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Quem assistiu a uma das três peças — O Paraíso Perdido, O Livro de Jó ou Apocalipse 1,11 —, sabe por que o grupo tem esse nome, Teatro da Vertigem. Os atores utilizam técnicas de dança, acrobacia, treinamentos de butoh, kempô, capoeira e até meditação. Também os sentidos da visão, audição e olfato dos espectadores são intensamente envolvidos. E é por esse motivo que o diretor Antonio Araújo escolheu espaços não-convencionais para as apresentações dos espetáculos, uma igreja, um hospital e um presídio, respectivamente. Não que ele esteja inventando moda, como diz Aimar Labaki no livro, já que o teatro nasceu na praça pública e passou pelos mais diversos espaços, mas porque é nesses locais que o texto ganha força.
Mas como tudo começou? Araújo se formou na USP em Teoria e Direção Teatral, atuou em alguns espetáculos e dirigiu outros a convite. Mas logo chegou à conclusão de que não podia viver a reboque de projetos esporádicos. Foi assim que surgiu a idéia de convidar um grupo de atores para ler e experimentar. Durante cerca de um ano, o grupo se reuniu para fazer o treinamento do método Laban, estudar a transposição de conceitos de física para o trabalho do corpo do ator e ler textos. Mas não se interessaram por nenhuma peça de teatro escrita e foi assim que decidiram elencar temas. Chegaram a um único: o lugar do sagrado. Nascia a trilogia bíblica.
Atraído pelo texto e pela figura do diabo presente no poema de John Milton, Araújo e o grupo, em parceria com um dramaturgo (outra característica marcante do Teatro da Vertigem), nesse caso Sérgio Carvalho, começaram o processo de criação da primeira peça, O Paraíso Perdido (1992), que discute a descrença do homem contemporâneo. Foi encenada na Igreja de Santa Ifigênia, em seu centenário, o que gerou muita polêmica. Logo depois da estréia, seguiram-se manifestos e passeatas de católicos e até ameaças, como uma carta anônima em que o autor dizia que o templo sagrado havia sido profanado com imundícies e seria vingado. Também foi tema de muitos debates públicos. Mesmo assim o espetáculo encontrou ampla aceitação de público e crítica.
Depois de um balanço, o grupo viu que o tema estava longe de ser esgotado. Voltaram à Bíblia e desta vez o dramaturgo convidado foi Luís Alberto de Abreu. A montagem de O Livro de Jó (1995) se deu em um hospital abandonado, o Humberto I, nada mais adequado já que o cenário bíblico pressupõe um deserto. Os seus três andares percorridos representavam o caminho de redenção de Jó (interpretado por Matheus Nachtergaele), que, nu, de início surgia mergulhado em um banho de sangue literal e figurado (apresentando assim uma realidade fortemente vivida na época, a Aids) e permanecia a maior parte do tempo pendurado em uma espécie de pau-de-arara armado em um dos leitos para compor, na violência ao próprio corpo, um Jó que interrogava Deus sobre as causas de seu padecimento. O sucesso foi consagrador. O espetáculo representou o Brasil por três vezes, no Festival de Bogotá, na Dinamarca e em Moscou.
O diretor teve então a oportunidade de conhecer outras realidades cênicas através de uma bolsa e passou uma temporada nos Estados Unidos. Na volta encarou um novo processo de montagem, que considerou o final de um ciclo e uma trilogia de espetáculos. O Apocalipse de João, também da Bíblia, deu vida a Apocalipse 1,11 (2000), que remete ao massacre dos 111 presos no Carandiru em um julgamento da sociedade. O dramaturgo escolhido foi Fernando Bonassi, um talento que se firmou nos anos 90 como autor de textos de alta voltagem de violência e erotismo. Depois de passar por uma boate, o público é encostado na parede de um corredor longo e estreito, ouve-se tiros, surge o cheiro de pólvora no ar e a gritaria e o barulho dos coturnos se aproximam com a chegada dos personagens, representando o massacre dos presos.
O livro traça todo esse percurso, reunindo ensaios de Aimar Labaki, Silvana Garcia e Sílvia Fernandes que contam a trajetória do Teatro da Vertigem e depoimentos dos integrantes do grupo sobre o processo de criação, além do texto integral dos três espetáculos e uma amostra da recepção crítica dos trabalhos no Brasil e no exterior. Traz ainda uma cronologia e a bibliografia completa do grupo, listando artigos, críticas, entrevistas, notas. É totalmente ilustrado com mais de 140 imagens, a maioria inédita, dos ensaios, da concepção dos figurinos, palco, iluminação e produção. Até seu projeto gráfico, assinado por Rodrigo Cerviño Lopes, apresenta um diferencial: fechado, o livro parece estar caindo, em vertigem; aberto, lembra as asas de um anjo, principal personagem de O Paraíso Perdido.

O lançamento de Trilogia Bíblica (Publifolha, 360 págs., R$ 49,00) acontece nesta segunda, a partir das 19h, na Fnac (av. Pedroso de Moraes, 858, tel. 3097-0022).

 


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