A este título poderia
dar início a uma discussão sobre três assuntos.
O primeiro seria uma crítica à novela veiculada pela
Rede Globo de Televisão. O segundo seria uma crítica
sobre a clonagem. O terceiro seria uma discussão sobre a abordagem
do problema das drogas pela novela. Vou falar sobre este último.
A novela O Clone vem conseguindo fazer o que muitos programas
de prevenção de drogas não conseguiram: ter um
espaço de divulgação imenso, atingir mais da
metade das residências do País e trazer o tema para discussão.
A televisão vem apresentando em horário nobre um problema
de saúde pública cheio de preconceitos, exibindo um
grau de amadurecimento louvável. Chegamos nesta situação,
talvez inimaginável há alguns anos, devido à
percepção por parte das classes mais dominantes de que
a droga é um problema que atinge a todos.
Vou aproveitar o processo de envolvimento da personagem Mel com drogas
para discutir algumas questões sobre o tema. Acho que mesmo
os que não estão acompanhando a novela serão
capazes de acompanhar a discussão do tema.
O processo que leva à dependência de drogas pode ser
dividido em três etapas: experimentação, uso e
dependência.
Voltando à novela: a Mel é uma garota no final da adolescência
vinda de uma família de classe alta. Essas características
não são raras no panorama dos usuários de drogas.
As drogas hoje não estão mais restritas às bocas
ou favelas. Nas festas de jovens de todas as classes sociais, as bandejas
de coxinhas e empadinhas dividem espaço com as bandejas com
carreiras de cocaína já prontas para uso.
Os baseados já são vendidos prontos para o cliente não
perder tempo. As chamadas club drugs como êxtase e ketamina
são também muito comuns.
O contato com as drogas começa pela experimentação.
Quanto mais precoce tivermos o contato com a droga, maior a chance
de termos problemas com seu uso. Não é por acaso que
restringir o acesso ao uso de tabaco e álcool aos menores de
18 anos é uma política presente em quase todos os países
do mundo. Pena que no Brasil esta lei não seja cumprida. Somente
10% dos fumantes começaram a fumar depois dos 19 anos.
A experimentação de drogas é um fenômeno
comum. Na USP, segundo levantamento feito pelo Grea, 90% dos alunos
relataram já ter experimentado álcool, 43% tabaco, 38%
outras drogas, 31% maconha e 8% cocaína. Essas pesquisas tendem
a subestimar os valores já que os entrevistados podem ter receio
de relatar atividade ilícita, apesar dos questionários
serem anônimos. Em muitos países, os índices de
experimentação de maconha entre adolescentes são
maiores: 75% nos Estados Unidos e 71% na Nova Zelândia. Esses
números nos levam a refletir que o episódio em que a
Mel e os amigos experimentam maconha é muito freqüente
e que o processo de prevenção do uso abusivo deve focar
não só evitar a experimentação, mas, de
forma mais realista, evitar que os experimentadores evoluam para uso
problemático.
A Mel experimentou a droga e rapidamente se interessou em repetir
o uso. Esta é uma das possibilidades resultantes do encontro
indivíduo-droga. Depois da experimentação pode
vir o uso e do uso a dependência. Para maconha, 1 usuário
em cada 10 se torna dependente, para cocaína 1 em cada 6, para
crack 1 em cada 4, para álcool 1 em cada 8.
Fatores
de risco
No
momento de exposição às drogas, entram em jogo
os fatores de risco para o indivíduo tornar-se um usuário
freqüente. São considerados fatores de risco:
1. Hereditariedade. Filhos de pai ou mãe dependentes de droga
têm mais chance de se tornarem dependentes quando experimentam
droga do que os que não têm história familiar.
Não sabemos ainda como essa vulnerabilidade se transmite
mas deve estar relacionada ao efeito da droga em nosso corpo. Alguns
indivíduos têm mais prazer, outros têm mais desconfortos
e os efeitos devidos à droga podem ser herdados geneticamente.
2. Psicopatologia. Indivíduos com transtornos emocionais
têm mais chance de se envolverem com a droga após a
experimentação. Ansiedade, depressão, traços
de personalidade com busca de sensações fortes (sensation
seeking), hiperatividade, déficit de atenção
são alguns dos fatores de risco.
3. Pressão de grupo. Muitos adolescentes têm como verdade
a afirmativa todo mundo usa. Esta sensação
estimula o indivíduo a usar para poder fazer parte do grupo.
4. Acesso. O acesso hoje às drogas é muito fácil.
Podemos até fazer por delivery sem precisarmos ir até
a boca como a Mel faz. O acesso fácil democratiza
o uso.
