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Se vivesse hoje não tardariam a chamá-lo um "multimídia", haveria ainda quem dissesse que ele sabe aplicar a interdisciplinaridade como ninguém mas, felizmente, Mário de Andrade nasceu em um tempo de palavras mais delicadas e pôde ele mesmo definir-se. "Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta." Esse homem múltiplo, cheio de idéias, atuava e versava sobre os mais diversos campos e temas. Da música à literatura, da pintura ao folclore, da crítica teatral a fotografia. Trabalhador incansável da prosa e da poesia, Mário foi um revolucionário, rebelou-se contra o português, com suas regras importadas do além-mar, para dar vazão à língua recriada pelos brasileiros. Sua Paulicéia desvairada, em 1922, inaugurou entre nós o verso livre. Como musicista, buscou a nacionalização da música brasileira e, para isso, dedicou-se a estudar o folclore. O pouco que se sabe, entretanto, desse homem que sabia de tudo um pouco, é que até pelo mundo da decoração ele transitou. Os modelos dos móveis da sua famosa casa, na rua Lopes Chaves, foram copiados da revista alemã Deutsche Kunst und Dekoration, que também lhe serviu de inspiração para criação de algumas peças, duas poltronas e um divã, que ele mesmo desenhou. As peças do mobiliário andradiano, que o acompanharam a partir de 1921, quando foram encomendadas ao Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, estão agora em exposição no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros). Estante, cômoda, escrivaninha, cadeira, oratório, mesa, duas poltronas e uma espécie de divã, além da sua máquina de escrever e de um harmônico. Por sua própria natureza, esses móveis têm inegavelmente um valor histórico imensurável. No entanto (ou talvez por isso mesmo), mais interessante que observar suas linhas e contornos - até porque, infelizmente, a mostra do IEB não é muito rica em referências e esclarecimentos - seja compreender o caminho que levou Mário até a decoração alemã e o valor simbólico que ele agregou a cada uma dessas peças de madeira.


O traço expressionista

O interesse pelas artes decorativas surgiu a partir do seu vínculo com as vanguardas históricas, e ainda do seu estudo da língua alemã. Em 1917, o escritor modernista descobriu a arte de Anita Malfatti na exposição que, antecipando a Semana de 1922, escandalizou as elites paulistanas. Depois de fazer muitas e demoradas visitas às obras, se tornou amigo da pintora e, especialmente, admirador do expressionismo germânico. No anseio de se aproximar da estética que gerou, entre outras obras, O Grito, do dinamarquês Edward Munch - representação pictórica da deformação e da tormenta das almas -, Mário começa a estudar alemão. Sua professora, Else Schoeller Eggbert, casada com um organista, era admiradora da música, em especial de Wagner, e do expressionismo. Através dela ele ampliaria o seu conhecimento musical, tomando contato com Alban Berg e Schoenberg, e conheceria a Deutsche Kunst und Dekoration , revista de divulgação da obra expressionista, da qual seria assinante por muitos anos.
Como crítico de arte, Mário estendeu seu conhecimento, saindo da pintura e da escultura até chegar no desenho, na gravura e na própria arquitetura. "Ora, a arquitetura também possui um destino, que não consiste nela ser bonita, mas agasalhar suficientemente, não um corpo, mas um ser humano, com corpo e também alma", escreveu. Nessa época, a Bauhaus alemã trazia propostas de uma nova arquitetura, limpando as fachadas das marcas da ostentação e do rebuscamento. O interior da casa também é reformulado. O escritor se interessa pela arte aplicada e se fascina por esses móveis diferentes. Desenhados por arquitetos, eles procuravam não só enfeitar mas, sobretudo, oferecer conforto. As revistas - além da Deutsche Kunst und Dekoration , a Die Kunst - traziam belas reproduções fotográficas e lhe influenciaram o gosto pelas linhas mais leves, os contornos mais modernos, os novos traços. "Seu ideal mais primário é ser gostosa: agradar", escreveria Mário, anos depois, sobre arte aplicada no ensaio "Decorativismo II", do livroTáxi e Crônicas do Diário Nacional.
Oswald de Andrade ainda não tinha lançado o seu Manifesto Antropófago e o autor de Macunaíma já misturava às novas técnicas vanguardistas as singularidades nacionais. Se os traços da mobília eram alemães, a madeira escolhida era a imbuia brasileira. Ele alterava ainda as medidas e, em alguns casos, o uso. De formação católica (fora aluno dos Irmãos Maristas) e admirador da arte barroca, Mário tinha uma coleção de imagens religiosas e para abrigá-la não titubeou em transformar a cristaleira criada pelo arquiteto E. Wenz-Vietor em oratório. As alterações não pararam por aí. Se em cima havia espaço para o sagrado, a parte debaixo que guardasse o profano. Com o lápis, ele interfere na foto do projeto, esboçando na parte debaixo do armário, que aparecia apenas de portas fechadas, duas prateleiras onde dispôs copos e garrafas.

