Todos
somos artistas. Pelo menos é essa certeza que Luiz Munari
desperta entre os alunos da FAU quando ensina História da
Arte. A proposta do professor, no entanto, não é incentivar
o pessoal a sair pintando, cantando, esculpindo, dançando.
Mas olhar a arte além das galerias, dos ateliês, dos
teatros. Ver a arte no cotidiano do trabalho, da família
e até mesmo nas próprias ações. São
essas pinceladas pouco formais que Munari leva, há 11 anos,
para as salas de aula. A síntese das lições
está sendo apresentada, agora, no livro O costume da arte,
lançado pela Editora Fupam (Fundação para a
Pesquisa Ambiental).
“Há
muitas artes em todas as áreas em que o homem opera”,
observa o professor. “Preenchendo todos os campos de cultura,
elas vão das mais comuns e prosaicas até as mais eruditas
e sofisticadas: do enfeite de bolo do padeiro da esquina a um poema
de Fernando Pessoa; do refrão de uma música popular
a um quadro de Kandinsky.”
No
empenho de contar uma história com novas cores, Munari faz,
na introdução do livro, uma reflexão sobre
o ser. “Todas as artes têm origem nos costumes. Porém,
antes de surgirem os costumes, existem as determinações
naturais, que podem ser melhor percebidas pela descrição
de um animal”, diz. “Ao nascer sem escolha nenhuma,
todo ser traz em si características geneticamente herdadas
de seus pais. São a forma do corpo e as cores que o enfeitam,
ou o enfeitarão mais adiante, a determinação
do sexo e até certos comportamentos, como a agressividade
ou a tranqüilidade. Herdado também é o instinto,
que define a atitude frente a certas atividades que parecem ser
automáticas e elementares. São essas determinações
da natureza que aproximam um ser de seus semelhantes. Mas isso tudo
não completa esse ser. Para que ele seja plenamente realizado,
é preciso uma interação com o ambiente. Essa
interação afeta seu comportamento e, às vezes,
até a forma de seu corpo. Se um ser nasce em um lugar quente,
terá um comportamento específico para sobreviver.
Se nascer em um lugar frio, terá outro modo de agir.”
Munari
desenha a arte como a necessidade do ser e da interação
com a sociedade. Tudo o que o homem faz para agradar ou se comunicar
com o outro é arte. Explica que enfeitar, embelezar parecem
ações dispensáveis para a sobrevivência.
“Uma roupa que esquenta não precisa enfeitar, mas proteger.
Um aviso não precisa agradar, mas comunicar. Uma casa não
precisa ser bela, mas abrigar. No entanto, em todas as civilizações
e culturas, descobertas pela história, proto-história
e também pela pré-história, existem vestígios,
sinais, índices e provas de que essas atividades foram praticadas
para agradar, enfeitar, embelezar.”
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A Síbila Pérsica, uma
das imagens de Michelangelo para a Capela Sistina |
Essa
necessidade é a expressão do desejo humano. Desejo
de fazer algo atraente para quem vê, ouve e tateia. “O
homem é um animal peculiar. Ele tem corpo, mas também
tem espírito ou alma, ou psique, e exerce mais funções
com isso do que com o próprio corpo. O homem produz para
o corpo, mas também para o espírito. Desse modo, essa
atração, esse desejo aparece como uma necessidade
da alma, como algo que ultrapassa a simples materialidade das coisas
e chega através dos sentidos. Provoca ainda modificações
interiores. Essa coisa imaterial é o que agita o espírito.”
Foi
da vontade de agradar construindo uma casa bonita, costurando uma
roupa diferente, preparando uma alimentação que desperte
o paladar que surgiram a arte da arquitetura, da moda e da culinária.
Coisas simples, porém essenciais para dar um impulso à
trajetória humana. Munari dá um panorama dos caminhos
diferentes da arte e o mais curioso é a forma como ele compara
o desejo de agradar entre homens e animais. O costume da arte, então,
é quase instintivo. Serve também como arma para a
conquista, a sedução, o sexo ou o acasalamento. “Aparentemente,
tudo o que pode ser qualificado como constante nos costumes não
é próprio do homem. Presentes em outras espécies,
foram, provavelmente, desenvolvidos em épocas anteriores
à humanidade”, observa. “Há pássaros
que conquistam pelo canto, o que pode também ser uma espécie
de desafio para seus pares. Eles entoam árias longas e contínuas
para uma platéia de fêmeas, que se mostram prontas
a acompanhar o melhor canto. Como nas cotovias, esse comportamento
pode durar horas.”
O professor
explica que a sedução feminina fez e faz história,
desde as gueixas orientais e as divindades gregas até as
divas atuais. “Plínio reclamava das romanas, que se
empenhavam em conseguir vestidos de seda para aparecerem nuas em
público. Isso mostra que a sedução feminina,
para o homem, relaciona-se pouco com o comportamento, mas muito
com a beleza do corpo. Um corpo desnudo ainda é o maior atrativo
feminino, pois a conquista masculina, diferente da sedução,
é um mostrar-se amplo, que vai além da forma de seu
próprio corpo masculino e tem muito de comportamental. Nesse
sentido, pode-se dizer que a mulher é conquistada pelo espírito,
enquanto o homem é seduzido pela matéria.”
