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Sociais. A formatura de sua turma foi turbulenta. Já estávamos no início da ditadura militar, e os alunos escolheram Florestan Fernandes para paraninfo e Fernando para orador da turma. A cerimônia ocorreu no Teatro Municipal, Florestan foi impedido de comparecer e por pouco a sessão não terminou em pancadaria.
Em 1966, Fernando candidatou-se a deputado estadual pelo MDB e foi eleito. Escolheu atuar na área de educação. Em seus primeiros discursos e propostas, defendeu a universidade pública gratuita, os alunos “excedentes” da Faculdade de Filosofia e a moradia estudantil (Crusp), denunciou o espancamento de alunos no Colégio de Aplicação por policiais, a invasão da Cidade Universitária da USP, a intervenção no Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Osasco e muitas outras ações do governo militar.
A partir do final de 1967, seus discursos na Assembléia eram cada vez mais corajosos e provocadores: contra a guerra do Vietnã e as primeiras escaramuças no Oriente Médio, uma saudação a Dom Helder Câmara, o necrológio de Che Guevara (cujo retrato inaugurou em seu gabinete), a denúncia do assassinato dos estudantes Nelson Luiz Souto, no Rio, e José Guimarães, em São Paulo, um pedido de inquérito sobre a tortura etc. Seu último discurso, em dezembro de 1968, foi de solidariedade a Márcio Moreira Alves e de alerta para o perigo que corriam o Congresso Nacional e a já moribunda democracia brasileira. Foi eleito, pela imprensa especializada, o melhor deputado paulista de 1968. Tudo isso foi registrado nos anais da Assembléia, e mais tarde em seu livro Água mole em pedra dura, uma luta política 1966/1982(São Paulo, Editora Alternativa, 1982).
Nesse mesmo ano de 1968, fez uma viagem à Europa e aos Estados Unidos, durante a qual documentou o rescaldo da Revolução de Maio em Paris, a invasão da Tchecoslováquia, que presenciou e fotografou ao vivo, e teve contato com militantes dos Panteras Negras em Nova York. Narrou mais tarde as experiências desse ano emblemático em seu livro Relato de guerras(São Paulo, Busca Vida, 1988) .
No último ano em que foi deputado, sua vida pessoal era arriscada. Sempre perseguido e ameaçado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), Fernando andava armado, porque, como dizia ele, “o céu não estava para colibri”. Uma vez, circulando sozinho na Praça do Relógio, na Cidade Universitária, teve seu carro “fechado” por outro, e só conseguiu fugir porque disparou tiros para o ar. Quando a Maria Antonia foi invadida e incendiada, em outubro de 1968, ele para lá se dirigiu e se juntou à passeata dos estudantes. Na mesma época, os alunos do Crusp foram violentamente desalojados. Um grupo de professores, entre os quais Antonio Candido e Florestan Fernandes, queria entrar no prédio, mas os policiais os impediam. Vendo que estes não aceitavam seu argumento de que podia entrar porque era deputado e trabalhava numa Comissão Especial sobre a Universidade, Fernando mostrou o revólver e entrou “na marra”, seguido pelos professores. A partir de então, pressentindo o pior, andava sempre com seu passaporte e 500 dólares. Tinha certeza de que sua “sentença já estava escrita”.
Quando foi decretado o Ato Institucional nº 5, eu estava em Paris. Ao tomar conhecimento do que ocorria no Brasil, do “desaparecimento” de políticos e militantes de esquerda, fiquei apavorada. Telefonei para a casa de meus pais, com muita prudência, porque temia que houvesse escuta. Eles me disseram apenas: “O Fernando está bem”. Soube, depois, o que tinha acontecido com ele. Por mais incrível que pareça, ele fora avisado por uma deputada do Arena de que algo muito grave ia acontecer e que ele devia “sumir”. Por que ela o avisou? Acredito que por simpatia pessoal. Uma vez eu lhe havia perguntado se não aconteciam incidentes desagradáveis na Assembléia com aquela deputada, já que ele a xingava de todos os nomes no plenário e ela devolvia à altura. Ele me respondeu: “Não, depois das brigas a gente toma um cafezinho juntos”. Fernando era um revolucionário cordial, de quem até alguns inimigos políticos gostavam.
