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urante dez dias, Johannesburgo foi o centro das atenções mundiais para as questões ambientais, como sede da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, também chamada Rio+10. O sonho de um mundo melhor, com respeito aos direitos humanos básicos, proteção ao meio ambiente e utilização equilibrada dos recursos naturais, segue vigente nas mentes de muitos dos participantes dessa megaconferência das Nações Unidas, talvez uma das últimas nesse ciclo iniciado em Estocolmo há 40 anos e que teve seu ponto máximo no Rio de Janeiro, em 1992. Mas as esperanças de que esse mundo sonhado se torne realidade ficaram gravemente abaladas pelos parcos resultados práticos alcançados.
Seria ingênuo demais pensar que uma conferência bastaria para resolver problemas tão graves e complexos como a fome, as doenças, a poluição ambiental, a devastação das florestas e os desníveis sociais do planeta. Mas a Cúpula de Johannesburgo deveria ser um momento privilegiado para a análise de tudo o que havia sido definido em consenso – e firmado pelos governos – na conferência do Rio e também o espaço adequado para discutir metas e prazos de implementação dos acordos ainda não cumpridos.
Dos mais de 150 países participantes, muitos vieram com propostas concretas sobre como colocar em prática as diretrizes da Eco-92 que ainda não saíram do papel, principalmente as questões ligadas à Agenda 21, o principal documento elaborado no Rio de Janeiro. Mas algumas propostas importantes não encontraram eco nas reuniões de grupos e plenárias do Centro de Convenções de Sandton, onde aconteceram as principais negociações da Rio+10. Blocos de países defenderam ferrenhamente seus interesses, como o caso do Juscanz (Japão, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia), que sob a liderança dos norte-americanos – e com apoio incondicional dos países árabes, grandes produtores de petróleo – boicotaram, entre outras coisas, as propostas do Brasil e da União Européia sobre energia.

A batalha pelas energias renováveis

Nem mesmo a aproximação com a União Européia conseguiu emplacar a audaciosa e bem recebida proposta brasileira de substituição de matrizes energéticas poluidoras por fontes renováveis de energia em 10% até 2010. A energia foi tratada como tema-ícone da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável.
O governo brasileiro fez seu dever de casa. Alinhavou metas e prazos para fontes renováveis de energia com a América Latina e Caribe e trouxe na bagagem uma proposta apoiada pelos ambientalistas. Desde o início, a briga foi grande no grupo G-77/China. Apesar da resistência, o Brasil manteve-se firme em defesa da meta acordada – e ratificada em Johannesburgo – pelos 33 países da América Latina e Caribe. O namoro com a União Européia parecia engrenar, com indícios de flexibilização de propostas de ambos os lados. As negociações foram as mais longas e difíceis de toda a conferência.
Com o impasse nas negociações, e a urgência em fechar o Plano de Implementação da Cúpula a menos de 48 horas do encerramento da conferência, chegou-se a um texto problemático. A redação final propõe a diversificação das fontes energéticas por meio do desenvolvimento de tecnologias “limpas, eficientes e acessíveis, incluindo combustíveis fósseis, bem como energias renováveis, inclusive hidrelétricas, e sua transferência aos países em desenvolvimento”. Nenhuma meta. Nenhum prazo para implementação.
“O texto coloca as energias renováveis em segundo plano. E é tão amplo e ambíguo que permite até a inclusão de energia nuclear”, avalia Rubens Born, coordenador-executivo da organização não-governamental Vitae Civilis. Segundo ele, trata-se de um retrocesso em relação à Rio-92, pois naquela época já se falava em avançar em combustíveis renováveis de modo a diminuir a dependência mundial de combustíveis fósseis.
Marcelo Furtado, diretor do Greenpeace-Brasil, lembra que o “pacote” proposto pelo Brasil tinha o apoio das ONGs porque era realmente muito atraente. “Mudaria o paradigma da matriz energética e levaria energia para quem está fora do alcance da rede, sem necessidade de construção de hidrelétricas”, sintetiza. O Brasil brigou por sua proposta até o último momento. Depois de batido o martelo do texto final, o embaixador do Brasil nas Nações Unidas, Gelson Fonseca, pediu a palavra para lamentar o resultado das negociações e reafirmar a meta de 10% até 2010.
O ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, chegou a acreditar que todos os países em desenvolvimento agrupados no G-77 aceitariam a fixação de prazos, inclusive os países árabes. E, mesmo que não houvesse consenso para um acordo global, metas nacionais e regionais poderiam ser negociadas.
Agora, Carvalho acredita que um caminho possível para colocar em prática a proposta brasileira, mesmo não contemplada no documento final da cúpula, será implementar as metas regionais, como no caso da América Latina e Caribe. “Ainda temos esperança de firmar uma iniciativa conjunta com a União Européia com relação ao incremento das energias renováveis, combinando a nossa proposta com a deles”, disse o ministro. “O assunto não termina nessa conferência.”
Para Fabio Feldmann, assessor especial da Presidência para a Rio+10, o grande ícone da Cúpula de Johannesburgo foi mesmo o tema da energia. “É fundamental para os países ricos, que têm que abrir mão dos combustíveis fósseis, e também é importante para os países em desenvolvimento, porque energia significa combate à pobreza.” Feldmann considera a proposta brasileira uma das mais importantes porque, mesmo enfrentando fortes resistências políticas e não sendo vitoriosa, “conseguiu introduzir na agenda mundial um tema prioritário para todos os países”.

