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educação popular é uma das estratégias de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Trata-se de modelo vinculado às necessidades do público engajado, com características sociais específicas. O MST defende pedagogia voltada para a conscientização do indivíduo, misturando tendências. “Eu diria que tem algo do educador Paulo Freire e também da escola soviética, onde se juntam escola e trabalho”, explica o professor Robinson Janes, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Univesidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília. Janes pesquisou as formas de educação do movimento e, em tese de doutorado, concluiu que elas se sustentam em dois pilares: autogestão e educação popular. Tal comprovação apóia-se, sobretudo, em observações e depoimentos colhidos no Pontal do Paranapanema, onde a presença do MST é forte, na participação em reuniões e na análise de documentos publicados. Fundado no final da década de 1970, em 1985 organiza-se o setor de educação, uma das primeiras reivindicações nos assentamentos.
Para a professora livre-docente Zilda Iokoi, chefe do Departamento de História da USP, é preciso reconhecer a educação como grande veículo inovador do movimento sem-terra. Também pesquisadora desse tema, ela lembra que “nunca um movimento se preparou tanto para formar a idéia de comunidade, discutindo a problemática dos excluídos. Criou elo cultural capaz de reafirmar o modo de vida camponês com produção agrícola e vida comunitária efetivos”. Jamais um movimento social foi tão estudado, contemporaneamente. Inspirou dezenas de teses e análises que “acreditaram, ponderaram, acrescentaram questões” à sua experiência.
A escola de formação de quadros é um dos elementos fundamentais para viabilizar a articulação nacional. “Espalhado por todo o País, o MST convive com realidades, formas produtivas e elos organizativos diferentes uns dos outros. Por isso, criou uma coordenação nacional com a possibilidade de dar uma voz ao movimento, através da escola de formação e desenvolvimento de lideranças”, revela a professora.
Instituições ligadas à rede pública não contemplam a proposta educacional do MST, por isso, a escolaridade de crianças de 0 a 6 anos, ensino fundamental e médio foi assumida, tendo por base necessidades ali detectadas. Crianças aprendem como organizar-se coletivamente e a estudar conteúdos escolares sempre relacionados à prática. São várias as referências bibliográficas pelas quais os grupos se orientam. “Fazem um pool de tendências, usando a contribuição de pedagogos russos, brasileiros, adeptos do construtivismo e outros, de modo a formar pedagogia própria”, segundo Robinson Janes.
Para o professor, a influência do educador Paulo Freire se dá no processo de conscientização política, tentando resgatar o conhecimento da prática cotidiana, a partir da qual é possível aprender a lidar com o próprio assentamento e a trabalhar em cooperativa. Diante dessa perspectiva, foram montadas escolas destinadas à formação de professores, a primeira no Rio Grande do Sul, reconhecida pela Secretaria da Educação daquele Estado. Os cursos são oficiais, equivalentes ao magistério, para os quais são oferecidos certificados, iniciativa que vem se estendendo a outras unidades da Federação. Demoram mais tempo para serem concluídos, pois a carga horária, embora oficial, permite que sejam realizados apenas em períodos de férias — janeiro, fevereiro e julho. Tal organização do calendário escolar é prevista na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação e poderá sofrer alterações, desde que justificadas pela carência da comunidade.
De posse dos certificados, os profissionais voltam a seus locais de origem e continuam a ministrar aulas na rede pública. Os integrantes do MST, porém, vêm pleiteando, cada vez mais, sua presença em assentamentos e acampamentos. Este ano deve formar-se a sétima turma. Ao todo, a instituição formou cerca de 300 professores.
“Além de influenciarem o ensino regular, através de diálogos com diretores e pais de alunos, organizarem cursos, refazendo programações escolares, esses professores também visitam Secretarias da Educação, com o objetivo de mostrar ao poder público a escola adequada à finalidade do movimento” , esclarece Janes.
O MST nasce em região de base camponesa muito forte, no Estado do Rio Grande do Sul, apoiado pela Igreja, especialmente pela corrente da Teologia da Libertação. A ele agregam-se desabrigados gaúchos — médios e pequenos proprietários — além de população indígena que perdeu terras para o projeto da hidrelétrica de Itaipu. Áreas de plantio concentraram-se, depois, no cultivo de soja, quando o governo oferecia financiamento apenas para esse tipo de cultura. “Muitos acabaram sendo convencidos pelo governo — ainda no regime militar— a aceitar terras no Centro-Oeste e no Norte brasileiros”, afirma a professora Zilda.
A primeira geração que sai pelo País afora acaba sofrendo enorme derrota: explorada, submete-se a "trabalho escravo" e tem famílias desagregadas. “Rapidamente sinalizam a seus parentes e parceiros que não deixem o Rio Grande do Sul, mas formem uma resistência”, esclarece Zilda. O apelo resultou em acampamento com 1.500 famílias, por três anos, ao longo da rodovia BR-116, dando origem a elo de solidariedade capaz de mover a formação do MST.
Segundo ela, aqueles proprietários se perderam por conta da não-aplicação de políticas governamentais e mantiveram relação internacional muito firme, especialmente por conta da Igreja. Essas instituições, sobretudo a holandesa, apoiaram o desenvolvimento de projetos de pesquisa, oferecendo a oportunidade de criarem-se grupos de pesquisadores, que apoiaram o movimento desde o início, com críticas à economia brasileira e experiências comparativas, resultando em forte elo internacional que se mantém até hoje.
“O movimento, atualmente, se apóia em centrais socialistas mundiais, organizações trabalhistas, de direitos humanos, defesa do planeta, incluindo as ambientalistas como o Green peace”.
Segundo Zilda Iokoi, o MST se relaciona com "o que há de mais avançado na discussão do mundo sustentado, democrático, igualitário e de preservação ambiental, ganhando dimensão e recursos internacionais significativos." Na sua avaliação, “o movimento é sólido, muito bem orientado, com metas claras e urgentes para a atual situação nacional”.
Faz parte da estratégia das lideranças deixar claro para o sem-terra a necessidade de qualificar-se para valorizar a luta. Tal postura decorre de experiência dos que viveram todo o processo desde a expropriação até os acampamentos e assentamentos. O movimento exigiu da rede pública que o MST não fosse “negado, ignorado ou desqualificado” em escolas onde filhos de manifestantes fossem matriculados. A primeira grande experiência nesse sentido, na cidade de Sumaré, próxima a Campinas, no interior de São Paulo, é considerada modelo na formação da teoria de comunicação como parte do projeto educacional.
Reuniram-se, no município, subempregados e desempregados urbanos. “Ao instalar-se, perceberam a necessidade de preparação desses trabalhadores para a vida no campo, com treinamento técnico, articulação de cooperação, manejo com a terra e escolaridade, pois não eram sequer alfabetizados.”