5. Situação familiar. Pais mais tolerantes ao uso
podem aumentar as chances de seu filho usar drogas. Discursos do
tipo faz parte da idade, é coisa de adolescente,
isso passa, podem impedir os familiares de abordar seus
filhos para conversarem sobre o assunto. Famílias disfuncionais
com conflitos, violência e pouca interação também
podem predispor ao consumo de usá-las.
6. Falta de informação. Adolescentes mal-informados
sobre as drogas têm mais chance de usar drogas.
A Mel experimentou maconha e posteriormente passou a usar cocaína.
Esse comportamento levanta uma questão muito debatida nos
dias atuais: usar uma droga leva ao uso de outras? Algumas pesquisas
apontam que sim. Se você é um fumante de tabaco, tem
2,8 vezes mais chances de se expor à maconha do que quem
não fuma tabaco. Se você é fumante de maconha,
tem 5 vezes mais chances de se expor à cocaína do
que os não fumantes de maconha. Esse risco aumentado é
explicado pelo convívio do usuário de maconha com
usuários de outras drogas, diferentes drogas ilícitas
são adquiridas muitas vezes no mesmo local, pela curiosidade
de usar outras drogas e pelo gosto que se cria de ficar
louco. Também temos que levar em conta que os
fatores de risco para uso de drogas são comuns a muitas delas,
deixando o adolescente usuário de maconha também em
risco para cocaína ou outras substâncias.
A Mel vem tendo muitos prejuízos em sua vida devido ao uso
de drogas. É importante destacar que muitos programas de
prevenção de drogas assumem uma postura terrorista,
querendo transmitir medo aos jovens com informações
do tipo vocês vão queimar seus neurônios,
vão tornar-se estéreis, vão
ter uma overdose, vão ficar malucos ou
vão ter um infarto. Essas complicações,
na maior parte das vezes baseadas em conseqüências físicas
do uso, podem ocorrer mas são menos freqüentes do que
as complicações psicossociais. A maior parte dos usuários
é jovem e saudável fisicamente. O aumento da mortalidade
em usuários está muito mais associado à violência
ligada à droga e/ou à Aids do que ao uso em si. O
estrago que o uso de drogas faz no desenvolvimento psicológico
e no amadurecimento social dos usuários é gigantesco.
Reaprender comportamentos saudáveis e/ou vínculos
sociais após dez anos de uso pesado de drogas não
é uma tarefa fácil. O uso pesado de drogas durante
a adolescência forma cidadãos incompletos
que precisam ser reabilitados. A abstinência é somente
o primeiro passo da verdadeira recuperação. O dependente
precisa refazer seus vínculos afetivos, sociais, profissionais,
financeiros para conseguir voltar a ter prazer na vida.
Hábitos
sociais intrigantes
No
Brasil, da mesma forma que vem acontecendo em muitos países
do mundo, a maconha está saindo do grupo das drogas
que causam problemas para se tornar algo prazeroso,
natural e que não causa nenhum prejuízo. O processo
de liberalização, em alguns casos legalização,
não é baseado em nenhum conhecimento científico
que dê suporte a essas iniciativas. Parece, na verdade, uma
reação social à disseminação
do uso e da escolha pela sociedade do caminho da aceitação
do uso para não ver seus filhos na cadeia. Estamos assistindo
a mudanças sociais intrigantes: muitos sentem-se mais à
vontade para pedir para as pessoas apagarem seu cigarro de nicotina
do que seu baseado.
O diagnóstico da dependência de drogas não deve
se basear na dicotomia dependência psicológica (menos
grave) x dependência física (mais grave).
Os critérios atuais de diagnóstico não exigem
a presença de sintomas físicos para caracterizar dependência.
Cocaína, por exemplo, é uma droga capaz de estabelecer
uma dependência extremamente grave e não produzir sinais
muito evidentes de dependência física como síndrome
de abstinência (sintomas e sinais causados pela ausência
da droga) e tolerância (necessidade de doses maiores para
se obter o mesmo efeito).
Após os prejuízos, alguns usuários procuram
tratamento ou são mandados para tratamento por
familiares. A maior parte das pessoas acredita que a principal forma
de tratamento é a internação. A internação
serviria para a tão desejada desintoxicação.
Familiares acreditam ou querem acreditar que o usuário irá
permanecer um período em uma clínica e terá
alta curado, da mesma forma que os pacientes com apendicite
ou pneumonia saem do hospital.