A
cultura pelos tempos
A análise
filosófica do livro O costume da arte faz a diferença
para os leitores. Importante lembrar que o autor tem toda a sua
formação – graduação, mestrado
e doutorado – na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP. Em um dos capítulos ele discute o
grupo humano, a sua sobrevivência e convivência e o
surgimento da ética e estética nos costumes e no comportamento.
“Considerando-se que a cultura surge a partir do desenvolvimento
de linguagens pelos primatas, pode-se supor que a ética e
estética são posteriores a ela”, analisa. “Antes
de formular uma ética, foi preciso que esse hominídeo
dispusesse de várias linguagens, como gestos e sinais.”
Munari explica que a comunidade humana que ainda parece viver somente
para o presente e as necessidades do dia-a-dia projeta-se no futuro
e reverencia o passado porque dispõe de muitas linguagens,
especialmente a da fala. “Os sinais pintados e gravados na
arte parietal remontam há 35 mil anos, no entanto, tais manifestações
devem ter surgido muito tempo antes, com os utensílios, que
ainda podem ser encontrados na África, em terrenos datados
de mais de 2 milhões de anos.”
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A Calúnia, de Sandro Botticelli:
imagem que ilustra a capa do livro |
Com
muita propriedade, o professor vai na contramão daqueles
que defendem que a arte vem do ócio. Segundo ele, esse preceito
é uma “esculhambação do próprio
artista”. Considera: “A arte foi gerada no trabalho,
na cidade, de um desejo, que se transformou em necessidade. O costume
de fazer arte já é, em si, uma necessidade. Desocupado
é quem crê que a arte e a filosofia nasceram de pessoas
desocupadas, pois não conseguem imaginar que pensar é
um dos trabalhos mais árduos e difíceis que o homem
executa e não existe arte sem pensamento. No entanto, há
pessoas que pensam assim, são as que vivem em seu mundo particular,
fazendo dele uma natureza própria e acabam por enxergar o
resto do mundo sob a ótica peculiar de seus interesses ou
profissões. Os gregos já conheciam o tipo e diziam
que essas pessoas têm um caráter próprio. São
os idiotas”.
Fonte
de sentidos
A arte,
segundo Munari, é uma fonte inesgotável dos sentidos.
“Nas artes visuais, a visão é o primeiro sentido
requisitado e, em seguida, elas exigem o tato, o mais arcaico dos
sentidos, que vai dar origem aos outros sentidos ao se especializar
e se espacializar”, explica. “Agora, o olfato é
a sensibilidade às partículas aromáticas. Traduz-se
pelo contato com micromatérias. O paladar, do mesmo modo,
é a sensibilidade a micropartículas. O ouvido implica
um contato mais sutil. É a sensibilidade para a vibração
de massas de ar, portanto, um contato com a matéria sob a
forma de átomos. Representa, assim, uma sensibilidade mais
fina do que o olfato e o paladar.”
O professor
destaca que a arte desperta todos os sentidos. Lembra que Aristóteles
já assinalava, no tratado Da Alma, que o sentido comum, isto
é, a união de todos os sentidos é aquilo que
permite um conhecimento do mundo sensível.
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Michelângelo faz Moisés
emergir do mármore (à esquerda) e A Última
Comunhão de São Jerônimo (ao lado), tela
de Botticelli |
Para
analisar Botticelli, Rubens, Rembrandt, Michelaqngelo, o professor
aguça todos os sentidos. Vai pontuando a história
da arte sob a luz da filosofia. E, além de analisar várias
obras, preocupa-se em contextualizá-las na realidade. Mostra
o mercado de arte nos anos 30 e 40. “A guerra sufocava a Europa,
enquanto Hitler confiscava quadros de museus e coleções
de países ocupados, remetendo-os para a Alemanha. Obras
importantes emergiram e esse clima de rescaldo cultural durou até
meados dos anos 50, mesmo durante a reconstrução européia”,
conta. “Em 1945, próximo ao fim da guerra, soldados
da 7a. Armada americana descobriram, em minas de sal, as obras confiscadas
por Hitler.”
Sonhar
é um direito da arte. “Alguns poetas sonharam que um
dia a humanidade seria toda de poetas e que todos produziriam obras
de arte, numa espécie de Idade do Ouro, vivendo em Campos
Elísios ou nas Arcádias da vida”, observa Munari.
“Isso pode parecer uma ilusão, mas, na verdade, todos
os homens fazem obras de arte. Alguns mais persistentes, outros
mais preguiçosos, mas todos já criaram algo para agradar
a alguém. Não
importa que seja uma obra modesta ou corriqueira: do bordado da
renda ao traço sutil em uma tela, da cerâmica mal cozida
ao carrara esculpido, as obras realizam-se por todos, em todos os
tempos.”
Em
seu cotidiano, Luiz Munari também tem a arte como costume.
Além de pesquisar a sua história, é um artista
e artesão. Na sua casa, os vitrais da fachada foram feitos
por ele. Confeccionou, ainda, os vasos que enfeitam a mesa e o bufê
da sala de jantar. Nas horas vagas, também é marceneiro.
Fez todos os armários da cozinha e da sala de jantar. São
caprichos que faz questão de cultivar no dia-a-dia só
para agradar à mulher, aos filhos e a todos que o visitam.
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