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Rui Pimenta: "O governo de Lula tem as mesmas intenções que o de FHC"
 
Público observa alguns livros temáticos vendidos durante o simpósio




 

O anfiteatro do Departamento de História lotou na maioria dos debates. Ao lado, os participantes discutem sobre a atual situação da esquerda brasileira e o futuro que o resultado das eleições pode trazer

 

Este simpósio teve uma posição ideológica que me impressionou pela quantidade de emoção, porque os participantes estão muito zangados com o mundo, principalmente com os Estados Unidos. Esta frase é do sociólogo norte-americano Ted Goertzel, professor da Universidade de Nova Jersey, que participou de dois dos 12 debates ocorridos durante o Simpósio Internacional “A encruzilhada da América Latina”. Organizado pelo professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Osvaldo Coggiola, o simpósio teve como objetivo principal discutir os atuais problemas de ordem social, política e econômica dos diversos países que compõem a América Latina. Os temas variaram desde a situação das universidades no continente, Hugo Chávez e a Venezuela, os cocaleiros da Bolívia, a situação caótica da Argentina, até as eleições brasileiras. O evento aconteceu nos dias 17, 18 e 19 de setembro no anfiteatro do Departamento de História.

Como era de se esperar, os debates foram caracterizados por uma rica troca de idéias e de conhecimento, até porque os participantes internacionais puderam retratar com clareza o que realmente acontece em seus países. Os argentinos Pablo Rieznik e Jorge Altamira, por exemplo, ficaram decepcionados ao perceber que a mídia brasileira explica muito mal o que vem acontecendo no dia-a-dia da crise argentina.

Movimentos sociais indígenas

O debate intitulado “Rebelião indígena e identidade étnica” trouxe para o público presente a realidade de lutas sociais dos povos indígenas mexicanos e bolivianos. Pedro Ortiz, jornalista mexicano, é autor de dois livros que falam sobre a luta do exército zapatista na região de Chiapas, no México. Ele explicou a ideologia da conquista de direitos através do diálogo defendido pelos zapatistas e por seu líder, o subcomandante Marcos. O jornalista acredita que a criatividade e a originalidade são as características que mais marcam o movimento e permitem que ele exista até hoje. O professor boliviano Gonzalo Trigoso e a doutoranda da FFLCH Vivian Urquidi traçaram um perfil da luta pela sobrevivência dos plantadores da folha de coca na Bolívia. Como até hoje 43% da população do país vive na área rural, os camponeses compõem uma classe que depende desse cultivo para a sobrevivência. Vivian explicou a situação crítica desse campesinato que vem sendo confundido com narcotraficantes, que são, na verdade, os compradores da planta. Ela explicou que “a folha de coca não é proibida de ser cultivada na Bolívia”, mas “infelizmente 10% dela vai para o consumo tradicional – na forma de chá e cosméticos, por exemplo – e 90%, para o narcotráfico”.

Outro ponto levantado foi a quase eleição do líder cocaleiro, Evo Morales, para a presidência no país, o que demonstrou a força que o movimento adquiriu nos últimos tempos. Com um depoimento emocionado, a professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Cremilda Medina narrou sua experiência e seus primeiros contatos com outros povos da América Latina, no caso, o Equador, em 1972. Lá, a professora trabalhou em um projeto para ajudar populações “incomunicáveis” a entrar em contato com outros lugares do mundo e da América Latina. Através de seu relato, Cremilda quis deixar uma mensagem especialmente para os brasileiros presentes, que segundo ela devem se preocupar com a construção de uma “consciência sociológica e literária latino-americana”, como Antonio Candido também já propôs uma vez.