Morada do coração perdido

Quem quisesse encontrar Mário de Andrade deveria primeiro procurá-lo na rua, pois lá era o seu mundo. No entanto, para o exercício da preguiça, que, além de cantar em Macunaíma, era uma de suas maiores preocupações, ele gostava de deixar-se, de abandonar-se vestido no seu pijama listrado, na casa da Lopes Chaves. "Gosto de comer e beber bem. Exerço a preguiça sistematicamente porque considero a preguiça uma necessidade para os povos de climas quentes", declarou certa vez. Como nunca se casou, o autor de Amar, verbo intransitivo, morou sempre com a mãe e a tia Nhãnhã, que lhe tecia pulôveres de lã. Mudaram-se para o lar da Barra Funda em 1921 e nesse mesmo ano Mário mandou fazer os novos móveis. A casa, que ele chamava "morada do coração perdido", era simples, sem luxo, mas trazia, além da bela mobília, estantes cheias de livros, paredes que exibiam telas de Picasso e Portinari e um enorme piano de cauda Steinway, sobre o qual figurava um imenso retrato de Beethoven. Mário buscou criar um ambiente que dissesse um pouco sobre ele, um espaço que revelasse o semblante desse dândi, desprovido de um rosto bonito, mas que perseguiu a beleza incansavelmente, fosse na amplitude das artes ou no gosto pelos ternos de linho, pela bengala, pelos roupões de seda.
Mário era um colecionador compulsivo. Mesmo sem nunca ter saído do País tinha em casa telas de grandes artistas europeus. Os modernistas brasileiros - Tarsila, Segall, Anita - também tinham lugar cativo. Apenas sua coleção de gravuras e desenhos chegava a ter mais de mil documentos e, para abrigá-la, mandou fazer uma grande cômoda com cinco gavetas, que ficava no seu estúdio.
Bibliófilo, tinha uma biblioteca de mais de 10 mil volumes. Ao lado dos livros de arte e literatura, reunia edições raras de obras sobre o Brasil. Além disso, possuía ainda uma enorme coleção de duplicatas. Os livros que ganhava dos autores com dedicatória conservava intactos e, para ler, comprava um segundo exemplar no qual fazia suas anotações e marcas de leitura. O intelectual materializou na casa o seu estilo de vida, as suas realizações e especialmente sua obsessão pelas coleções. Os livros se multiplicavam sem parar, tomavam o chão, as mesas, os cantos. As paredes foram sendo recobertas de estantes, altas, baixas, médias. Uma delas, toda envidraçada, pode ser vista na exposicão do IEB. Para usar melhor o espaço, até as poltronas e o divã, com design modernista concebido pelo escritor, traziam lugar para os livros na parte interna. Na parte externa, nos braços das poltronas, cinzeiros escavados na madeira de primeira linha. Quando escrevia, fumava sem parar. Entre as suas idiossincrasias, entretanto, estava o horror às cinzas do cigarro. "Detesto jogar cinza no chão, tenho perto de 30 cinzeiros em meu studio, e as próprias poltronas dele, desenhadas por mim, cada uma tem um cinzeiro incrustado nela." Mais do que mostrar a mobília e o clima da casa de Mário de Andrade, a exposição do IEB tem o condão de apresentar um pouco mais da alma criativa do poeta. Não é, com certeza, pouca coisa.