Aceitando o conselho da colega, Fernando pegou o carro e fugiu para o Rio de Janeiro, onde se escondeu na casa de um primo. Enquanto estava lá, seu carro foi roubado, e depois ele contava isso rindo muito, porque, evidentemente, não podia dar queixa à polícia. Arranjou um novo carro, voltou incógnito para São Paulo, onde passou o Natal com a família. Depois rumou para o sul do País, atravessou as fronteiras do Paraguai, da Argentina e do Chile, onde já havia refugiados brasileiros. Conforme ele contou, cada fronteira que ele passava se fechava nas suas costas, porque não apenas o haviam cassado, mas também haviam expedido uma “ordem de prisão prioritária” contra ele.
No Chile, durante dois anos foi professor de Sociologia das Comunicações na Universidade de Concepción. Como essa universidade tinha poucos doutores, enviaram-no a Paris para preparar uma tese. Para que ele se inscrevesse numa universidade francesa, precisava de uma carta de um professor de lá. Na época, eu já era amiga de Roland Barthes, a quem escrevi explicando o caso. Barthes respondeu imediatamente oferecendo a carta, assim como o apoio de Edgar Morin e outros sociólogos. Fernando pretendia voltar ao Chile logo que defendesse a tese.
Mas, em 1973, o golpe no Chile o fez chorar como criança e obrigou-o a permanecer na França. O mesmo grupo de intelectuais franceses que o acolheram providenciou-lhe um contrato na Universidade de Paris, onde ele lecionou até 1978. Quando defendeu seu doutorado, com a tese “Imagem do Chile na imprensa cotidiana francesa”, Barthes manifestou-se novamente, oferecendo-se como voluntário para integrar sua banca. Não assisti à defesa, mas Fernando me contou que Barthes o identificou tanto ao tema da tese que, durante a argüição, o chamou de “monsieur Allende”.
O exílio foi muito duro para Fernando, porque ele era, mais do que intelectual, um homem de ação política, e a quase impotência a que se via reduzido no estrangeiro, assim como a longa duração da ditadura militar no Brasil, o deprimiam. Em seus momentos de desânimo, sem perder o humor que o caracterizava, ele dizia: “Em todos os lugares onde eu disse venceremos, não vencemos; no passarán, passaram”. Mas o ano de 1974 lhe trouxe uma grande alegria política: a Revolução Portuguesa. Fernando era amigo, em Paris, do também exilado Mário Soares. Foi convidado pelo general Vasco Gonçalves a colaborar com o Ministério das Comunicações e deu aulas na Universidade de Coimbra. De novo, como no Chile de Allende, Fernando estava cheio de entusiasmo e esperança.
Com a anistia, pôde finalmente voltar ao País, em setembro de 1978. Apesar da “redemocratização”, ele passou por um longo interrogatório policial no aeroporto, logo esquecido pela euforia do retorno. Nos anos seguintes, Fernando retomou várias ocupações profissionais, mas não se afastou da política. No já então PMDB, esteve muito próximo de Almino Affonso, Mário Covas e Ulysses Guimarães. Participou do governo Franco Montoro, como diretor da Emplasa, Secretaria dos Negócios Metropolitanos. Prestou concurso na disciplina Sociologia da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, onde se tornou livre-docente em 1994.
Em 1996, em plena atividade, sofreu um AVC devastador, que o deixou afásico e hemiplégico, apesar de perfeitamente lúcido. Foi uma triste ironia o fato desse “comunicador” ter ficado quase incomunicável. Seus últimos anos foram dolorosos por sua condição, mas as visitas constantes de amigos e correligionários devolviam-lhe o ânimo. Até o fim, seu assunto preferido era a política. Quando eu o provocava, em brincadeira, falando mal da esquerda brasileira, ele ficava sério e respondia com um sonoro “Não!”.
Apesar da provação desses últimos anos, meu irmão teve uma vida muito bonita, de generosidade pessoal e fidelidade a seus ideais políticos.
Leyla Perrone-Moisés é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

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