NESTA EDIÇÃO
O filósofo árabe Averróis e Tomás de Aquino receberam forte influência das idéias aristotélicas
Aristóteles segundo uma escultura grega e num quadro de Gozzoli
Uma edição da Metafísica datada do século 13


Ao longo da história, a existência dos seres sempre despontou como um dos grandes mistérios da humanidade. “Por que existe algo em vez de o nada? O que faz com que se formem as estrelas, a árvore, o homem? Qual é, enfim, a essência do ser?” são perguntas que — apesar dos avanços da ciência — continuam a desafiar a mente de filósofos, físicos e biólogos. Em busca de respostas a essas questões, o homem produziu grandes obras. Uma delas é a Metafísica, do filósofo grego Aristóteles (384-322 antes de Cristo), que acaba de ganhar nova edição no Brasil, lançada pelas Edições Loyola: a editora colocou recentemente no mercado a monumental edição da Metafísica preparada pelo filósofo italiano Giovanni Reale.
A edição de Reale compreende três volumes. O primeiro, com mais de 320 páginas, inclui um ensaio introdutório, que discute a origem do livro de Aristóteles, aborda os principais conceitos nele expressos e apresenta um resumo de cada parte da obra. No segundo volume, com 700 páginas, encontra-se o texto grego acompanhado da tradução. O terceiro volume (750 páginas) contém notas e comentários. A tradução da edição de Reale para o português é assinada pelo professor Marcelo Perine, que leciona Filosofia na PUC de São Paulo.

A doutrina do ser

A Metafísica — “as coisas além da física”, em grego — não foi organizada por Aristóteles como uma obra unitária. Na realidade, ela está dividida em 14 livros, escritos pelo filósofo em diferentes épocas, que no entanto conservam uma “unidade especulativa de fundo”, segundo Reale. “Negando tal unidade, torna-se simplesmente impossível a filosofia dos livros chamados Metafísica, tanto em seu conjunto como individualmente”, acrescenta o filósofo italiano, criticando os estudiosos que — liderados pelo alemão Werner Jaeger — ao longo do século 20 duvidaram de uma unidade de pensamento da obra aristotélica.
O livro I — ou livro Alfa, já que desde a Antigüidade os títulos de cada livro da Metafísica são conhecidos pelas letras do alfabeto grego — pode ser considerado uma introdução à obra. Nele, Aristóteles afirma que a metafísica — “a mais elevada das formas de saber humano” — consiste no conhecimento das “causas e princípios primeiros”, que condicionam o ser: a causa formal, a causa material, a causa eficiente e a causa final. As duas primeiras se referem à forma e à matéria, que estruturam todas as coisas sensíveis — como Aristóteles explicará nos livros seguintes. A causa eficiente é aquilo de que provêm a mudança e o movimento das coisas. Já a causa final diz respeito ao propósito, à finalidade dos seres. “Além de todas essas causas, existe aquele que ‘acima de todos os seres move todas as coisas’, vale dizer, o Movente imóvel ou Deus, que age como causa final ou como causa motora-final”, explica Reale.
Mas, antes de se aprofundar na análise dessas causas e princípios, Aristóteles compõe, ainda no livro I, uma espécie de história da filosofia, reproduzindo as idéias sobre o ser defendidas pelos pensadores dos séculos anteriores, como Empédocles, Anaxágoras e Demócrito. Um amplo espaço é dedicado à filosofia de Platão, de quem Aristóteles havia sido discípulo. Segundo Reale, essa recapitulação histórica visa a mostrar que todos os filósofos anteriores a Aristóteles não falaram senão das quatro causas citadas pelo autor da Metafísica, embora de maneira imperfeita e confusa.
Os livros VI a IX da Metafísica formam o cerne do estudo de Aristóteles sobre as coisas além da física. É ali que o filósofo chega às suas mais profundas concepções a respeito da existência. Para isso, ele distingue quatro formas de significado do ser. Segundo Aristóteles, o ser pode ser conhecido “por acidente”, “por si mesmo”, “como verdadeiro e como falso” e “em potência ou em ato”.
Entre essas quatro grandes distinções, Aristóteles desconsidera o ser “por acidente” — que se refere apenas a um atributo da coisa, como quando se diz “Sócrates é músico”, mas não à coisa em si — e o ser “como verdadeiro e como falso”, que revela somente a veracidade ou não do objeto. O mais profundo sentido do ser, diz Aristóteles, reside nos dois outros tipos de significado — o ser “por si mesmo” e “em potência ou em ato”.
Conhece-se o ser “por si mesmo” através de dez “categorias”, como diz Aristóteles, entre elas as categorias “substância”, “qualidade”, “quantidade” e “ação”, por exemplo. Dessas, a mais importante é a primeira. Substância — que traduz a palavra grega ousía (pronuncia-se “ussía”) — é o fundamento primeiro das coisas, de que tudo o mais decorre. “Aristóteles diz com insistência que nenhuma das outras categorias existe por si e ‘separadamente’’ da substância e que só a substância é ‘separada’, isto é, autônoma, independente das outras”, destaca Reale. “A pergunta radical sobre o sentido do ser deve centrar-se sobre a substância. Que é, então, a substância? Eis o problema que na Metafísica de Aristóteles se põe como ponto focal, em sentido global, para todos os efeitos.”

