núcleo de estudos do livro e da edição

Acervo

Os Catálogos da Livraria Garraux na Cidade
de São Paulo

Para se ter uma ideia do impacto que a simples distribuição dos catálogos de uma livraria poderia provocar entre os habitantes de São Paulo, nas últimas décadas do Oitocentos, vale a pena recorrer ao testemunho do bibliotecário da instituição de leitura mais importante da cidade, naqueles tempos:

Cidadão Sr. Dr. José Vieira de Carvalho,
Desejando enriquecer tanto quanto possível a Bibliotheca desta Faculdade com a acquisição das primeiras obras que se tem publicado sobre as materias que nella se ensinam, e faltando-me bons dados para esse emprehendimento, por serem muito poucas as livrarias e editoras que nos remetem seus cathalogos, resolvi dirigir-me à Vsa. Excelencia rogando o obsequio de enviar-me até antes de terminar o corrente mez, uma lista das principaes obras escriptas sobre a cadeira que V. Excia. tão sabiamente rege e que sabe não possuir esta Bibliotheca.
Ass. O Bibliothecario Joaquim de Mendonça Junior (1).

Nesse aspecto, a Casa Garraux representou para a população paulistana, pelo menos para uma fração potencialmente consumidora, um espaço de inovação, o que não se justificava apenas pelas mercadorias europeias de que dispunha, mas também pelo sortimento de títulos que o negociante francês dispôs em seus catálogos.

A firma Garraux, De Lailhacar e Cie. Se instalou na capital em 1859. Organizou em poucos anos uma ampla rede de vendas, tirando proveito das rotas de navegação e do comércio de cabotagem em vigor na costa brasileira. A principal atividade era a importação de livros franceses e sua distribuição nas livrarias do Recife e de São Paulo. Enquanto Garraux se fixou no burgo piratiningano, De Lailhacar montou sua livraria na rua do Crespo, no 9, tendo sido este um ponto de encontro da intelectualidade recifense.

Todos os catálogos apresentavam o mesmo aviso, em português e em francês:

O Catalogo Geral será enviado gratuitamente sobre [sic] pedido, a qualquer ponto do Imperio.

No início da década de 1870, quando A. L. Garraux aparece consolidado no meio comercial citadino, a sociedade com De Lailhacar foi desfeita. Talvez porque este já se encontrasse, como Garraux, devidamente instalado no Recife e não mais precisasse da ajuda do sócio. O domínio do mercado local lhe deu meios para estender os negócios com os livreiros-editores do Rio de Janeiro, tornando-se distribuidor das obras ali publicadas (2), e até mesmo um concorrente na venda de edições francesas, dada a proximidade das duas capitais. Intenção declarada abertamente no catálogo de 1872:

Aviso - As obras brazileiras editadas no Imperio são vendidas pelo mesmo preço que nas proprias casas dos editores e não são sujeitas a abatimento algum. As obras estrangeiras são vendidas por preços mais baratos que em qualquer outra livraria.
Na mesma Casa há um Catalogo geral das obras portuguezas de educação, litteratura, sciencias, artes, religião, etc., que sera enviado sobre pedido a qualquer ponto do Imperio (3).

Além disso, os catálogos serviam como um regulador de preços no comércio local e em relação a outros centros. No caso de São Paulo era inevitável a concorrência com as livrarias do Rio de Janeiro, pois somente na década de 1890 houve condições para a existência de um mercado concorrencial na capital planaltina. É o que observa o bibliotecário da Faculdade de Direito, em 1860 (4):

Sobre as publicações periódicas, escolhi aquelas que me parecem mais uteis q se pode conseguir dos Livreiros como abatimento dos preços que pedem em seus cathalogos, que ordinariamente são sempre os máximos, e elles costumam fazer sempre algum abatimento quando se lhes comprão muitas obras, como no presente cazo. Não posso deixar de submeter a V.Exa., digo, á consideração de V.Exa., que pelos preços que proponho, há Livreiros nesta cidade que se obrigão a vender á Bibliotheca todas as obras pedidas, e a servil-a com as melhores edições e encadernações, e tanto quanto eu creio que se deva preferir a compra aqui nesta cidade, não havendo mais em conta na Corte, não obstante, V.Exa. determinará o que julgar melhor. Deus guarde a V. Exa. por muitos annos. Bibliotheca da Faculdade de Direito de S. Paulo, 1º de Abril de 1860.

