o polêmico nu artístico de Vanessa Beecroft
Depois de passar pela pior crise desde sua criação em 1951, e com dois anos de atraso, a Bienal Internacional de São Paulo, ainda cercada por rumores da turbulência, abriu finalmente suas portas para o público e inaugurou, no último dia 23, sua 25ª edição. Além das tradicionais “representações nacionais”, que trazem artistas de todas as partes do mundo para compor uma grande galeria, este ano foi escolhido um tema que amarrasse e servisse de fio condutor nas criações do módulo principal da mostra. A partir do mote “Iconografias Metropolitanas”, o caos das grandes cidades invadiu o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera. São Paulo, Nova York, Johannesburgo, Berlim, Istambul, Moscou, Caracas, Sidney, Londres, Pequim e Tóquio foram as 11 metrópoles selecionadas pelo alemão Alfons Hug, curador-geral da exposição, para ganhar faces inusitadas nas mãos de 55 artistas, cinco para cada uma delas. Além das 11 reais, uma 12ª cidade, esta imaginária, reuniu outros 12 artistas de diferentes países. O livro de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, que norteou a temática urbana das “Iconografias”, foi a principal referência na construção da “cidade utópica”. Neste projeto, a curadoria, a cargo do próprio Hug, buscou uma alternativa para as tristes e problemáticas metrópoles.
As obras, reunidas pelas cidades que representam e não pelos países de origem dos artistas, foram dispostas por todos os pavimentos, misturando-se assim aos outros núcleos da grande exposição. Em cada andar há um pouco de tudo. Lado a lado com as obras em vídeo, que têm grande espaço este ano, surgem as “Iconografias” de Caracas, Moscou, Johannesburgo e São Paulo.

