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Jovens do Projeto Guri se apresentam durante o evento
Saguão da FAU durante o Seminário que teve mais de 800 inscritos
Alunos da escola municipal Roberto Mange, uma das 67 atingidas pelo Projeto
Educom.radio, colocam sua estação para funcionar (ao lado). Daiane e Juarez: repórteres mirins
A maioria das mortes de crianças e adolescentes no Brasil se deve à violência. O mais impressionante, no entanto, é que há fortes indícios científicos de que a maior parte dos atos violentos é cometida pelas próprias crianças e adolescentes. Essa constatação, que dá ao perfil da violência um traçado ainda mais tortuoso, abriu a conferência da professora Flávia Inês Shilling, da Faculdade de Educação da USP, uma das palestrantes do “2º Seminário Internacional Violência e Criança”, realizado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Afinal, que perspectivas de futuro é possível visualizar para uma sociedade em que crianças e adolescentes são as maiores vítimas e, ao mesmo tempo, os principais autores de atos violentos? Os três dias de duração do seminário — coordenado pela Faculdade de Saúde Pública e fruto de convênio com a Universidade de Tel-Aviv — foram capazes de mostrar, através de experiências concretas, que esse processo é reversível por mais consolidado que esteja. O evento, realizado de quarta a sexta-feira, foi intitulado “A Escola Saudável: uma forma de resistência à violência na Infância e Adolescência” e colocou a instituição de ensino no centro das discussões, um lugar com enorme potencial de reconstrução na vida de crianças e adolescentes.

Percussão e molejo marcaram a participação dos Meninos do Morumbi. O grupo já criado em 96, tem na música uma forma de criar alernativas à violência

Ferramenta de transformação

Esse poder transformador da escola se deve, na verdade, a uma combinação de fatores bastante simples. A escola abriga, diariamente, grande parte desse grupo de “risco” e é, por natureza, um ambiente que tem por obrigação interferir na formação de seus alunos. Se não faz isso e se limita a transmitir um conteúdo curricular estrito, a escola não está simplesmente anulando o seu papel educador, o que já seria grave, mas está, quase sempre, desvirtuando esse papel. Se não se assume como instituição de ensino, a escola acaba, invariavelmente, se tornando um espaço perpetuador da violência e até motivador de relações sociais violentas. Interferir nesse ambiente não costuma ser nada simples, mas os resultados tendem a fazer valer a iniciativa. Pelo menos foi o que provaram as experiências dos diversos projetos apresentados durante o seminário, como o Parceiros do Futuro, o Sou da Paz, o Educom.radio, o Observatório dos Direitos Humanos e tantos outros (leia box ao lado).
Cada projeto busca saídas diferentes e nem todos são motivados pelas mesmas inquietações, mas, apesar de serem bastante pontuais, pode-se dizer que todos eles constroem um perfil do que o Brasil, de uma maneira geral, está fazendo para tornar a escola um ambiente saudável e a juventude, uma fase mais segura. O caminho escolhido pela maioria dos projetos não é o mais óbvio, nem o mais percorrido, mas parece ser aquele que toca de maneira mais eficiente no ponto nevrálgico do problema: a inclusão social. Aplicando diferentes mecanismos, quase todas as iniciativas visam a criar, de uma maneira ou de outra, diferentes oportunidades de inserção e de construção da auto-estima. A idéia surgiu da constatação de que a violência representa para a criança e o adolescente uma forma de auto-afirmação. Essa teoria foi sustentada por várias pesquisas apresentadas durante o seminário, mas principalmente pela exposição da professora israelense Avital Laufer. “As crianças que têm baixa atividade escolar, que apresentam comportamento de não-pertecimento em relação à escola são as mais sujeitas a desenvolver comportamentos violentos”, explicou a conferencista. Ela afirmou, ainda, que existe uma relação direta do grau de violência testemunhada com os níveis de agressividade apresentados pelas crianças. Essa seria, provavelmente, a evidência científica de que “violência gera mais violência”.