Esquerda em crise

Outro debate que agitou o anfiteatro da História foi o que tratou da situação da esquerda no Brasil e das próximas eleições. A mesa foi composta por dois representantes da extrema esquerda brasileira – Valério Arcary, do PSTU, e o candidato à presidência da República pelo PCO, Rui Costa Pimenta – e por um representante da esquerda “moderada”, Gilberto Maringoni, do PT. Maringoni foi o primeiro a falar e também o mais atacado na mesa pelos outros debatedores. O PSTU e o PCO são partidos formados por dissidentes do PT, que não concordam com a ideologia light que o Partido dos Trabalhadores adotou. Marcado principalmente por ataques de Rui Costa a Maringoni, o debate deixou bem claro, através de palavras dos próprios participantes, que a esquerda brasileira vive uma crise de identidade. Com frases do tipo “o governo de Lula tem as mesmas intenções que o de FHC”, “Lula é o candidato dos capitalistas” e “o PT está levando o movimento operário brasileiro para uma armadilha”, Pimenta não deixou de demonstrar sua insatisfação com o partido que ajudou a fundar e a razão pela qual decidiu se candidatar à presidência neste ano. Arcary, do PSTU, confessou que o partido decidiu apresentar um candidato à presidência porque acha que será útil para os trabalhadores do País. Mesmo assim, no final de seu discurso, disse esperar a vitória de Lula, pois acredita ser ele a melhor escolha entre os quatro principais candidatos. “O Lula é um fenômeno eleitoral. É ele quem tem 40% das intenções de voto e não o PT”, completou.

“Fora a Alca e o FMI”

A dívida externa brasileira e latino-americana e o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foram muito lembrados durante os três dias do simpósio. A frase do sociólogo Ted Goertzel – citada no início desta matéria – dá uma idéia da fúria com que foram tratados a política neoliberal americana, sua influência na América Latina e os empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Goertzel, que em breve lançará um livro sobre a era FHC, esteve presente nos debates “A política dos Estados Unidos e as reformas neoliberais na América Latina” e “Perspectivas do Brasil”. Em ambos defendeu a política econômica e social dos oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso através de gráficos que demonstravam a queda da inflação e da mortalidade infantil, por exemplo. Com um português claudicante, era necessário falar bem devagar para que ele compreendesse as perguntas e a indignação do público.

No primeiro debate, o sociólogo deixou claro que os norte-americanos não tratam de política com paixão e presos ao passado, como ocorre na América Latina. Pelo contrário, explicou, a população e os intelectuais são, em sua maioria, pragmáticos e preocupados com o que acontece hoje. Em um dos momentos mais difíceis do debate, declarou que, atualmente, o continente latino-americano não é uma preocupação do governo americano. Visivelmente desinformado, o professor confessou não fazer a mínima idéia sobre a intervenção americana nas eleições bolivianas. Em julho deste ano, o embaixador dos Estados Unidos na Bolívia, Manuel Rocha, fez declarações aconselhando os eleitores a não votarem em Evo Morales, na época quarto colocado nas pesquisas, e ainda ameaçou que, se o líder cocaleiro fosse eleito, os EUA deixariam de cooperar economicamente com o país.

Mas o sociólogo americano não desconhecia somente o caso boliviano, mas muitos outros problemas da realidade brasileira. Um dado curioso: Goertzel ficou sabendo do simpósio através da Internet e pediu a Coggiola por e-mail para participar de algumas discussões. O organizador do evento explicou que não teria recursos para trazê-lo e hospedá-lo, mas Goertzel garantiu que não precisaria se preocupar com isso. Coggiola, que chegou a dividir uma mesa com o sociólogo, disse que a presença de alguém com idéias diferentes da maioria presente foi importante para demonstrar que não houve nenhuma restrição político-partidária na escolha dos participantes.

O deputado boliviano Evo Morales decepcionou a platéia que pretendia ouvi-lo. Com participações previamente marcadas em dois debates, um na terça-feira e outro na quinta, ele não compareceu a nenhum dos encontros. Morales primeiramente teve problemas para sair de seu país e, depois, chegou no Brasil somente na quarta-feira, por volta das 18 horas. Convidado para participar do último debate daquele dia, que seria às 19h30, declinou do convite e foi descansar no hotel. No dia seguinte, no início da tarde, já havia retornado para a Bolívia. Como organizador do evento, Coggiola justificou-se: “Devido à situação política crítica que ele vive, eu prefiro não fazer nenhum tipo de comentário, até porque não tenho todas as informações necessárias que me permitam fazer uma idéia”. De qualquer forma, ele garante que o simpósio foi um sucesso, apesar da pouca divulgação e dos poucos recursos. “Isso demonstra uma grande avidez por um debate desse tipo, pois quase sem publicidade conseguimos juntar muita gente”, disse o professor. “A Encruzilhada da América Latina” contou com o apoio da Comissão de Pesquisa do Conselho Universitário e da diretoria da FFLCH.

 




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