por Daniel Fassa
Fotos por Cecília Bastos e Francisco Emolo

arte sobre foto de Cecília Bastos

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Em 2005, 82,68% dos pretendentes do Estado de São Paulo desejavam adotar crianças com no máximo três anos. Na capital, elas são apenas 8,3% do total de menores abrigados. Isso cria um desequilíbrio entre as pretensões e necessidades.


No mês do Natal, adoção coloca a família em evidência

“Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.” Essa é uma das inúmeras determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionado em 1990, para proteger integralmente os direitos de todos os pequenos brasileiros. Quando a dignidade deles é colocada em risco, seja em virtude de maus tratos, negligência ou inaptidão dos pais biológicos, o Estado intervém. Assim, milhares de crianças e adolescentes vão morar em abrigos de todo o Brasil, à espera da recuperação dos pais ou, quando necessário, da adoção.

Somente na cidade de São Paulo, há 4.847 crianças vivendo em abrigos, segundo pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente (NCA) da PUC-SP em parceria com a Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ/SP). Desse total, aproximadamente 76% têm entre 4 e 16 anos. Crianças com até três anos de idade, as preferidas pelos que dão entrada ao processo de adoção, são apenas 8,3%. Isso cria um desequilíbrio entre a oferta e a demanda, visto que, em 2005, por exemplo, 82,68% dos pretendentes do Estado desejavam adotar crianças com até no máximo essa idade, de acordo com dados da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional do Estado de São Paulo (Cejai-SP).


 

 

Foto crédito: Francisco Emolo
Casados há três anos e meio, Juciele e Alexandro contrariaram as estatísticas e adotaram as irmãs Aline, Olga e Joanita

 


A psicóloga Sílvia Penha, da Cejai-SP, acredita que esse fenômeno se deve à idéia equivocada de que é mais fácil educar recém-nascidos, bem como à falta informações sobre a quantidade de crianças mais velhas precisando de adoção. A psicanalista Márcia Porto Ferreira, coordenadora do grupo de estudos sobre adoção do Instituto Sedes Sapientiae, pensa de maneira semelhante: “O ser humano não tem uma previsibilidade do que vai acontecer necessariamente com ele. Assim como existem filhos biológicos que trazem grandes preocupações, há crianças adotadas que trazem também”. Ambas ressalvam, ainda, que crianças maiores podem trazer marcas da infância, mas que isso não é necessariamente ruim.

Na contramão dessa tendência, Juciele Borges Cristóvão, inspetora da Escola de Aplicação, e Alexandro Fonseca da Silva, motorista da Coordenadoria de Comunicação Social, casados há três anos e meio, acabam de adotar três irmãs: Aline, de 7 anos, Olga, de 8, e Joanita, de 10. Os dois sempre tiveram vontade de fazer uma adoção e, diante das dificuldades de Juciele para engravidar, não tiveram dúvidas e saíram à procura de seu futuro filho. Para ela, não importava a idade. Ele queria um bebê. Mas os dois concordavam que adotariam apenas uma criança.

Ao visitar um abrigo no bairro da Casa Verde, conheceram suas futuras filhas. Tentaram, sem sucesso, adotar Aline, a mais nova. A equipe técnica da Vara da Infância e da Juventude colocou a condição: ou levavam as três, ou não levavam nenhuma. “Ficamos muito arrasados nesse dia. Aí o Alexandro chegou em casa e falou – 'você tem amor para dar para as três?'”, conta Juciele.

No dia seguinte, o casal fez o pedido de adoção de Aline, Olga e Joanita. Em 29 de junho de 2007, elas finalmente chegaram à nova casa. “Nós tivemos que fazer toda uma análise das nossas condições [financeiras] com elas. Não tem luxo, mas não acho que nem elas e nem nós estamos querendo luxo”, afirma a mãe de primeira viagem. As dificuldades de convivência são inevitáveis, mas não desanimam Juciele: “São duas famílias que estão se conhecendo, tentando formar uma família só. É um processo bem difícil. Temos tido muitas dificuldades, mas também muitas alegrias”.



Márcia Porto Ferreira: “O ser humano não tem uma previsibilidade do que vai acontecer necessariamente com ele. Assim como existem filhos biológicos que trazem grandes preocupações, há crianças adotadas que trazem também”


O gesto de Juciele e Alexandro destaca-se não só pela idade, mas também pelo número dos filhos adotados. Dados da Cejai-SP indicam que, em 2005, 99,32% dos pretendentes do Estado desejavam adotar apenas uma criança. Enquanto isso, segundo pesquisa do NCA/PUC-SP, grupos de irmãos eram 55,5% da população abrigada na cidade de São Paulo, reforçando o desequilíbrio entre pretensões e necessidades.

Para a psicanalista Márcia Porto Ferreira, é necessário investir em alternativas a fim de contornar a situação. Além de políticas públicas de redução da pobreza, ela aponta medidas como o apadrinhamento (ajuda financeira) e o abrigamento temporário nas chamadas famílias acolhedoras. Esse processo faz parte de um programa de governo que visa a dar um lar provisório a crianças com perspectivas de voltarem a suas famílias de origem. No entanto, ele não se aplica a menores cujos pais perderam ou estão em vias de perder o poder familiar, quando a adoção é a única opção.

Nesse caso, resta contar com uma mudança no perfil de intenções dos pretendentes. A psicóloga Sílvia Penha acredita que isso é possível: “Esse tem sido um dos esforços da Cejai, principalmente com o esforço do Dr. Reinaldo [Cintra Torres de Carvalho, juiz secretário da Cejai-SP], que tem divulgado bastante esses dados. E o interessante é que a gente está vendo que já começa a mudar um pouco o perfil da criança pretendida”.

 
 
 
 
 
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