O que fazer depois de Johannesburgo?

Com relação à biodiversidade, houve algum avanço, mas também não há metas muito positivas no documento final. Mais uma vez, o Brasil teve papel importante nessas negociações, articulando com o México uma aliança dos países chamados “megadiversos”, as 15 nações que concentram em seus territórios cerca de 70% de toda a diversidade biológica do planeta. Como destacou o ministro Everton Vargas, diretor do Departamento de Meio Ambiente do Itamaraty, que esteve presente nessas negociações pela delegação brasileira, “foi importante discutir com profundidade a idéia de um instrumento internacional de repartição de benefícios, porque os países detentores megadiversos devem ter uma participação nos resultados obtidos com a utilização da sua biodiversidade para fins científicos, farmacêuticos ou industriais”.
Se não foram atingidos plenamente os objetivos propostos pelas Nações Unidas, por muitos países e ONGs que efetivamente têm preocupações e políticas para o desenvolvimento sustentável, talvez um saldo da conferência de Johannesburgo tenha sido a certeza de que não é possível um mundo unilateral, onde as decisões são tomadas apenas em função de interesses políticos e econômicos de um grupo de países ou de megacorporações.
Nesse contexto, é fundamental que ganhe cada vez mais força a participação da sociedade civil e suas organizações, sejam elas ambientalistas ou sociais. Nessa cúpula elas tiveram influência e acesso às decisões menor que o esperado e protestaram. “Não subestimem o poder e a capacidade de influência que vocês têm”, foi o recado que o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, transmitiu aos cerca de 500 representantes de
ONGs e movimentos sociais com quem se reuniu na segunda-feira, 2, no Centro de Exposições de Nasrec, onde ocorreu o Fórum dos Povos, evento simultâneo à Rio+10.
Acompanhado pelo coordenador da Rio+10, Nitin Desai, e pelo diretor do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (Pnuma), Klaus Topfer, Annan convocou as ONGs a redobrar esforços no sentido de pressionar os governantes do mundo a aprofundarem as políticas públicas rumo ao desenvolvimento sustentável: “A ONU, no que depender de seu secretário-geral, vai trilhar esse caminho. Mas, sem a participação e a influência da sociedade civil, tudo será muito mais difícil. Espero que, após 4 de setembro, possamos trabalhar juntos”.
Questionado sobre a real capacidade que tem a ONU, com sua estrutura atual, para efetivar políticas que contrariem os interesses de seus membros mais poderosos, como os Estados Unidos, por exemplo, Annan disse que a reforma da ONU é necessária, pois a estrutura da organização foi pensada há mais de 50 anos, quando a realidade política internacional e as necessidades das nações eram outras: “Estamos engajados na reforma, que é necessária e cuja realização já é aceita por quase todos os países-membros. Mas a sociedade civil precisa entender que a reforma da ONU é um longo processo, e não um evento transformador que acontece da noite para o dia”, afirmou.
Nitin Desai elogiou o trabalho dos 6 mil representantes de ONGs e movimentos sociais de todo o mundo que circularam diariamente em Sandton. “O lobby que vocês fizeram junto aos ministros e chefes de Estado mostrou-se fundamental. No documento final da Rio+10 constam boas resoluções e outras nem tanto. Mas não podemos esquecer que, se conseguimos nos reunir em Johannesburgo e tivemos uma visão matizada da globalização, é graças ao trabalho desenvolvido por vocês”, disse.
Como não há receita pronta para um mundo melhor, e mesmo que a tivéssemos o bolo nunca agradaria a todos os paladares, outra lição que os participantes da Cúpula de Johannesburgo puderam levar para casa é que nada está terminado antes do seu final. E ainda que a conferência não tenha alcançado as metas desejadas pelos que realmente acreditam em mudanças para a salvação do planeta e de toda a sua diversidade, inclusive a humana, há caminhos possíveis e alternativas a construir.
Analuce Freitas, coordenadora de Políticas Públicas do WWF-Brasil, é uma das representantes de ONGs que pensam assim. Na sua avaliação, a cúpula teve mesmo altos e baixos. “Alguns países revelaram preocupação em cumprir os acordos do Rio, mas infelizmente não conseguimos avançar nos meios de implementação da Agenda 21. Temos agora um grande desafio, que é fazer na prática o que propusemos aqui e não foi contemplado, como a proposta do Brasil de utilização de energias renováveis, que recebeu apoio da América Latina e Caribe.” Para ela, os países que não apoiaram essa proposta precisam entender que não podemos ser ambientalmente corretos de um lado do mundo se o outro lado continua poluindo. “Como disse o presidente francês Jacques Chirac, se o mundo desenvolvido continuar com os níveis de consumo atuais, serão necessários dois planetas para suprir todas as necessidades”, conclui.