Formação superior

Existem escolas para a formação de quadros dentro do MST e, apesar de terem encontrado “forte resistência” por parte do governo, algumas conquistas foram obtidas, como o reconhecimento de cursos pelo Conselho Estadual de Educação. Na percepção do professor Janes, a possibilidade de conflito entre MST e governo pode ser proporcional ao crescimento das metas educacionais. Este ano ou no próximo, deverá ser inaugurada o primeiro instituto de ensino superior do MST. “O local ainda está sendo decidido mas a tendência é que seja em São Paulo. A instituição deverá contar com professores de vários países do mundo, pois o setor de educação está se organizando para isso”, informa o professor.
Teóricos de vários países, alguns dos quais deverão lecionar no possível instituto, visitam constantemente o movimento, com o objetivo de conhecê-lo ou apoiá-lo.
“De todos os que conhecemos, o MST é o que mais conseguiu avançar nesse tipo de proposta. Muitos movimentos falam em educar, porém não conseguem montar estrutura como a deles”, constata o pesquisador. O fortalecimento da ênfase educacional deriva de seu crescimento nas últimas décadas. Geridas como cooperativas autogestionárias, as escolas são assumidas pelos alunos desde a chegada até o final do período. Formam equipes de limpeza, manutenção, alimentação e outras necessárias ao bom andamento da instituição. “Têm momentos alternados de lazer e trabalho, em tempo integral, quando freqüentam a escola dos acampamentos, nos períodos de férias. No restante do tempo, assistem às aulas na rede pública.”
É exigida do professor forte formação política para poder repassar aos alunos informações afinadas com o movimento. A experiência do MST é considerada única, pois tem origem em carência imediata. Funcionam no Brasil, há cerca de cinco anos, cursos superiores de pedagogia e agronomia, com o objetivo de formar técnicos destinados a lidar com plantação e gado. Também há cursos de relações internacionais e comunicação, compondo a estrutura interna.
“O MST está criando uma situação paralela ao sistema educacional brasileiro”, revela Robinson Janes, para quem este não deveria ser entendido apenas como movimento invasor: “Trata-se de um equívoco, pois o MST é muito mais do que aparece na mídia. Mantém estruturados setores de cultura, saúde, produção, esportes — quase todas as áreas que ajudam na formação do jovem”.
O professor não acredita que o MST esteja tentando formar um governo paralelo: “Um governo precisa de muita coisa, como sistema produtivo e financeiro funcionando; por isso, acho muito difícil”. Mas há quem vincule esta experiência à criação de um sistema educacional paralelo em razão, por exemplo, da implantação de projetos como a Ciranda Escolar, para a faixa de 0 a 6 anos, e outros, para o ensino fundamental e médio.
Ainda falta estrutura para montar escola própria para professores, dentro dos assentamentos, embora existam planos nesse sentido. Para o professor Janes, o movimento se destaca também na ousadia em interferir. “Hoje, na literatura especializada, é quase obrigatório conhecer a experiência pedagógica do MST.” Segundo ele, há vários livros publicados sobre o assunto. Além de visar à formação política do cidadão assentado, os integrantes do MST tencionam “prender o homem à terra”, conquistando-a definitivamente, convencendo o jovem a não abandoná-la.
A propósito de invasões de Ministérios e da fazenda de familiares do presidente Fernando Henrique Cardoso, afirma: “Achei lastimável, por contribuir para tornar o movimento impopular. Assim, não trata da luta pela terra, mas revela forma de pressão que não sei se ajudou ou atrapalhou”.
A prática de invasões foge das origens do movimento. Em dez anos de pesquisas, Robinson Janes concluiu que o MST surge com o objetivo de ocupar terras improdutivas, para forçar a reforma agrária. “Quando sai da terra para invadir prédios, tem início uma conotação político-partidária: ao mesmo tempo em que foge dos objetivos, enfraquece o movimento social”, acredita.
