núcleo de estudos do livro e da edição

NELE Faz História

2010
Conferências no Brasil: Jean-Yves Mollier
O DINHEIRO E AS LETRAS – HISTÓRIA DO CAPITALISMO EDITORIAL
Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba – 10, 12 e 13 de Agosto de 2010

Sob muitos aspectos a história editorial brasileira se confunde com a trajetória do livro francês no século xix. Tal idéia tem sido reforçada nos últimos anos em virtude de pesquisas inovadoras no campo da história do livro e das práticas de leitura, de tal sorte que é possível identificar, no Rio de Janeiro imperial, leitores anônimos que dedicavam seus dias aos prazeres recôndidos das aventuras (ou desventuras) lacrimosas de Paulo e Virgínia ou aos ardis da chamada “literatura filosófica”, cujas páginas se tornaram principal alvo da censura francesa nos estertores do Antigo Regime.

Páginas estas que concorreram para a chegada na Corte do Rio de Janeiro, em meados do século, de um de seus mais celebrados editores-livreiros, Baptiste-Louis Garnier (1823-1893). Foi o que constatou Jean-Yves Mollier, em seu chef-d´oeuvre O Dinheiro e as Letras, que acaba de ser publicado pela Edusp. Ao cruzar as informações obtidas junto aos arquivos da polícia francesa com documentos de natureza vária, entre inventários, declarações de sucessão de bens e relatos memorialísticos, o autor logrou reconstruir as origens de empreendimentos tanto lícitos quanto ilícitos que culminaram no império Garnier d´aquém e d´além-mar. Pois se as atividades do editor de Machado de Assis são motivo de investigações criteriosas em diferentes domínios da produção científica nacional, desde a crítica literária até a história editorial tout court, donde se faz mister resgatar a contribuição inovadora de Laurence Hallewell, a mudança de foco do observador permitiu o escrutínio de novas relações engendradas no mundo dos livros. Para além do aspecto pitoresco dos títulos proibidos, dentre outros insuspeitos, interessa averiguar os mecanismos que concorreram para sua difusão na Europa e na América.

Essa mudança de perspectiva permitiu ao leitor brasileiro a observação em grande angular dos jogos econômicos e financeiros que conduziram a França ao triunfo do livro produzido em larga escala e a preços populares. E, por conseguinte, os seus reflexos nos países suscetíveis à presença francesa. Mas, passemos em revista a França perscrutada por Jean-Yves Mollier, pois é disso que se trata.

O sub-título do livro, História do Capitalismo Editorial, resume bem o espírito da longa investigação empreendida pelo autor nos anos de 1980. A pesquisa foi concebida em uma década de mutações no campo editorial francês, o qual acenava para a organização de conglomerados midiáticos de vocação transnacional, em detrimento das velhas organizações familiares, inscritas nas fronteiras nacionais. Esse movimento observado à época e, em certo sentido, constatado na atualidade, como o autor deixa entrever no capítulo introdutório à edição brasileira, colocou em xeque não apenas uma longa tradição editorial, mas o questionamento sobre o papel do capital nas relações sempre muito delicadas e obscuras entre a produção intelectual e seus mecanismos de reprodução e comercialização.

Tornara-se, portanto, infrutífero bater na mesma tecla das relações desiguais entre autores e editores, no momento em que a presença das relações capitalistas no mundo da edição se apresentava mais complexa, porquanto verticalizada. Nesse sentido, a leitura do livro não poderia ser mais viva e instigante. Por detrás dos Panckoucke, o empreendedor da Encyclopédie de Diderot e D´Alembert, dos Didots, proprietários da mais reputada oficina tipográfica francesa, até a chegada de nomes que perpassaram o século xx, como Calmann Lévy, Hachette e Charpentier, o autor constrói toda uma teia de relações de parentescos, casamentos de conveniência, jogatinas na bolsa, transações frustradas, concorrências abertas, donde o perfume das tintas e dos papéis de impressão se confundem com o odor acre do papel moeda, dos contratos assinados em surdina, das interferências bancárias misturadas à fumaça do puro charuto de Havana, dos investimentos que tocam os livros e os maiores escândalos da época, como aquele que envolveu um capitão de indústria com as especulações no Canal do Panamá... enfim, relações intrincadas, difíceis, esclarecidas com a elegância de um leitor de Balzac e a agudeza de um apreciador de Zola.

Pois o leitor não deve duvidar do momento em que a figura de um David Séchard surgir sob as vestes de um jovem editor, cioso de seus projetos, porém, engolido pela força do capital. Ou, ainda, se histórias aparentemente pitorescas, como o debate em torno da edição póstuma de Lembranças de 1848, de Alexis de Tocqueville, surgir como mote do capítulo sobre as novas condições do direito do autor, as quais se engendram no final do oitocentismo, justamente quando o mercado se consolida sob os auspícios de um capitalismo subserviente às regras do mercado financeiro. Conta-se, aliás, que os manuscritos foram alvo de pareceres diametralmente opostos. Enquanto o primeiro parecer manifestava raro entusiasmo no julgamento de uma obra – “Esse manuscrito é admirável. Seu sucesso será retumbante e considero uma boa fortuna poder captar o grande público” – o outro desaconselhava peremptoriamente sua edição: “É lamentável encontrar nelas um estilo às vezes pretensioso e algo proudhonnesco e apreciações sobre contemporâneos que estão longe de ser a marca da benevolência da qual os espíritos sérios devem mostrar-se generosos”.

São histórias costuradas em muitas outras histórias que pretendem resgatar a trajetória editorial da França na perspectiva da longa duração. O recorte cronológico do livro não deixa dúvidas sobre as matrizes intelectuais do autor: “o longo século xix”. O que se lê, enfim, nesse volume alentado rende tributo à nobre tradição historiográfica francesa, a qual faz da narrativa a principal arma da crítica histórica.

Marisa Midori Deaecto