O presidente Fernando Henrique Cardoso, que encerrou sua participação na Rio+10 na terça-feira, 3, lançando o Arpa (Programa de Áreas Protegidas da Amazônia), acredita que houve alguns avanços em Johannesburgo. “Não avançou no caminho do nosso sonho, mas em outra direção, para percebermos que cada país tem que fazer a sua parte.” Na opinião do presidente, convidado por Annan a integrar missões da ONU quando deixar o governo, “se formos esperar que os ricos venham fazer as coisas por nós, vamos esperar muito tempo e eles não farão nada. Nós é que temos que cuidar da nossa megadiversidade e fazer com que o nosso exemplo possa ser seguido”.
A iniciativa brasileira do Arpa foi apresentada como uma medida concreta para a proteção da biodiversidade amazônica. O programa é uma parceria do governo brasileiro com o Banco Mundial, o GEF (Global Environment Facility) e a organização não-governamental WWF e é o maior projeto para conservação de florestas tropicais do mundo. Em um período de dez anos, o Arpa pretende proteger 500 mil quilômetros quadrados de floresta, a um custo total de US$ 395 milhões. Ao final do programa, 12% da floresta amazônica brasileira estará conservada, representando 3,6% das áreas de florestas tropicais remanescentes no planeta, território equivalente ao da Espanha.
Para Rubens Born, também membro do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS), do ponto de vista dos objetivos que os governos e a ONU pretendiam alcançar na conferência, que seria dar um passo adiante com relação à Rio-92, pode-se dizer que ela fracassou. “O que vimos foram decisões sobre propostas voluntárias, cada país faz o que quer mas não há um acordo global.” E acrescenta: “O resultado da cúpula de Johannesburgo corrói o sistema multilateral e questiona a validade dessas megaconferências. Mas elas continuam sendo importantes. Podemos compará-las ao Congresso Nacional, que às vezes nos decepciona, mas é uma instituição que precisa existir, democrática e cada vez mais aberta à sociedade. Os governos, principalmente dos países desenvolvidos, precisam demonstrar vontade política para darmos o passo adiante”.
Com o que concorda Marcelo Furtado, do Greenpeace-Brasil. Na sua opinião, falta vontade política e recursos para que o desenvolvimento sustentável seja levado a sério. “É difícil pensar em grandes mudanças globais sem decisões globais, porque muitos países desenvolvidos, como os Estados Unidos, se negam a aceitar o multilateralismo. Só vamos conseguir melhorar esse cenário no dia em que colocarmos o Bush em um foguete e o mandarmos de volta para o planeta dele. Aí poderemos salvar o nosso planeta”, conclui Furtado.
E como George W. Bush não veio ao “planeta” Johannesburgo, seu representante, o secretário de Estado Colin Powell, colheu os frutos pelas posições intransigentes e arrogantes dos Estados Unidos antes e durante a cúpula. Na plenária de encerramento, na quarta-feira, 4, enquanto Powell discursava no salão principal do Centro de Convenções de Sandton, representantes de ONGs que assistiam à reunião estenderam duas faixas negras de protesto. Numa delas, o lema da Rio+10, “Povo, planeta e prosperidade”, foi usado para dar o recado ao ausente presidente norte-americano: “Bush: povo e planeta, não grandes negócios”. Quando Powell reclamou que os países africanos não aceitaram a ajuda dos EUA com sementes transgênicas para combater a fome, foi ruidosamente vaiado.
Alguns manifestantes foram retirados do salão pela polícia, mas ainda conseguiram mostrar a segunda faixa, que dizia: “Traídos pelos governos”. Esse foi o espírito de Johannesburgo. Diversidade de opiniões e posturas, muitas vezes conflitantes. Se a conferência não conseguiu produzir todos os avanços esperados, e mais que necessários, cabe às sociedades e aos países realmente preocupados com a questão ambiental continuar a batalha “por um mundo sustentável para todos”.

Representantes de mais de 150 países se reuniram na Rio+10, em Johannesburgo, para discutir o futuro ambiental do planeta: é fundamental, agora, fortalecer a participação da sociedade civil, dizem especialistas

Colaboraram Mylena Fiori e Maurício Thuswohl, da Agência Carta Maior
Leia na última página desta edição mais informações sobre os resultados da Rio+10
 




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