Mas a Livraria Garraux não serviu apenas aos apetites dos leitores acadêmicos. As páginas dos catálogos reproduzidos nesta seção apresentam um leque de variedades que talvez a mais badalada das livrarias atuais não ousaria conservar em seus estabelecimentos. É o que veremos na breve síntese apresentada no próximo tópico.

OS CATÁLOGOS

Como escreve Laurence Hallewell, “os catálogos por ela publicados [pela Casa Garraux] oferecem um registro sem igual do que existia disponível para o comprador brasileiro de livros da época”(5).

Ao fazer o mapeamento do Catálogo de 1865, o autor chega aos seguintes resultados: 189 títulos de obras de Direito; 69 livros de religião e misticismo, “a maioria deles entre um e quatro-mil réis”; o item “Educação, alphabetos, grammaticas, diccionarios, compendios de geographia, historia, geometria, arthmetica etc.” relaciona 154 livros, “aproximadamente, da mesma amplitude de preços”. A seção “Artes e officios, medicina, miscelanea”, compõe-se de quarenta e cinco livros, “de cerca de dois a quatro-mil réis”. Em “Poesias, theatro, poetas nacionaes estrangeiros”, somam-se 120 títulos, “com preços que vão até 22$000, mas na maioria entre $500 e 5$000”. “Obras de litteratura, historia, novellas, romances illustrados etc. etc.” totalizam 473 títulos, dos quais, afirma o autor:

215 são traduções: uma do italiano, uma do espanhol (D. Quixote), uma do alemão, nove do inglês – na maioria, de Sir Walter Scott, mas incluindo Piloto, de Fenimore Cooper – e o resto do francês. Os mais populares destes são os livros de Dumas (75 títulos), Sue (22 títulos) e Paul de Kock (21); dos demais, Soulié, Paul Feval e George Sand estão bem representados, mas Victor Hugo menos. Flaubert tem apenas Salambo: teria Madame de Bovary permanecido intraduzido devido à sua franqueza, ou era apenas rejeitado como muito deprimente para o gosto brasileiro de então? Os autores portugueses mais populares eram Castello Branco (evidentemente), Almeida Garrett e Herculano, enquanto José de Alencar e Joaquim Manoel de Macedo eram os principais entre os brasileiros (6).

Os catálogos da Livraria Acadêmica eram impressos em Paris. Os exemplares apresentam sempre o mesmo formato, in-8º e seguem mais ou mesmo os mesmos critérios de distribuição dos livros em domínios temáticos. Os catálogos de edições francesas, numericamente mais significativas, podiam ser distribuídos separadamente, conforme o interesse da clientela. Ou em um único volume, como tivemos oportunidade de conferir nos exemplares consultados na Biblioteca nacional da França. Os títulos de jornais eram organizados em catálogos especializados, sendo comum o aviso para a sua retirada ou pedido via postal junto à livraria, segundo informe afixado nos anúncios de jornais e nos próprios catálogos de livros (7). Todos os exemplares apresentam extenso inventário das mercadorias disponíveis na loja, como podemos observar nas chamadas publicitárias reproduzidas no final de cada brochura.

A. L. Garraux parece ter utilizado as mesmas estratégias da Livraria Garnier do Rio de Janeiro, pois os catálogos de uma e outra casa são muito semelhantes. Porém, como a empresa de B. L. Garnier mantinha atividades regulares na área editorial, seus catálogos eram também incorporados aos livros, na forma de encarte afixado no final da edição, segundo modelo já referenciado no tópico anterior.

