Munari: professor, artista e artesão
 
 

 
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Ramsés em seu harém,de J. J. A. Lecomte de Noüy

Danaide, de Rodin: presença da mitologia greco-romana
Mulher segurando uma balança, de Johannes Vermeer
Vista de Delfi, de Johannes Vermeer: simplicidade e originalidade
O costume da arte, de Luiz Munari, Editora Fupam, 250 páginas, R$ 25,00

Todos somos artistas. Pelo menos é essa certeza que Luiz Munari desperta entre os alunos da FAU quando ensina História da Arte. A proposta do professor, no entanto, não é incentivar o pessoal a sair pintando, cantando, esculpindo, dançando. Mas olhar a arte além das galerias, dos ateliês, dos teatros. Ver a arte no cotidiano do trabalho, da família e até mesmo nas próprias ações. São essas pinceladas pouco formais que Munari leva, há 11 anos, para as salas de aula. A síntese das lições está sendo apresentada, agora, no livro O costume da arte, lançado pela Editora Fupam (Fundação para a Pesquisa Ambiental).

“Há muitas artes em todas as áreas em que o homem opera”, observa o professor. “Preenchendo todos os campos de cultura, elas vão das mais comuns e prosaicas até as mais eruditas e sofisticadas: do enfeite de bolo do padeiro da esquina a um poema de Fernando Pessoa; do refrão de uma música popular a um quadro de Kandinsky.”

No empenho de contar uma história com novas cores, Munari faz, na introdução do livro, uma reflexão sobre o ser. “Todas as artes têm origem nos costumes. Porém, antes de surgirem os costumes, existem as determinações naturais, que podem ser melhor percebidas pela descrição de um animal”, diz. “Ao nascer sem escolha nenhuma, todo ser traz em si características geneticamente herdadas de seus pais. São a forma do corpo e as cores que o enfeitam, ou o enfeitarão mais adiante, a determinação do sexo e até certos comportamentos, como a agressividade ou a tranqüilidade. Herdado também é o instinto, que define a atitude frente a certas atividades que parecem ser automáticas e elementares. São essas determinações da natureza que aproximam um ser de seus semelhantes. Mas isso tudo não completa esse ser. Para que ele seja plenamente realizado, é preciso uma interação com o ambiente. Essa interação afeta seu comportamento e, às vezes, até a forma de seu corpo. Se um ser nasce em um lugar quente, terá um comportamento específico para sobreviver. Se nascer em um lugar frio, terá outro modo de agir.”

Munari desenha a arte como a necessidade do ser e da interação com a sociedade. Tudo o que o homem faz para agradar ou se comunicar com o outro é arte. Explica que enfeitar, embelezar parecem ações dispensáveis para a sobrevivência. “Uma roupa que esquenta não precisa enfeitar, mas proteger. Um aviso não precisa agradar, mas comunicar. Uma casa não precisa ser bela, mas abrigar. No entanto, em todas as civilizações e culturas, descobertas pela história, proto-história e também pela pré-história, existem vestígios, sinais, índices e provas de que essas atividades foram praticadas para agradar, enfeitar, embelezar.”

 
A Síbila Pérsica, uma das imagens de Michelangelo para a Capela Sistina

Essa necessidade é a expressão do desejo humano. Desejo de fazer algo atraente para quem vê, ouve e tateia. “O homem é um animal peculiar. Ele tem corpo, mas também tem espírito ou alma, ou psique, e exerce mais funções com isso do que com o próprio corpo. O homem produz para o corpo, mas também para o espírito. Desse modo, essa atração, esse desejo aparece como uma necessidade da alma, como algo que ultrapassa a simples materialidade das coisas e chega através dos sentidos. Provoca ainda modificações interiores. Essa coisa imaterial é o que agita o espírito.”

Foi da vontade de agradar construindo uma casa bonita, costurando uma roupa diferente, preparando uma alimentação que desperte o paladar que surgiram a arte da arquitetura, da moda e da culinária. Coisas simples, porém essenciais para dar um impulso à trajetória humana. Munari dá um panorama dos caminhos diferentes da arte e o mais curioso é a forma como ele compara o desejo de agradar entre homens e animais. O costume da arte, então, é quase instintivo. Serve também como arma para a conquista, a sedução, o sexo ou o acasalamento. “Aparentemente, tudo o que pode ser qualificado como constante nos costumes não é próprio do homem. Presentes em outras espécies, foram, provavelmente, desenvolvidos em épocas anteriores à humanidade”, observa. “Há pássaros que conquistam pelo canto, o que pode também ser uma espécie de desafio para seus pares. Eles entoam árias longas e contínuas para uma platéia de fêmeas, que se mostram prontas a acompanhar o melhor canto. Como nas cotovias, esse comportamento pode durar horas.”

O professor explica que a sedução feminina fez e faz história, desde as gueixas orientais e as divindades gregas até as divas atuais. “Plínio reclamava das romanas, que se empenhavam em conseguir vestidos de seda para aparecerem nuas em público. Isso mostra que a sedução feminina, para o homem, relaciona-se pouco com o comportamento, mas muito com a beleza do corpo. Um corpo desnudo ainda é o maior atrativo feminino, pois a conquista masculina, diferente da sedução, é um mostrar-se amplo, que vai além da forma de seu próprio corpo masculino e tem muito de comportamental. Nesse sentido, pode-se dizer que a mulher é conquistada pelo espírito, enquanto o homem é seduzido pela matéria.”