O playground e seus limites

Uma grande estrutura de madeira a lembrar um barco e um envelope plástico com 4 mil litros de água, esta é criação de Artur Lescher sobre a metrópole paulistana. Ao observador, ainda que desatento, chama a atenção o ritual do visitante diante dela, que parece ser sempre o mesmo. De pé, ele a olha até não poder resistir e se abaixar. A faixa branca que circula o envelope parece ser um aviso: “trata-se de uma obra de arte” e é preciso manter distância, mas ele não é capaz de deter mãos curiosas que tocam e sacodem a grande “água viva” plástica. “Parece que a um toque ela pode se romper e a água inundar tudo”, diz Fernando Valle, estudante que visitava a exposição no dia da abertura e seguia o ritual. Os mais afoitos perguntam aos monitores se é permitido andar ou pular em cima da obra de Lescher. A resposta é não. No grande parque de diversões que acabou se tornando a Bienal, há limites e se fala em contemplação da obra de arte.
No dia de abertura da mostra ao público, a obra Transatravessamento de Ricardo Basbaum provocava tanto barulho no pavilhão que Hug foi até lá pessoalmente apreender as bolas de futebol que compunham a instalação, formada por uma tela de arame e um muro de latão. No entanto, a interação com o público parece ser a palavra de ordem. Cada uma das instalações faz o seu convite, e antes que o visitante pule, entre, deite, ande, mexa, pouca coisa existe. O olhar perdeu a majestade e se tornou apenas um dos elementos que compõem a relação do público com a obra de arte. Em um pequeno quarto de paredes negras, quem chega precisa escrever a giz sua mensagem. Carrinhos em uma grande pista esperam por alguém que os guie com controle remoto. A cama com edredons e travesseiros chama os cansados para se deitar. Na cuba de acrílico transparente, uma escada é passagem para o seu interior, e só uma presença, um corpo que a atravesse, pode demarcar limites e estabelecer que há um fora e um dentro. A jaula de pelúcia cor-de-rosa ganha sentido se alguém entra nela e se vê, no jogo dos espelhos que cobrem teto e chão, infinitamente reproduzido.
Nos moldes da Bienal de Veneza, na qual foi inspirado, o evento paulistano sempre se pautou pelo internacionalismo, com a intenção de ser uma enorme vitrine do que acontece no mundo. A vitrine está de volta. Mantendo seu formato original, a mostra trouxe o núcleo das “representações nacionais”, desta vez com 190 artistas de 65 países. Um outro núcleo tradicional não teve a mesma sorte. Essa 25ª Bienal, ao contrário das anteriores, não apresenta as salas históricas, que traziam artistas consagrados como Van Gogh, Magritte, Francis Bacon e Picasso. Gerando polêmica dentro da Fundação, mas bem acolhida por muitos críticos, a iniciativa, anunciada por Hug em setembro de 2000, continua controversa. Há rumores de que o motivo para a extinção seria a contenção de despesas. Na mostra de 1998, que custou U$15,4 milhões, só esse espaço museológico teria consumido metade do orçamento. Para Sheila Lerner, crítica de arte e curadora geral da 18ª e 19ª bienais, a parte histórica não deve ser deixada de lado. “Ela tem sempre uma inegável possibilidade de diálogo e confronto com os trabalhos de artistas mais jovens.” Já Helouise Costa, professora e curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP, defende a polêmica opção. “Com o destaque exagerado para as salas históricas das últimas edições, a parte contemporânea ficava como resto e se criava uma concorrência da Bienal consigo própria”, explica Helouise. Ela ressalta, entretanto, que não se trata de definir uma vocação contemporânea para a Bienal, nem se deve simplesmente polarizar a questão. “A retirada das salas históricas não deveria ser vista como um fato definitivo, mas como uma opção curatorial.”
As salas especiais, antes ocupadas pela retrospectiva, são agora dedicadas à produção contemporânea — fotografia, performances, instalações e pinturas — nacional e internacional. À frente da seleção dos seis estrangeiros, esteve, mais uma vez, Alfons Hug. Agnaldo Farias, que já foi curador do MAC e do MAM-RJ (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e ficou responsável por toda a representação brasileira nesta Bienal, reservou três salas para a arte nacional. Farias fugiu dos nomes mais populares do circuito e parece ter procurado dar espaço a artistas que já tinham uma trajetória mas eram pouco conhecidos, à exceção do veterano Nelson Leirner que volta à sua clássica questão da arte como jogo. Fazem companhia a Leirner no espaço “especial” o paulistano Carlos Fajardo e a gaúcha Karin Lambrecht. Na instalação de Karin, vestidos manchados de sangue de carneiro estão suspensos em suportes de madeira. Cruzes feitas com o tecido tingido tomam o chão. Nas paredes, painéis em que as formas dos órgãos dos animais, manchadas e disformes, estão marcadas também a sangue. No interior do Rio Grande do Sul, ela percorreu durante um ano três fazendas acompanhando o sacríficio de ovelhas. “Lá, pedia às pessoas que pegassem os órgãos e os apertassem contra o papel, onde depois escreviam junto ao nome da peça o seu próprio nome. Com isso, eu tentei aproximar o ser humano, não só da morte dos animais, mas também da sua morte”, conta a artista.