O Brasil tem áreas improdutivas suficientes para atender a todas as solicitações. Dispõe de quantidade enorme de terras devolutas para assentar, “com tranqüilidade”, os 4 milhões de sem-terra, em potencial, e também a metade desse total de sem-terra declarados.
“A reforma agrária resolveria problemas sociais gravíssimos, como a fome, o desemprego e a violência.” Geraria, ainda, alguns milhões de empregos, imediatamente.
Para Zilda Iokoi, o Brasil está num dilema: ou admite que o movimento dos sem-terra é um parceiro fundamental para acabar com a violência, a exclusão social, a miséria, engendrando uma relação positiva de distribuição de renda democrática, ou vai para a barbárie. “A decisão de para onde irá essa curva está nas mãos do governo”, diz ela, para quem o movimento fez e faz coisas que deveriam ser aplaudidas por toda a sociedade.
“Em vez disso, ficamos oscilando entre a velha dicotomia capitalista-comunista já desaparecida da cena mundial. Em seu lugar, devemos colocar o desenvolvimento de sociedade solidária, auto-sustentável, que é postura mundialmente avançada. O MST vem fazendo esforço absolutamente significativo nesse sentido, embora seja criminalizado com tentativas de isolamento, o que é um absurdo.”
Até o Partido dos Trabalhadores, segundo ela, titubeia em relação ao movimento, demonstrando oportunismo eleitoreiro: “Isso é um escândalo, não é mais possível viver desse jeito. O MST deveria ter sua experiência valorizada pela universidade, pelos trabalhadores e pela sociedade, pois a questão da terra não é dos camponeses, mas do País”.
Embora o governo FHC tenha tido a oportunidade necessária para avançar nessa questão, “fez muito pouco”. Há denúncias a respeito de dados maquiados sobre reforma agrária, publicados logo depois de o ministro Raul Jungman, do Desenvolvimento Agrário, deixar o governo. “Participei, em Brasília, do Pronera — Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária, cuja proposta era bem mais ambiciosa do que o resultado obtido. Havia verbas disponíveis, cortadas aos poucos, das quais hoje restam apenas resíduos. De início, a meta era alfabetizar 100 mil assentados, mas não chegamos a 20 mil”, lamenta o professor Janes.

Trabalho cooperativo

Cooperativas coletivas de produção desenvolvem, também, cursos de formação para trabalho cooperativo, ainda não reconhecidos. O MST entende a cooperativa como fórmula capaz de enfrentar o mercado neoliberal. Nessa trajetória, “enfrenta muitos problemas, talvez gerados pela falta de formação”, acredita o professor.
O assentamento de Promissão, no interior do Estado de São Paulo, reúne cerca de 600 famílias e é dos maiores e mais antigos. Mantém funcionando cooperativas de produção e outros setores, como o de cultura. Experiências com cooperativas no Pontal do Paranapanema e no sul do País vêm dando certo. CDs gravados com músicas ligadas à terra, de cunho político, animam os encontros, onde manifestações artísticas incluem ainda teatro e várias performances.
Cozinha comunitária, farmácia e escola são logo implantadas em todos os assentamentos, além do hasteamento da bandeira vermelha, símbolo máximo do MST. Mesmo em condições precárias, existe interesse dos líderes em buscar pessoas com alguma formação na área para o atendimento à saúde, como enfermeiros e auxiliares de enfermagem. Farmácias são montadas, mesmo em barracos.
Não existe orientação religiosa por parte do movimento, mas reuniões dos mais diferentes credos, embora, na origem, seja forte a influência da Igreja Católica. O MST surgiu de um racha dentro da Igreja, depois de detectada lentidão por parte da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na condução dos problemas relacionados à luta dos manifestantes. Ainda hoje, nas regiões Norte e Nordeste, quem domina é a CPT; e no Sul e Sudeste, o MST tem atuação relevante, ambos com objetivos comuns.

  NESTA EDIÇÃO

Zilda: Movimento devia ser ouvido

Janes: Tese de doutorado sobre a educação nos assentamentos













 




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