A cultura pelos tempos

A análise filosófica do livro O costume da arte faz a diferença para os leitores. Importante lembrar que o autor tem toda a sua formação – graduação, mestrado e doutorado – na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em um dos capítulos ele discute o grupo humano, a sua sobrevivência e convivência e o surgimento da ética e estética nos costumes e no comportamento. “Considerando-se que a cultura surge a partir do desenvolvimento de linguagens pelos primatas, pode-se supor que a ética e estética são posteriores a ela”, analisa. “Antes de formular uma ética, foi preciso que esse hominídeo dispusesse de várias linguagens, como gestos e sinais.”
Munari explica que a comunidade humana que ainda parece viver somente para o presente e as necessidades do dia-a-dia projeta-se no futuro e reverencia o passado porque dispõe de muitas linguagens, especialmente a da fala. “Os sinais pintados e gravados na arte parietal remontam há 35 mil anos, no entanto, tais manifestações devem ter surgido muito tempo antes, com os utensílios, que ainda podem ser encontrados na África, em terrenos datados de mais de 2 milhões de anos.”

 
A Calúnia, de Sandro Botticelli: imagem que ilustra a capa do livro

Com muita propriedade, o professor vai na contramão daqueles que defendem que a arte vem do ócio. Segundo ele, esse preceito é uma “esculhambação do próprio artista”. Considera: “A arte foi gerada no trabalho, na cidade, de um desejo, que se transformou em necessidade. O costume de fazer arte já é, em si, uma necessidade. Desocupado é quem crê que a arte e a filosofia nasceram de pessoas desocupadas, pois não conseguem imaginar que pensar é um dos trabalhos mais árduos e difíceis que o homem executa e não existe arte sem pensamento. No entanto, há pessoas que pensam assim, são as que vivem em seu mundo particular, fazendo dele uma natureza própria e acabam por enxergar o resto do mundo sob a ótica peculiar de seus interesses ou profissões. Os gregos já conheciam o tipo e diziam que essas pessoas têm um caráter próprio. São os idiotas”.

Fonte de sentidos

A arte, segundo Munari, é uma fonte inesgotável dos sentidos. “Nas artes visuais, a visão é o primeiro sentido requisitado e, em seguida, elas exigem o tato, o mais arcaico dos sentidos, que vai dar origem aos outros sentidos ao se especializar e se espacializar”, explica. “Agora, o olfato é a sensibilidade às partículas aromáticas. Traduz-se pelo contato com micromatérias. O paladar, do mesmo modo, é a sensibilidade a micropartículas. O ouvido implica um contato mais sutil. É a sensibilidade para a vibração de massas de ar, portanto, um contato com a matéria sob a forma de átomos. Representa, assim, uma sensibilidade mais fina do que o olfato e o paladar.”

O professor destaca que a arte desperta todos os sentidos. Lembra que Aristóteles já assinalava, no tratado Da Alma, que o sentido comum, isto é, a união de todos os sentidos é aquilo que permite um conhecimento do mundo sensível.

 
Michelângelo faz Moisés emergir do mármore (à esquerda) e A Última Comunhão de São Jerônimo (ao lado), tela de Botticelli

Para analisar Botticelli, Rubens, Rembrandt, Michelaqngelo, o professor aguça todos os sentidos. Vai pontuando a história da arte sob a luz da filosofia. E, além de analisar várias obras, preocupa-se em contextualizá-las na realidade. Mostra o mercado de arte nos anos 30 e 40. “A guerra sufocava a Europa, enquanto Hitler confiscava quadros de museus e coleções de países ocupados, remetendo-os para a Alemanha. Obras importantes emergiram e esse clima de rescaldo cultural durou até meados dos anos 50, mesmo durante a reconstrução européia”, conta. “Em 1945, próximo ao fim da guerra, soldados da 7a. Armada americana descobriram, em minas de sal, as obras confiscadas por Hitler.”

Sonhar é um direito da arte. “Alguns poetas sonharam que um dia a humanidade seria toda de poetas e que todos produziriam obras de arte, numa espécie de Idade do Ouro, vivendo em Campos Elísios ou nas Arcádias da vida”, observa Munari. “Isso pode parecer uma ilusão, mas, na verdade, todos os homens fazem obras de arte. Alguns mais persistentes, outros mais preguiçosos, mas todos já criaram algo para agradar a alguém. Não importa que seja uma obra modesta ou corriqueira: do bordado da renda ao traço sutil em uma tela, da cerâmica mal cozida ao carrara esculpido, as obras realizam-se por todos, em todos os tempos.”

Em seu cotidiano, Luiz Munari também tem a arte como costume. Além de pesquisar a sua história, é um artista e artesão. Na sua casa, os vitrais da fachada foram feitos por ele. Confeccionou, ainda, os vasos que enfeitam a mesa e o bufê da sala de jantar. Nas horas vagas, também é marceneiro. Fez todos os armários da cozinha e da sala de jantar. São caprichos que faz questão de cultivar no dia-a-dia só para agradar à mulher, aos filhos e a todos que o visitam.

 




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