A internação é indicada em casos restritos:
risco de auto e heteroagressividade (agressão a si mesmo
e a outros), risco de suicídio e uso tão intenso que
impede a abordagem ambulatorial. A internação não
é o fim do tratamento mas sim o começo. Com a internação
estamos objetivando a promoção da abstinência
para iniciarmos o processo de prevenção de recaídas,
este sim o ponto central do tratamento. Este modelo baseia-se no
conceito atual de considerar a dependência de drogas uma doença
crônica e não aguda. Como no caso da hipertensão
ou diabete, a dependência de drogas deve ser tratada por muitos
anos. Dependentes de drogas vão, por muitos anos, ser vulneráveis
ao uso e se usarem terão menos chances de controle de uso
do que indivíduos que nunca usaram. Você já
percebeu que um ex-fumante, mesmo depois de anos sem fumar, pode
voltar a fumar rapidamente quando experimenta novamente
um cigarro. Se uma pessoa que nunca fumou acompanha o ex-fumante
na experimentação, ela vai precisar de muito mais
tempo e esforço para se tornar um fumante. A
vulnerabilidade a se tornar dependente deve permanecer por toda
vida.
Uma pergunta sempre vem à mente quando discutimos as drogas.
E a família? Para muitos, a família é um dos
grandes vilões da história. Estamos sempre culpando
os pais ausentes ou rígidos. Estamos
sempre dizendo para os pais conversarem com seus filhos. Estamos
sempre mandando os pais fazerem isto ou aquilo. Os pais são
muitas vezes acusados de culpados pelos profissionais que cuidam
dos dependentes. Todavia, no momento do tratamento, devemos descartar
o termo culpa e conversar sobre a participação de
todos na situação. A família sofre muito. As
relações se estremecem, os pais entram em conflito
com acusações mútuas e a crise está
estabelecida. Tratar da família sem acusações
é uma necessidade em casos de dependência de drogas.
Programa
na USP tem 7 anos
A USP não tem se eximido da responsabilidade de discutir
o tema. O Produsp Programa de Prevenção e Tratamento
do Uso de Drogas na USP , desenvolvido pelo Grea (Grupo Interdisciplinar
de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP),
iniciou suas atividades em 1995, com o desenvolvimento de uma pesquisa
epidemiológica sobre o uso de drogas entre alunos da graduação,
no campus da capital. A partir da realização da pesquisa,
que tornou conhecido o comportamento dos alunos em relação
ao uso de drogas, foram planejadas ações preventivas
que começaram a ser desenvolvidas em 1996 e que vêm
sendo aperfeiçoadas ao longo destes cinco anos. Entre as
atividades preventivas destacam-se: cursos de capacitação
para as chefias, cursos de atualização Temas
Básicos em Álcool e Drogas abertos à
comunidade, debates, palestras nas Sipats (Semana Interna de Prevenção
de Acidentes de Trabalho), performances teatrais para estimular
a discussão, boletim informativo sobre atividades e atualidades,
cartilha explicativa para orientar as chefias, agenda de atividades
do programa via Internet, distribuição de folder e
orientação de grupo de estudos.
Além das atividades preventivas, o programa passou a oferecer
tratamento para membros da comunidade USP com problemas relacionados
ao uso de álcool, drogas e nicotina.
Para ingressar no programa de tratamento, o interessado deverá
marcar triagem através do setor de convênios do Hospital
Universitário (HU). O tratamento oferece atendimento médico,
psicológico para o dependente e para sua família.
O programa de tratamento já atendeu 400 pacientes, sendo
76% funcionários não-docentes, 7% alunos, 4% docentes,
12% dependentes de funcionários docentes/não-docentes
e 1% aposentados. Os atendimentos passaram de 2.500 no biênio
96/97 para quase 7.000 no biênio 00/01. Em 2001, 80% dos atendimentos
foram oferecidos aos dependentes de álcool e nicotina (drogas
legais). Em 1996, 90% dos pacientes eram do sexo masculino; em 2001,
as mulheres atingiram 35% do total de pacientes atendidos, principalmente
pela procura para tratamento da dependência de nicotina.
O Produsp vem, na área de prevenção, procurando
envolver os alunos. Em parceria com a ECA Jr., o programa promoveu
um concurso entre alunos da ECA e da FAU para elaboração
de cartazes sobre prevenção de drogas. O cartaz vencedor
será utilizado pelo programa na Universidade. Recebemos 88
inscrições. A premiação será
no dia 18 de junho, às 19 horas, no anfiteatro do prédio
da Administração da Escola Politécnica e todos
estão convidados. Nesse dia teremos também uma palestra
sobre As drogas e a mídia, a ser proferida pelo
prof. dr. Arthur Guerra de Andrade, e a apresentação
de três vinhetas produzidas pela TV USP para o programa de
prevenção de drogas da Universidade.
E tem mais: preparem-se para o dia de Alerta ao uso
excessivo de álcool que está sendo preparado para
o segundo semestre deste ano.
Participe.
Entre em contato. Dê sua sugestão. Telefones do Grea/Produsp:
3081-8060, 3064-4973 e 3069-6960.E-mail:produsp@usp.br.
|