Forma e matéria

Substância parece se confundir com matéria, mas não só. Ambas se distinguem porque, enquanto a substância possui determinações — o que a faz ser uma coisa e não outra —, a matéria é desprovida delas. Matéria sem substância não passa de um ser sem significado, sem determinações. Pode-se dizer que substância possui matéria, mas não somente ela. É preciso algo mais para dar conta desse conceito. Esse algo é a forma.
A forma pode ser entendida como a substância desprovida de matéria. É ela que faz da substância aquilo que ela é e dá à matéria as suas determinações. Matéria e forma, porém, são separadas apenas no pensamento. Na realidade do mundo, estão sempre unidas. É inconcebível, para Aristóteles, haver matéria sem forma e vice-versa. Enfim, substância é um composto de forma e matéria.
Graças a esse composto é que se pode conceber o ser “em potência ou em ato”. “Em potência” se refere à matéria indeterminada, pronta a ser passivamente determinada pela forma. “Em ato” significa a ação da forma sobre a matéria. Como ocorre quando se constrói uma casa, exemplifica Aristóteles: os tijolos e pedras representam a casa “em potencial”, a matéria, que passam a ser uma casa quando sofrem a ação da forma.
Mais do que uma mera abstração filosófica, a busca aristotélica pelo conhecimento da essência do ser representou um importante passo para a ciência antiga. Antes dele, o eterno fluxo das coisas, concebido por Heráclito, representava um desestímulo à investigação. Como conhecer um mundo que muda constantemente? Platão, ao conceder a realidade apenas a seres instalados no inteligível, destinava a ciência a poucos homens capazes de atingir essas alturas. Com sua Metafísica, Aristóteles mostrou que o conhecimento do ser é possível. Esse saber está mesmo nas coisas sensíveis da natureza. É ali, na estrutura interna das coisas, na sua matéria e na sua forma, que se encontram as respostas sobre o que é o ser, qual é a sua forma e qual é a sua finalidade. Visto dessa forma, Aristóteles funda a ciência antiga, influenciando depois os principais pensadores medievais.
Os outros livros da Metafísica lançam mais luzes sobre a questão do ser em Aristóteles. O livro XII, por exemplo, trata da teologia aristotélica. Ali o filósofo fala do “primeiro motor”, o ser imóvel que deu início ao movimento. Normalmente interpretado como “deus”, esse ser não apresenta, porém, nenhuma semelhança com o Deus cristão. O livro V é uma espécie de dicionário em que Aristóteles explica os termos utilizados ao longo do livro — o que faz também no livro X. Nos livros XIII e XIV ele retoma seus argumentos contra o platonismo, esboçados no livro I.