Luz no fim do pavilhão

As polêmicas e controvérsias que costumam cercar a Bienal desde sua criação continuam e, desta vez, maiores. No processo que antecedeu esta 25ª edição que deveria ser a 26ª — o evento foi adiado por duas vezes — a Fundação Bienal passou por uma enorme crise que envolveu problemas instucionais e financeiros. Em uma onda de demissões, no auge da turbulência, perdeu o presidente do Conselho, Luiz Seraphico, e mais cinco conselheiros, entre eles Millú Villela, presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Além disso, a novela que foi a demissão, readmissão e nova demissão do primeiro curador escolhido, Ivo Mesquita, arranhou de vez a imagem da Bienal, que perdeu projeção e acabou indo buscar, pela primeira vez, um curador fora do País.
Passada a tempestade, o caos serviu para reacender a discussão sobre a estrutura da Fundação e da própria Bienal. Para iluminar o debate, um oportuno documento acaba de ser lançado. Em seu número 52, que chega no momento em que a megaexposição abre novamente as suas portas, a Revista USP conta e analisa a trajetória dos 50 anos de Bienal Internacional de São Paulo, completados no ano passado. Nos 13 textos que compõem o dossiê, a escolha por diferentes pontos de vista e de análise eliminou as unanimidades e o simples saudosismo.
Com cunho historicista, alguns artigos revisitam as origens e influências do evento que teria alterado para sempre as artes plásticas brasileiras. Seguindo o caminho aberto pela Semana de Arte Moderna de 1922, que trouxe para o Brasil as novidades das vanguardas européias, a Bienal Internacional, criada pelo mecenas Ciccillo Matarazzo em 1951, teria assegurado a incorporação da chamada “arte moderna” na vida social do País, exatamente no momento em que se dava também um passo definitivo em sua modernização industrial. “A Semana de 22 reciclou os artistas, a Bienal, o público”, escreve Vitor Knoll, professor de Estética da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) no artigo que abre a revista. Para Knoll, a Bienal, em suas primeiras edições, desempenhou um papel educativo e formador de gosto, levando para as ruas a discussão sobre arte abstrata e o seu embate com o figurativismo. Na mesma linha, Décio Pignatari concebe o evento de 1951 como “abertura do portal paulista para o Brasil moderno” e vai ainda mais fundo na busca das raízes de toda a movimentação que culminou com a criação da Bienal. Ao negar as abordagens parceladas, sejam sociológicas, psicológicas ou nacionalistas, Pignatari entende que só através da observação do arco cultural e ideológico da época se poderá compreender como se deu essa “conquista da visualidade brasileira”. Para além dos áureos tempos, Stella Teixeira de Barros, diretora do departamento de artes plásticas do Centro Cultural São Paulo, analisa os “Males de nascença”. Os adiamentos e as intempéries não seriam resultado de uma crise passageira, mas de um grave problema estrutural. A fragilidade permearia os pilares da Fundação desde sua origem e se houve reformas ao longo dos anos, nenhuma delas saiu da superficialidade. De pouco adiantaria uma substituição da atual diretoria, na sua opinião, inábil e descompromissada, se o estatuto da instituição favorece a perpetuação da crise. Os conselheiros, inicialmente 15, hoje são 60, a maioria deles alheia ao dia-a-dia de uma entidade cultural. Outro problema: não existe um corpo técnico permanente. Ao fim de cada Bienal, os técnicos da área cultural são dispensados. Dessa forma, não existe a possibilidade de desenvolvimento de projetos a médio e longo prazo. O aclamado gigantismo seria também uma forma de atrofia. Segundo ela,”a pretexto de tornar uma exposição interessante para todos, vem se promovendo mostras grandiloqüentes de apelo mercadológico imediato”. Inchadas pelo marketing, exposições como a “Mostra do Descobrimento” podem ser atraentes mas estão deslocadas do contexto da arte contemporânea, que deveria estar em discussão. “A qualidade não se contrapõe obrigatoriamente às megaexposições”, explica Stella. “Porém o efeito da prevalência da lógica do espetáculo sobre a criação artística pode ser tragicamente pasteurizador.”

A Revista USP é uma publicação trimestral
da Coordenadoria de Comunicação Social
da USP, 216 páginas, R$16,00.
Telefone: (11) 3091-4403

 

  NESTA EDIÇÃO

os enormes cones de madeira do cearense Eduardo Frota.

A gigantesca torre de vigilância que ocupa o centro do Pavilhão Ciccillo Matarazzo é a obra que o suíço Fabrice Gygi traz para a 25ª Bienal.

Os tecidos manchados com sangue de
carneiros na instalação da gaúcha Karin Lambrecht, representante brasileira nas salas especiais.

A sala especial de Nelson Leirner: mesa de pingue-pongue transparente feita em acrílico..

Os carrinhos movidos a controle remoto do chinês Lu Chao são atração no primeiro pavimento.



 




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