Guiados pelo medo

Os maiores alvos desse processo de auto-afirmação através da agressividade são os professores. Eles são também o ponto de relação mais direta entre a instituição de ensino e os alunos e possuem, portanto, o maior poder de intervenção. O que acontece em grande parte dos lugares, entretanto, é que o projeto pedagógico acabou sendo engolido pela política do medo. Nessas escolas, é o medo que rege o comportamento dos professores dentro e fora das salas de aula. Não sem motivo. “Eu fui ameaçada de morte no começo do ano por um motivo completamente corriqueiro e não tive coragem de denunciar”, admitiu uma professora de um colégio da rede municipal que preferiu não se identificar. “Fiquei uma semana sem dormir, mas graças a Deus não aconteceu nada. Mas e se eu tivesse denunciado, será que ainda estaria aqui?”, acrescenta. O medo da professora, compartilhado por muitas outras que estavam com ela no evento, não se deve somente à ameaça. A escola, como mostrou muito bem uma pesquisa da Unesco apresentada no seminário, se tornou um ambiente de tensão constante. Segundo a professora Miriam Abramovay, organizadora do estudo, 61% dos entrevistados — o que inclui professores, pais e alunos — acham que a escola não é um ambiente seguro. No caso da professora ameaçada, por exemplo, o aluno em questão já tinha aparecido bêbado e até drogado na escola e disse que conhecia o caminho que ela fazia para ir para casa. “Te pego no farol”, teria dito o menino.
Além de assustados, a pesquisa da Unesco mostra que a maior parte dos professores se sente desrespeitada em seu ambiente de trabalho. Isso acontece, entre outros motivos, porque a ordem está de tal forma subvertida que xingar e ameaçar o professor ou depredar as instalações da escola se tornam formas de conquistar status dentro da comunidade. Há casos, inclusive, em que jovens, que se dizem alunos, só freqüentam as escolas como representantes do narcotráfico que se propõem a “proteger” a instituição desde que sejam aprovados todos os anos. Os professores, claramente acuados, são incapazes de se impor e não conseguem sequer diferenciar atos de indisciplina típicos da rebeldia juvenil das verdadeiras agressões. Na outra ponta, os alunos menos agressivos, que não conseguem se impor pela violência, são os que acabam marginalizados, ou pior, ridicularizados.
A agressão, no entanto, não parte só dos alunos. Por mais estranho que pareça, são muitas vezes os próprios professores que fazem mau uso da sua posição de educadores e apresentam comportamentos violentos. Isso se revelou, de certa forma, no levantamento feito pela Unesco. Quando perguntados sobre qual era o aspecto da escola de que eles menos gostavam, 41% dos professores responderam que não gostavam dos alunos. “Que tipo de escola é essa?”, perguntou a organizadora da pesquisa à platéia.
As histórias relatadas pelo seminário são intermináveis e superam qualquer projeto de ficção. As experiências realizadas e as propostas levantadas, entretanto, fazem vislumbrar possíveis soluções. Apesar de a maioria dos projetos, como já foi dito, trabalha formas de inclusão dos jovens na sociedade e ter sido muito bem-sucedida no combate à violência, ficou claro que nenhuma medida isolada será capaz de eliminar o problema. A violência só será eficientemente combatida se for entendida em toda a sua complexidade e se for enfrentada por medidas tão abrangentes quanto ela mesma. Nessa compreensão abrangente do processo, a universidade tem tido um papel fundamental. Pesquisas, estudos e intervenções práticas têm produzido cada vez mais conhecimento sobre o assunto. Na verdade, apesar de muitos estudos ainda estarem sendo desenvolvidos, já se sabe o suficiente para criar políticas públicas bastante eficazes. Como lembrou a professora Maria Helena Prado de Mello Jorge, da Faculdade de Saúde Pública, “cabe à universidade dar a faca e o queijo às instituições públicas”; cabe ao governo, cortar o queijo.
Apesar de estar envolvido na maior parte dos projetos que estão sendo aplicados, o governo ainda não foi capaz de criar uma política pública de dimensões nacionais. As medidas para isso, abordadas por diversos participantes do seminário, podem ter a escola como ponto central de intervenção, mas devem ir além. Elas têm que englobar, de alguma forma, um melhor atendimento às vítimas, mais policiamento, uma melhor infra-estrutura das comunidades em geral e um trabalho que atinja o problema na sua maior intimidade: a família. Também foi insistentemente apontada a necessidade da criação de um sistema de denúncia para todo o País. Ficou claro que mesmo os professores dispostos a delatar a infração dos direitos da criança, garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não sabem como fazê-lo.



