Cansado
cai, e aflito, no
relvado,
Fita os olhos nas nuvens, e
emudece.
Sem dormir, sem comer, fica
parado
Enquanto o sol três vezes
sobe e desce.
A dor aguda o deixa
exasperado
E tanto vai crescendo, que o
enlouquece.
Ao quarto dia, o furor dele
se apossa,
Couraça e malha em fúria
ele destroça.
Assim
é descrito o momento em que o guerreiro Orlando vencido
por Medoro na disputa pelo amor da bela princesa Angélica
sente-se tomado pela crise da loucura, segundo relata a célebre
história de Orlando Furioso, do poeta de Ferrara, na Itália,
Ludovico Ariosto (1474-1533). Esse episódio e a obra
do mestre italiano pode agora ser lido numa tradução
para o português feita pelo professor da USP Pedro Garcez
Ghirardi e lançado em abril pela Ateliê Editorial.
Publicado pela primeira vez em 1516 e ampliado sucessivamente
até a edição definitiva de 1532 , Orlando
Furioso teve uma origem modesta, como relata Ghirardi na introdução.
Ariosto apresentou-o apenas como uma continuação de
outro poema, Orlando Enamorado, escrito em 1483 por Matteo Maria
Boiardo, também de Ferrara. Como um contraponto ao Morgante,
de Luigi Pulci em que o imperador Carlos Magno e seu paladino
Orlando são tratados de forma cômica e irreverente
, Boiardo pretendeu criar uma obra séria, que fundisse
às tradições guerreiras carolíngeas
as histórias amorosas da corte do rei Artur. Com a morte
do autor, em 1494, Orlando Enamorado ficou inacabado, exatamente
no episódio que relata a derrota dos exércitos cristãos.
Foi a partir desse episódio que Ariosto retomou a história
do paladino de Carlos Magno. Mas a continuação do
poema se deu de forma inesperada. Ao invés de mostrar grandes
e heróicas façanhas do guerreiro contra os mouros,
a obra faz Orlando enlouquecer, enquanto seus companheiros vivem
aventuras igualmente loucas, que os levam até mesmo à
Lua, em busca de juízo. Tudo isso dentro de um universo
poético inteiramente novo, escreve Ghirardi. Nascia
não só um poema autônomo, mas uma obra-prima.
Como toda obra-prima, Orlando Furioso teve uma trajetória
tão brilhante quanto as gestas de Carlos Magno. O livro tornou-se
uma das obras mais lidas em toda a Europa moderna. Ainda no século
16, ele foi traduzido para o francês, o espanhol e o inglês,
além de inspirar outras grandes obras, como La Hermosura
de Angélica, de Lope de Vega, e Faerie Queene, de Spenser.
Cervantes, Galileu e Voltaire estão entre os mais famosos
admiradores de Orlando Furioso, que foi bem recebido também
entre as classes mais pobres da sociedade européia quinhentista.
Prova do sucesso do livro é um episódio vivido por
Ariosto em 1522, quando foi nomeado, pelo duque Afonso, governador
da Garfanhana, uma região distante e infestada de salteadores.
Na estrada que o conduzia à província para assumir
o cargo, Ariosto foi atacado por um bando de ladrões, que
o obrigaram a entregar tudo o que tinha. Vendo um exemplar de Orlando
Furioso, os facínoras descobriram tratar-se do próprio
autor da obra. Ao saberem que estavam diante do poeta, os
bandoleiros não só lhe devolveram tudo, como o deixaram
seguir entre aclamações, enquanto recitavam episódios
do poema, diverte-se Ghirardi.
A ampla repercussão de Orlando Furioso não correspondeu
a uma profusão de traduções da obra em português.
Enquanto os portugueses sempre leram o livro de Ariosto no original
italiano ou na versão espanhola de Jerónimo de Urrea
as primeiras traduções portuguesas só
surgiram no século 19 , os brasileiros conheceram apenas
uma edição em prosa, a de Salustiano da Silva Alves
de Araújo Susano, publicada no Rio de Janeiro em 1833, além
de versões parciais em verso e traduções portuguesas
publicadas no Brasil. Todas essas traduções
brasileiras, de qualquer forma, são hoje praticamente inacessíveis
ao leitor, lembra Ghirardi, que leciona Literatura Italiana
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP.
Esses dados valorizam a edição da Ateliê: pela
primeira vez no Brasil, Orlando Furioso é publicado em oitavas,
a forma poética com que Ariosto concebeu o poema. Ghirardi
tem o mérito de preservar também as rimas, tornando
sua tradução mais próxima da obra original.
A dificuldade dessa tarefa e a maneira bem-sucedida como
o tradutor se desincumbiu dela pode ser notada ao se analisar,
por exemplo, a oitava 5 do Canto II, que trata do combate entre
Sacripante e Rinaldo:
Come
soglion talor duo can mordenti,
o per invidia o per altro odio mossi,
avicinarsi digrignando i denti,
con occhi bieci e più che bracia rossi;
indi a morsi venir, di rabbia ardenti,
con aspri ringhi e ribuffati dossi:
così alle spade e dai gridi e da lonte
venne il Circasso e quel di Chiaramonte.