Um saber enciclopédico

Aristóteles não foi um filósofo preocupado apenas com as coisas “além da física”. Dotado de um saber enciclopédico, deixou livros sobre assuntos tão variados como biologia, ética, política, psicologia, física, lógica e estética. Em ética e política, escreveu Ética a Nicômaco, Política e Constituição de Atenas, entre outros. A Poética discute a arte tendo como referência o teatro, muito popular na Grécia clássica, e a Retórica analisa a arte do discurso. Física, Tratado sobre o céu, Sobre a geração e a corrupção, Meteorológicas e Mecânica fazem parte de seus estudos sobre a natureza. Em biologia, compôs Sobre a alma, Partes dos animais, Sobre o sono, Sobre a memória e a reminiscência, Sobre a respiração e A adivinhação pelos sonhos. Categorias, Da Interpretação, Primeiros Analíticos e Segundos Analíticos estão entre suas obras sobre lógica.
Nascido na cidade de Estagira, dominada pela Macedônia, Aristóteles se transferiu para Atenas em 367 antes de Cristo, ingressando na Academia, o centro de estudos fundado por Platão vinte anos antes. Em 347, com a morte de Platão, deixa Atenas e vive em Assos e em Mitilene. Em 343, chamado pelo rei da Macedônia, Filipe, torna-se preceptor de Alexandre, filho de Filipe, que em 336 seria coroado rei e iniciaria a expansão do império macedônio até a Índia — o que lhe valeria o título de Alexandre, o Grande. Retornando a Atenas em 335, Aristóteles funda o Liceu, uma escola superior constituída nos mesmos moldes da Academia. Em 322, já afastado de Atenas devido ao sentimento antimacedônio predominante na cidade — que desde 338 estava sob o poder de Filipe —, o filósofo morre em Cálcis, na ilha de Eubéia.

Metafísica, de Aristóteles, edição de Giovanni Reale, tradução de Marcelo Perine, volumes I (Ensaio introdutório), II (Texto grego com tradução ao lado) e III (Sumário e comentários), Edições Loyola (telefone 11 6914-1922).



“Todos os homens tendem ao saber”

A seguir, os primeiros parágrafos do livro I da Metafísica de Aristóteles.
“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independentemente da sua utilidade e amam, acima de todas, a sensação da visão. Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações. E o motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimentos do que todas as outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas.
Os animais são naturalmente dotados de sensação; mas em alguns da sensação não nasce a memória, ao passo que em outros nasce. Por isso estes últimos são mais inteligentes e mais aptos a aprender do que os que não têm capacidade de recordar. São inteligentes, mas incapazes de aprender, todos os animais incapacitados de ouvir os sons (por exemplo a abelha e qualquer outro gênero de animais desse tipo); ao contrário, aprendem todos os que, além da memória, possuem também o sentido da audição.
Ora, enquanto os outros animais vivem com imagens sensíveis e com recordações, e pouco participam da experiência, o gênero humano vive também da arte e de raciocínios. Nos homens, a experiência deriva da memória. De fato, muitas recordações do mesmo objeto chegam a constituir uma experiência única. A experiência parece um pouco semelhante à ciência e à arte. Com efeito, os homens adquirem ciência e arte por meio da experiência. A experiência, como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperiência produz o puro acaso. A arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um juízo geral e único passível de ser referido a todos os casos semelhantes.
Por exemplo, o ato de julgar que determinado remédio fez bem a Cálias, que sofria de certa enfermidade, e que também fez bem a Sócrates e a muitos outros indivíduos, é próprio da experiência; ao contrário, o ato de julgar que a todos esses indivíduos, reduzidos à unidade segundo a espécie, que padeciam de certa enfermidade, determinado remédio fez bem (por exemplo, aos fleumáticos, aos biliosos e aos febris) é próprio da arte.
Ora, em vista da atividade prática, a experiência em nada parece diferir da arte; antes, os empíricos têm mais sucesso do que os que possuem a teoria sem a prática. E a razão disso é a seguinte: a experiência é conhecimento dos particulares, enquanto a arte é conhecimento dos universais; ora, todas as ações e as produções referem-se ao particular. De fato, o médico não cura o homem a não ser acidentalmente, mas cura Cálias ou Sócrates ou qualquer outro indivíduo que leva um nome como eles, ao qual ocorra ser homem. Portanto, se alguém possui a teoria sem a experiência e conhece o universal mas não conhece o particular que nele está contido, muitas vezes errará o tratamento, porque o tratamento se dirige, justamente, ao indivíduo particular.”
 




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