A exposição "Móveis de Mário de Andrade" fica em cartaz até 27 de setembro, de segunda a sexta-feira das 14 às 17 horas, no IEB. ( Avenida Professor Mello Moraes, travessa 8, nº140. Cidade Universitária. O telefone é 3091-3247 )



A doce Manuela

Pelo que se sabe, Mário de Andrade não foi homem de arroubos e paixões. Não se casou, tampouco se tem notícia de que tenha tido uma namorada, um caso. Só amores platônicos. Ainda assim, não se poderia dizer que não houve uma presença feminina forte em sua vida. Além da mãe, com quem sempre viveu, devotou afeto sem limites a sua Manuela. Um sentimento que ele nunca escondeu e que não se cansou de alardear, tecendo para ela loas enamoradas. Estiveram juntos por quase 20 anos, até que a morte os separasse, e nunca houve briga ou rusga entre eles. Sempre paciente, Manuela zelava por ele, satisfazendo-lhe sempre as vontades. Foram companheiros inseparáveis e ela sempre respondia prontamente quando Mário deixava pousar sobre ela a ponta dos seus dedos. Manuela, a Remington negra de teclas robustas, foi para o poeta, a encarnação de que amar era um verbo intransitivo. "A minha máquina-de-escrever me domina, é mais grande, é mais forte do que eu. Por isso que botei Manuela e não Manuelina ou portugamente Manuelinha. Ela me dá a sensação de que tenho junto de mim uma grande mulher bondosa, ticianesca de tão grande que é, porém ticianescamente boa também. Me serve, me ajuda, me facilita sempre, cuidadosa de mim, com uma paciência! Você nem imagina a paciência que ela tem comigo", escreveu Mário a Manuel Bandeira. O autor de Macunaíma dedicava às coisas que o cercavam - aos quadros, aos livros, aos objetos - um verdadeiro amor humano. Ao chamar Manuela à Remington não só homenageava Bandeira mas, sobretudo, fundia num mesmo carinho a máquina e o seu melhor amigo.
Desvelo de
amante
Manuela foi comprada em 1924 e Mário, que não tinha hábitos de datilógrafo, e até então preferia os manuscritos, passou a escrever tudo diretamente a máquina. Um caso de amor à primeira vista. Romances, poemas, ensaios, tratados e cartas, muitas cartas, todos passaram por Manuela, que pode ser vista, na exposição de móveis de Mário de Andrade no IEB (ver ao lado)
"Nenhum outro autor brasileiro escreveu com tamanha profusão e tanta originalidade", disse Drummond sobre o "papa" do Modernismo. Sem planos regulares de trabalho, escrevia vários livros ao mesmo tempo. Como se descansasse de um no outro. Às vezes abandonava inteiramente o que estava a fazer para dar vazão a alguma inspiração de momento. A própria saga do herói sem caráter surgiu assim, no meio de um outro trabalho, e foi escrita de chofre, em uma semana, sem parar.
A doce companheira esteve ao seu lado até 1945, ano de sua morte. Mesmo já velha, e um tanto ruidosa, funcionava perfeitamente graças aos cuidados que o apaixonado lhe devotava. Para sentir-lhe o friozinho do metal, gostava de encostar, de vez em quando, a testa sobre a máquina e quando lhe faltavam as palavras, e o escrito saía com lentidão, a acariciava com a mão direita, como se faz a um bicho para amansá-lo. "Como uma verdadeira amante, ela me tem proporcionado, pela sua maneira de ser, seus vícios e suas qualidades, um bom número de idéias aproveitáveis".

 




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