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Um
menino de cinco anos brinca na sala quando ouve gritos na cozinha,
vai até lá e vê o pai levantando uma faca para
atingir a mãe. A avó, no sertão de Pernambuco,
grava fitas cassete com mensagens e conselhos para toda a família
que mora em São Paulo. O marido enlouquecido de ciúme
da mulher, que vende Yakult na rua, a expulsa de casa acusando-a de
ter um amante que nunca existiu. O menino que brinca de boneca e outro
que imita Ney Matogrosso. Imagens do sonho da casa própria,
de sair da cidade grande, de juntar toda a família em um terreno
bem grande, na serra. Dos presentes de Natal, do pai macrobiótico
que já foi hippie, da mãe policial, das religiões,
do filho expulso de casa pelo pai que jurou matá-lo caso ele
voltasse, das doenças, das simpatias, das surras... Das pequenas
maldades dos irmãos, das vergonhas na escola, dos pais separados,
da mãe doméstica, do pai desconhecido.
São todas histórias reais que surgiram da memória
dos 13 atores sete homens e seis mulheres integrantes
do Grupo Tusp, em um difícil e comovente processo de criação,
que durou cerca de um ano e meio. Foram três etapas. Na primeira
surgiram as memórias familiares, mas de forma pitoresca, até
folclórica, com histórias que os avós contavam.
Depois trabalhou-se com a possibilidade de construir todo o espetáculo
a partir da vivência intensiva junto a uma comunidade rural
ligada às tradições da terra (foram realizadas
pesquisas de campo no interior de Minas Gerais, sul de Goiás
e nordeste de São Paulo). Na terceira e mais intensa fase,
voltou-se ao trabalho com a memória e as histórias familiares
dos atores, agora de forma mais profunda. Foram realizados processos
de imersão na região rural de Piracaia, na Serra da
Mantiqueira, com exercícios confessionais e depoimentos de
grande intensidade emocional.
Nessa etapa foi realizado um exercício individual que marcou
presença no espetáculo: os atores tinham que escrever
uma carta para os pais. Devido a seu conteúdo de intimidade,
alguns tiveram pudor ao ler essa carta para o grupo, mas todos colaboraram
nessa difícil tarefa. Foi um momento de muita emoção,
diz o diretor, que contou com o apoio da terapeuta Helena Martins
nesse processo de criação. Eram encontros semanais,
em que Tavares relatava as questões e a terapeuta colocava
os encaminhamentos. Seu contato com o grupo aconteceu somente no processo
de imersão, quando todos passaram um fim de semana em Piracaia.
Houve também exercícios em conjunto, todos confessionais:
o ator e o diretor ficavam no palco, enquanto os outros assistiam
na platéia em silêncio absoluto. Um desses depoimentos
durou cerca de seis horas e meia, informa Tavares.
Interior
de cada um
Sentimentos,
dores, emoções há muito esquecidos foram revirados.
Foi uma fase difícil, mas ao mesmo tempo prazerosa,
já que houve a superação da dor e das mágoas
e também porque na peça tem lembranças felizes,
conta o diretor. Passado tudo isso, Tavares selecionou o material
e o organizou em cenas seqüenciais, sendo que ao longo do espetáculo
cada um dos atores lê a carta que escreveu aos pais. Foi realizada
então uma sessão fechada de pré-estréia
para os familiares, pais, mães, irmãos e avós,
que junto com os atores são personagens. Relações
familiares foram reatadas e silêncios foram quebrados. Ainda
foram apresentados ensaios abertos e a reação do público
não poderia ser outra: as pessoas riem e choram.
No total são 85 cenas, 72 dramáticas e 13 musicais.
O texto não é linear, já que a memória
não tem ordem cronológica. São seqüências
fragmentadas, flashes, costurados por um trilha sonora que revive
sucessos do pop brasileiro dos anos 70, em alusão à
juventude dos pais e à infância dos atores. São
músicas de Rita Lee, Secos e Molhados, Zé Rodrix,
Walter Franco, entre outros compositores. A direção
musical é de Pedro Paulo Bogossian e há uma banda
que toca ao vivo formada por piano acústico, guitarra, bateria,
violões e violino. O figurino é neutro, com 80 peças
que os atores trocam durante o espetáculo e os objetos cênicos
são signos da geração de 70. No palco, apenas
13 tigelas cheias de terra e mais 13 bacias grandes com terra, formando
uma linha divisória com a platéia.
A peça faz parte de uma tetralogia dos quatro elementos:
água, terra, fogo e ar, que começou no ano passado
com a montagem de Horizonte, espetáculo da água que
cantava a caminhada de um povo em direção ao mar.
Interior representa a terra e se volta para o chão, para
a raiz, para a origem, para a memória, para o interior de
cada um.
O
espetáculo teatral Interior estréia nesta terça
no Tusp (r. Maria Antonia, 294, tels. 3255-7182 e 3255-5538) e fica
em cartaz até o fim do ano, de terça a quinta, sempre
às 21h. Os ingressos custam R$ 15,00. Duração:
110 minutos.
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