O limite entre rebeldia e violência

O ato de testar limites e a necessidade de se sentir influente no grupo são, na verdade, comportamentos bastante comuns entre adolescentes e até entre crianças. Essas são algumas das atitudes que rendem aos pequenos contestadores em busca de si mesmos o título de “aborrecentes”, só para citar um exemplo. No entanto, por mais saudável e necessário que esse processo de autodescoberta seja, ele apresenta riscos que, pelo menos neste momento, dão motivos de sobra para a eterna preocupação dos pais. No caso da violência, o maior risco é que o jovem, ou mesmo a criança, encontre nos atos violentos a melhor forma de se autopromover e isso, por mais insensato que pareça, é muito comum.
Banalizada como está a violência, tanto no cinema quanto nas ruas, basta para o jovem não ter grandes perspectivas de futuro. Em comunidades marginalizadas, como tantas que existem no Brasil, ele vê no crime a única possibilidade de escalar uma hierarquia social. A violência aparece, aqui, como a única autoridade a que se deve respeito, mesmo que seja um respeito construído pelo medo. Esse fenômeno, em que os valores essenciais aparecem todos invertidos, não é exclusivamente brasileiro. Autoridades de outros países, como professores israelenses da Universidade de Tel-Aviv que estavam presentes no seminário, mostraram que crianças e jovens expostos a sociedades violentas se comportam de maneira bastante similar em todos os países do mundo.
Encarar esse problema de forma honesta, como se propôs a fazer o seminário, é o primeiro passo para resolvê-lo. Mas, mesmo essa primeira etapa já costuma encontrar resistência. Admitir que a violência tem feito parte do “currículo” da maioria das escolas não é tarefa fácil nem para os diretores dessas instituições nem para as autoridades públicas. Além de admitir uma enorme falha do sistema de ensino brasileiro, isso implica duas grandes quebras de paradigmas: de um lado, representa destruir o estereótipo que sustenta a escola como um espaço lúdico e protegido, tal como se manteve na memória de grande parte dos adultos; de outro, significa enxergar que a criança e o adolescente, apesar de sua carga de inocência, são sim capazes de atos de extrema crueldade. Isso não significa dizer que sejam todos delinqüentes juvenis, mas que são seres humanos, em fase de imaturidade física e mental, que necessitam de atenção e de cuidados especiais.
O grande problema, no entanto, muito abordado pelos profissionais da rede pública que participaram do evento, é que nem os professores nem os diretores, estão preparados para lidar com a violência nas escolas. Na verdade, poucos profissionais estão realmente preparados para intermediar as complicadas situações que fazem parte do dia-a-dia escolar, uma rotina tradicionalmente cheia de conflitos em que indisciplina se mistura a toda hora com violência. Para que a escola realize o seu potencial de pólo disseminador de um modelo de vida mais saudável, é preciso que cada um dos profissionais envolvidos com o ensino se torne um promotor da saúde. O que significa que eles têm, em primeiro lugar, que ser ativos e recuperar sua autoridade como educadores.


Paz e educação nas ondas do rádio

Entre os diversos representantes da imprensa que estiveram presentes no “2º Seminário Internacional Violência e Criança”, dois em especial chamavam a atenção. Daiane Nunes dos Santos, de 13 anos, e Juarez Velozo da Silva, de 14, são repórteres mirins do projeto Educom.radio, uma parceria entre a Secretaria da Cultura e o Núcleo de Comunicação e Educação da Escola de Comunicações e Artes da USP. O projeto, que existe há um ano e meio, vê na comunicação uma alternativa à violência. Através da instalação de verdadeiras estações de rádio nas escolas, o programa cria uma forma saudável de inclusão social e estimula os alunos a superarem suas diferenças e trabalharem juntos para realizar um objetivo: fazer o veículo de comunicação funcionar. Até agora já foram atendidas 67 escolas municipais de ensino fundamental, mas a expectativa é que todas elas sejam beneficiadas até o final do projeto.
As rádios instaladas nas escolas só atingem um raio de 100 m, mas o aprendizado que representam para as crianças e os professores envolvidos é imensurável. Durante os seis meses de duração da implantação do projeto, eles não só descobrem uma linguagem totalmente nova, a radiofônica, como se colocam a par de assuntos indispensáveis para qualquer formação como saúde, racismo e meio ambiente. Essas palestras são ministradas por professores da USP, enquanto as oficinas de rádio são monitoradas por universitários. Só depois desses seis meses é que a escola ganhará o equipamento definitivo que os alunos aprenderão a usar com orientação técnica de monitores. Então, é só colocar a rádio no ar.
A maior lição que a experiência tem para oferecer acontece no dia-a-dia da criação da rádio. Todos os envolvidos entram em contato, na prática, com o conceito de gestão participativa e de democracia. Os conflitos acabam, muitas vezes, sendo intensificados, mas ganham, ao mesmo tempo, nova forma de resolução: a saudável argumentação. A comunicação se introduz nas comunidades escolares como projeto pedagógico realizando o grande objetivo do que muitos pesquisadores chamam de educomunicação.
O resultado disso não é difícil de se imaginar e pode ser explicado pelos próprios alunos. “A violência diminui muito, porque todos estão envolvidos com o projeto. Além disso, todos percebem que tudo se resolve com uma conversa”, justifica Juarez, aluno da escola municipal Iracema Marques da Silveira e repórter mirim da rádio da sua escola. Daiane, que já ganhou um prêmio pela sua participação no projeto, é aluna do colégio José Alcântara Machado Filho e está ansiosa pela chegada do equipamento. “Quero ser jornalista. Quero informar as pessoas”, conta a menina, sem esconder uma grande preocupação com o vocabulário usado.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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