tentativa de abertura político-econômica tardia, quando as pressões econômicas e sociais, e a insustentabilidade do sistema marxista-leninista, já não mais davam tempo para uma transição em ritmo seguro. Esse exercício da imaginação – “história” daquilo que poderia ter acontecido – conduz-nos à surpreendente idéia de que a Revolução Húngara de 1956, assim como significou o início do lento desmoronar do dito socialismo soviético, poderia ter representado a salvação dele, houvesse estadistas de visão mais ampla e mais sábios no Kremlin. A URSS, segundo essa linha de pensamento, teria os caminhos abertos para se tornar uma potência econômica capaz de rivalizar com os sistemas oponentes ou alternativos.

Tibor Rabóczkay, nascido na região da Hungria – depois incorporada à Iuguslávia e hoje território da Sérvia –, é engenheiro químico formado pela Escola Politécnica da USP e pós-graduado em Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política (Fesp). É professor do Instituto de Química da USP e autor do livro Repensando o Partido Verde brasileiro (Ateliê Editorial).


Causas e repercussões do levante

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Um amplo estudo sobre o movimento do povo húngaro contra o império soviético está em Hungria 1956 ...e o muro começa a cair, que acaba de ser lançado pela Editora Contexto para lembrar os 50 anos do levante. Organizado pelo professor Ladislao Szabo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o livro traz artigos do historiador Angelo Segrillo – autor de O fim da URSS e a nova Rússia – e da professora da USP Maria Aparecida de Aquino.

No seu artigo, Maria Aparecida destaca a repercussão da Revolução Húngara de 1956 no marxismo brasileiro. Com a eclosão do levante, o PCB se dividiu em “abridistas” e “fechadistas”, diz ela, usando termos do jornalista Armenio Guedes, que entrou no partido em 1935. “Os ‘abridistas’ eram aqueles que, diante da crise pela qual o movimento comunista internacional estava passando, defendiam que o partido deveria abandonar a linha sectária e se democratizar internamente. Os ‘fechadistas’ eram aqueles que, com Luís Carlos Prestes, defendiam que o partido mantivesse a mesma linha de antes desses acontecimentos”, explica a professora, que assina o artigo em parceria com Pedro Gustavo Aubert. “O levante húngaro fez com que alguns membros deixassem o partido. Foi o caso do romancista baiano Jorge Amado, que chegou a escrever um artigo intitulado ‘Mar de lama’, no qual condenou a invasão da Hungria.”

Em três anexos, o volume apresenta preciosidades históricas. O primeiro deles mostra rascunhos de atas das reuniões do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética em que foi aprovada a invasão da Hungria. O segundo anexo publica a “Resolução sobre a situação da Hungria”, tomada pelo Comitê Central do Partido Comunista do Brasil e publicada na edição de 24 de novembro de 1956 pelo jornal A Voz Operária, órgão oficial do partido. Já o terceiro anexo é a primeira tradução no Brasil de “O sangue dos húngaros”, texto do escritor francês Albert Camus (1913-1960) escrito para o primeiro aniversário da revolução, em 1957.

R. C. G. C.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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