Como
dois cães vorazes e furentes,
Cheios de ódio mortal, ferina inveja,
Irados, a rosnar e a ranger dentes,
Co o rubro olhar, qual brasa que lampeja,
A ganir e a morder se põem ardentes,
Enquanto o hirsuto dorso lhes arqueja,
Assim, após a afronta e o desafio,
Dos ferros os rivais cruzam o fio.
A edição
é bilíngüe. Ao lado de cada verso em português
encontra-se o original italiano, o que facilita a comparação
e a avaliação do trabalho do tradutor. O texto é
entremeado por ilustrações de Gustave Doré
algumas das quais são vistas nesta página do
Jornal da USP , extraídas da edição de
Orlando Furioso publicada em 1894 na cidade de Milão. Cada
canto traz notas que auxiliam o leitor. Mas a obra não é
integral. Dos 46 cantos originais, estão publicados os oito
cantos iniciais e 12 dos episódios mais conhecidos. A editora
espera publicar os 26 cantos restantes. Mas isso depende do
fôlego do tradutor, brinca o editor Plinio Martins Filho,
da Ateliê. É um trabalho muito difícil.
Arte
e loucura
Ghirardi
não se limita a oferecer ao público brasileiro a tradução
de uma das obras máximas da literatura mundial. Mais do que
isso, na sua introdução ele discute com rigor uma
questão que, na época em que o livro foi escrito
em plena Renascença, então considerada uma cultura
racional e equilibrada , pareceu aos
mais cultivados um contra-senso: a loucura como centro do poema.
Lembrando que o Renascimento não é necessariamente
negação da loucura, o professor destaca que os clássicos
latinos principalmente Virgílio e Ovídio, que
tanto influenciaram Ariosto já tinham se dedicado
ao tema.
As origens da loucura de Orlando enraizam-se também no humanismo
cristão, segundo Ghirardi. Citando Cervantes que se
referia ao célebre artista de Ferrara como el cristiano
poeta Ludovico Ariosto , o professor acrescenta que
a imagem do cristianismo como loucura foi criada pelo apóstolo
Paulo, que em sua Carta aos Coríntios (1:23) contrapõe
à razão dos gregos a fé cristã. A
fé, vista como loucura pela razão pagã, considera,
por sua vez, loucura a vida dos ímpios (o que, aliás,
já ensinava a tradição judaica), escreve
Ghirardi. Desde o início do cristianismo, portanto,
a discussão da loucura envolve tanto o plano moral quanto
o propriamente intelectual. Eis por que, nos escritores cristãos,
conceitos como erro, mentira, vaidade
e outros semelhantes aparecem muitas vezes associados à discussão
da loucura.
Para Ghirardi, em Ariosto a poesia é vista como espaço
privilegiado do diálogo entre razão e loucura. Se,
contra as teorizações abstratas, Maquiavel defende
a autonomia do pensar político, também Ariosto, diante
da emergência das teorizações retóricas,
defende a autonomia da criação artística,
considera Ghirardi. Daí a importância que atinge,
no Orlando Furioso, o trabalho artesanal do poeta, pois é
dele que dependerá a criação do mundo onde
ambas as interlocutoras possam reconhecer-se. Essa é
a razão por que, segundo Ghirardi, Ariosto tornou-se um artista
como poucos e chegou a entusiasmar outros grandes artistas.
Nascido em Reggio, Ariosto logo foi levado pelos pais para a vizinha
Ferrara, centro político da região, governada por
uma das mais ilustres dinastias italianas, a casa dEste, segundo
conta Ghirardi. Embora tenha iniciado os estudos de direito, seus
interesses estavam voltados para as artes. Freqüentador assíduo
dos espetáculos de teatro patrocinados pela corte
onde eram representados os clássicos gregos e latinos ,
Ariosto tinha aulas também com o humanista Gregório
de Espoleto, que o iniciou na língua latina. Em 1500, com
a morte do pai, teve de abandonar os estudos para cuidar da mãe
e dos irmãos. Em 1503, um emprego concedido pelo cardeal
dEste voltou a dar-lhe certa tranqüilidade e a possibilidade
de continuar a escrever peças e poesias. São dessa
época duas comédias que o consagraram como um dos
maiores nomes renascentistas italianos, Cassaria e I Suppositi,
além de Il Negromante. Também nesse período
Ariosto compôs sua obra-prima, Orlando Furioso, cuja primeira
edição, de 1516, tinha 40 cantos e levou mais de dez
anos para ser elaborada. Sabe-se que em 1507 o poema já
estava parcialmente escrito, tanto que Ariosto leu alguns episódios
à irmã do cardeal, marquesa de Mântua,
revela Ghirardi.
Em 1522, Ariosto recebeu a nomeação para o governo
de Garfanhana. Mais do que um homem de letras, o poeta demonstrou
ser um ótimo administrador e levou a bom termo sua missão.
Retornando a Ferrara em 1525, casou-se e foi morar numa modesta
casa que comprara na via Mirasole, hoje denominada via Ariosto.
Com recursos suficientes para garantir sua tranqüilidade, continuou
a escrever e a revisar o Orlando Furioso. Um ano antes de morrer,
o poeta publicou a edição definitiva da obra, com
46 cantos.
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