Como era de se imaginar pelo título, a peça Hysteria
não é muito afeita a procedimentos convencionais.
Enquanto espera à frente do Palacete Vila Buarque, um casarão
construído em 1902 que hoje abriga a FAU Maranhão,
a platéia é dividida entre homens e mulheres. Cada
grupo se dirige a uma entrada diferente, rumo ao local da peça.
Aberta a porta, outra surpresa: não há palco, luzes
ou auditório. Apenas uma sala não muito grande, sem
adereços, onde cinco mulheres estão confinadas em
seus pensamentos. O público masculino entra sem ser notado,
sentando-se próximo à parede. O feminino, por sua
vez, é recebido aos gritos por Nini, que se apresenta como
enfermeira e as acomoda entre as outras internas de um sanatório
do século 19. A partir daí, a ação se
desenrola: os homens, apartados, assistem a tudo externamente; as
mulheres, dentro do espaço cênico, atuam com e como
as personagens.
O responsável pela idéia de Hysteria tem doze mãos,
seis cabeças e atende pelo nome de Grupo XIX de Teatro. As
cinco atrizes e o diretor trabalharam em conjunto, durante mais
de um ano, unindo referências históricas e familiares
para construir a peça. O processo colaborativo foi
a regra em todas as etapas do projeto, afirma Luis Fernando
Marques, diretor. Ele se refere ao sistema de criação
teatral tratado pelo curso de Antônio Araújo, professor
do Centro de Artes Cênicas da ECA/USP, onde a peça
teve seu embrião uma cena de quinze minutos com uma
velha, uma escrava e um gato imaginário. Terminado
o curso, já tínhamos decidido o tema da histeria,
a disposição do público e uma série
de apontamentos para um espetáculo maior, e decidimos ir
em frente, diz Marques.
Para criar as personagens, cada atriz partiu de casos reais e foi
estofando-os com elementos que achava apropriados. Além
de muitas obras literárias, fomos atrás de histórias
de avós, poemas, fotografias e outras referências,
diz Gisela Millás, intérprete de Nini. A divisão
de homens e mulheres na platéia, porém, não
foi tão planejada. Começou até meio displicente,
pois não sabíamos o que fazer com eles ali no meio,
então decidimos pô-los de lado, diz o diretor
da peça. Conforme avançamos nos estudos, a disposição
foi ganhando sentido, pois coloca o homem no papel de opressor,
ausente, e ao mesmo tempo capaz de um ponto de vista distanciado.
O grupo já se apresentou em diversos ambientes, e segue a
filosofia que sempre se pode aproveitar o disponível. Janaina
Leite, que interpreta a religiosa colecionadora de bilhetes Clara,
é enfática: batemos o pé para nos integrarmos
a cada espaço. Se o lugar tem um buraco na parede ou um pilar
bem no meio da cena, não vamos ignorá-lo. No
Palacete Vila Penteado, por exemplo, ela usa os três ralos
do cômodo para guardar sua coleção. Isso sem
mencionar a acústica, que nas cenas de maior tensão
chega a causar efeitos surpreendentes. Segundo Marques, a
escolha do palacete não foi aleatória. Além
de ser o marco inicial de Higienópolis, é onde começa
a idéia de uma São Paulo do café, grande e
elitista. Enquanto em todo o casarão vivia apenas uma família,
decidimos fazer a peça na cozinha, onde dormiam no mínimo
dez empregados. Intermediado pelo Grêmio dos Alunos
da FAU, o diretor requisitou o espaço à FAU Maranhão,
e recebeu a resposta positiva antes mesmo de estrear a peça
com sucesso no Fringe, mostra paralela do Festival de Teatro de
Curitiba.
O contato com o público também traz um forte elemento
de improvisação em Hysteria. A todo momento, as personagens
se dirigem às mulheres presentes, seja para pedir ajuda,
fazer uma prece ou conclamar a revolução. Intérprete
de Hercília, uma feminista à frente de seu tempo,
a atriz Raissa Gregori lembra uma apresentação marcante
no Educandar Dom Duarte, apenas com senhoras carentes. Em
termos de interatividade, foi a mais tensa de todas, elas ficaram
bem fechadas. Ao mesmo tempo, não havia limites claros para
a participação, elas falavam, levantavam e iam olhar
os pássaros...
Com o sucesso da peça, começam as especulações
sobre o futuro do grupo. Marques se diz tranqüilo. Foi
minha estréia na direção, mas não tenho
nenhuma paranóia de fazer carreira. Gosto dessa peça,
das pessoas com que trabalho, do texto, e acredito ainda haver muito
a ser feito. Janaina Leite concorda: começamos
bem despretensiosos, pensando que se não desse certo, tudo
bem. A coisa acabou tomando uma proporção que a gente
não esperava, e ainda estamos meio que tomados pela surpresa.
Hysteria
fica em cartaz até 14 de julho, na FAU Maranhão (r.
Maranhão, 88), todos os sábados e domingos, às
16h. Ingressos a R$ 20,00, com direito a meia-entrada. Mais informações
pelo tel. 5677-0369.
|