Publicamos para uso dos pesquisadores os catálogos da Livraria Garraux relativos aos anos de 1864, 1866 e 1872 (8). O último é de longe o mais completo e reflete bem o grau de otimismo do livreiro francês na cidade, diante do êxito de seu investimento.

As reproduções dos catálogos foram adquiridas junto à Bibliothèque Nationale de France em julho de 2004 e utilizadas na tese de doutoramento, posteriormente publicada sob o título O Império dos Livros. Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp; Fapesp, 2011). A digitalização do material foi possível graças ao auxílio de Márcia Abreu, no âmbito do Projeto de Colaboração Internacional “A Circulação Transatlântica dos Impressos (Séculos xviii a xx)”, sob sua coordenação e de Jean-Yves Mollier (uvsq-fra). Aos colegas e professores-coordenadores meus sinceros agradecimentos por esta e outras colaborações.

Marisa Midori Deaecto

1.   Correspondência de 22 de agosto de 1882. Manuscritos do Arquivo da Faculdade de Direito-usp, doravante mafd, Livro 18.

2.   Na verdade, desde o princípio a Livraria negociava edições nacionais, não apenas as da Casa Garnier, cujo títulos aparecem com certo destaque nos Catálogos, demonstrando ser Garraux ainda um distribuidor das edições de seus concidadãos, mas de outras obras impressas no Rio e em São Paulo.

3.   Catálogo de 1872, p.36.

4.   Ao que informa, em anexo ao mesmo ofício: “Tenho a honra de levar a presença de V. Exa. a factura das Obras e Publicações Periódicas compradas para esta Bibliotheca com a cota de dois contos de reis em conformidade do que V. Exa. me determinou, no contracto feito com o livreiro A. L. Garraux, o qual já se acha pago, como consta do seu recibo na factura inclusa, ficando outra de igual conteúdo archivada nesta Bibliotheca. Constando a lista das obras contratadas (?) de Obras raras e difficeis de serem encontradas, não foi possivel ao dito livreiro achal-as todas não obstante tel-as mandado procurar em Portugal, e no Rio, faltando doze Obras destas, e havendo muita demora em completar a lista contratada pela difficuldade de achal-as, propuz a V. Exa. a troca destas por outras igualmente necessarias a esta Bibliotheca, pela qual ficou o contrato desempenhado, podendo as que não forão agora encontradas, ser contempladas em huma lista nova [...] O contrato feito com o livreiro A. L. Garraux foi o que melhores condições offereceu a esta Bibliotheca abatendo 10% dos preços pedidos pelos outros livreiros, servindo a bibliotheca com as melhores e mais novas edições, e boas enquadernações das Obras [...] Bibliotecário responsável: José Innocencio de Moraes Vieira”, mafd, Livro 5.

5.   Laurence Hallewell, O Livro no Brasil. São Paulo: Edusp, 2005, p.227.

6.   Idem, ibidem, pp.227-228.

7.   Catálogo de Jornaes, da Livraria Garraux. s.l.: s.ed., s.d.p.

8.  Casa Garraux. Catálogo dos livros necessários para os cursos jurídicos da Academia de São Paulo. Paris: Garraux, 1864. Casa Garraux. Catálogo de livros de Jurisprudência, Direito, Economia Política, Administração, Literatura, Devoção etc. Paris: Simon Racan et Comp., 1866. Casa Garraux. Catálogo em línguas portugueza e franceza. Catalogo em línguas portugueza e franceza das obras de Jurisprudência, Direito pátrio e estrangeiro, Economia Política, Commercio, Colonisação, Política, Estradas de ferro, Diplomacia, etc. etc. Paris: A. Lemale Aîné (1o. vol.) ; A. Parent Imprimeur (2o. vol.), 1872.

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