Pelos
próximos quatro anos, a Faculdade de Medicina da USP estará
nas mãos de um milanês de nascimento, paulista de estudo,
vida e profissão, viajante por gosto cultural, são-paulino
por rebeldia de caçula contra os palmeirenses da família,
apreciador da boa mesa e do bom vinho, amante da música clássica,
assinante dos pacotes do Teatro Cultura Artística e da Sala
São Paulo, especialista em radiologia e trabalhador incansável
com presença diária na faculdade e no Hospital das
Clínicas das 7 às 21 horas. Aos 49 anos, foi disparado
o mais votado nas eleições da lista tríplice
para diretor, tendo recebido 144 dos 190 votos do colégio
formado por representantes de professores, alunos e funcionários
e a concordância do reitor. Chama-se Giovanni Guido Cerri,
formou-se na USP em 1976, fez doutorado em 84, livre-docência
em 86, é professor titular desde 96, tem cursos de especialização
nos Estados Unidos e França, 11 livros e mais de 200 artigos
científicos publicados, é membro de inúmeras
associações nacionais e internacionais na área
de sua especialidade, presidiu por cinco vezes a Comissão
de Pós-Graduação e é diretor clínico
do HC. Casado, tem três filhos, que não pretendem seguir
a carreira do pai, certamente porque aprenderam em casa que médico
tem que trabalhar muito, passar fins de semana fora, sem ganhar
muito dinheiro.
Atraso
de trinta anos
Giovanni
Cerri apresenta-se à comunidade interna com um programa administrativo
simples, com duas prioridades: dar excelência cada vez maior
ao ensino de graduação, melhorando a infra-estrutura
da escola, e modernizar o Hospital das Clínicas e o Hospital
Universitário, as duas bases práticas, quase laboratórios,
do ensino de medicina na USP.
Embora o ensino da USP em todas as áreas e particularmente
na Medicina constitua exemplo para o Brasil, o diretor escolhido
observa que ainda há muito por fazer. “Temos os melhores
alunos e os melhores professores, mas estamos trinta anos atrasados
no ensino de graduação, por falta de infra-estrutura.”
Sua proposta será criar laboratórios de habilidades,
para que os alunos possam trabalhar com bonecos, familiarizar-se
com cirurgias laparoscópicas (exploração abdominal),
com técnicas tridimensionais, etc. Quando chegar a hora,
estarão aptos a lidar com pessoas. Informatizar as salas
de aula é outra prioridade, levando sempre em conta que a
cabeça dos jovens de hoje é bem diferente das cabeças
de 20 anos atrás. E não são só os alunos
que precisam de orientação; os docentes ficam para
trás se não acompanham os avanços tecnológicos.
Isso não quer dizer que o professor Cerri queira acabar com
as aulas tradicionais que, embora mantidas, não impedirão
a faculdade de dar um salto para a modernidade.
Os
recursos para melhoria da infra-estrutura existem. Eles vêm
na maior parte das fundações que repassam uma parte
para a diretoria da faculdade que, por sua vez, os aloca em prioridades
– no caso da futura administração, na melhoria
da graduação e nos hospitais-escola. “Muitas
faculdades de medicina foram criadas no Brasil, mas funcionam sem
hospitais, o que é uma aberração”, critica
Cerri.
As
duas fundações existentes – Medicina e Zerbini
– têm características próprias. São
de apoio ao HC. Recebem recursos oriundos do atendimento pelo SUS
(Sistema Único de Saúde) e dos convênios e os
reinvestem no hospital e na suplementação dos salários
dos profissionais, a fim de não perder para o mercado um
pessoal altamente capacitado. “As fundações
asseguram a excelência do ensino na Faculdade de Medicina”,
garante o novo diretor. Quanto aos convênios, Cerri aponta
o Incor como exemplo dos benefícios deles decorrentes. O
excepcional atendimento dado aos pacientes vindos do SUS só
é possível graças a esses convênios particulares.
Sessenta por cento dos recursos destinados ao instituto vêm
deles. Os conveniados não representam mais que 10% dos pacientes
do HC e o atendimento é igual para todos. Há
uma diferença: pacientes de convênios não recebem
medicamentos gratuitamente como os do SUS.
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Cerri:
ao fundo, o prédio que precisa de restauro |
Outra
informação do professor: o HC poderia atender pelo
SUS muito mais pessoas do que o faz hoje em razão do teto
fixado pela Secretaria da Saúde. Essa ampliação
será objeto de campanha que o novo diretor pretende iniciar
assim que assumir o cargo.
O certo
é que a Faculdade de Medicina não usa todo o potencial
do HC, que dispõe de instituições de todos
os níveis de complexidade: primário (para atendimento
simples e triagem, como o Centro de Saúde do Butantã);
secundário, voltado para a clínica geral, pediatria,
cirurgia geral, obstetrícia etc., como o HU) e terciário
(atendimento de alta complexidade, cirurgia plástica, cirurgia
cardíaca, como o HC). Nesse
ponto, os alunos da Faculdade de Medicina da USP são uns
sortudos: têm uma rede complexa para atuação
e residência. Uma piada do novo diretor: dizia-se antigamente,
quando os professores ainda não tinham alcançado nível
de excelência, que enchiam de túmulos o cemitério
ao lado; hoje, todos os pacientes voltam para casa.
Uma
carreira nada fácil
De
vez em quando, alunos de medicina são acusados de comportamentos
estranhos e até violentos em festas de calouros e competições
esportivas. Será que isso tem a ver com as pressões
a que são submetidos durante o curso? “Não posso
dizer que o índice de violência ou de uso de drogas
seja diferente do de outras faculdades”, diz Cerri. “É
certo, porém, que quanto mais a carreira leva ao estresse,
mais problemas de comportamento aparecem”. As pressões
certamente vêm de fatores como dificuldade de ingressar no
curso, estudar em período integral, dar conta de disciplinas
complexas e manter-se. Em vista disso, a faculdade dá apoio
psicológico aos estudantes. “Houve casos tristes de
comportamento, mas não são exclusividade daqui. Todas
as cidades grandes pressionam muito. A instituição
tem que dar ajuda ao aluno para que supere o estresse e a carga
emocional.”
Uma
forma de fazê-lo é garantir a prática de lazer
e esporte. “A nossa Atlética (associação)
é belíssima, com muita área verde, piscina
e praças para esportes”, tranqüiliza o diretor
eleito, que não se esquece de mencionar uma última
missão a cumprir: o restauro do prédio da Medicina.
Para isso vai precisar de uns R$ 30 milhões, que pretende
buscar na iniciativa privada.
Se
o professor Giovanni Guido Cerri passa mais de 12 horas na faculdade,
como faz para rodar o mundo e voltar sempre à Itália
e à França por conta da cultura e da boa cozinha?
Para isso Deus fez as férias que, a partir do dia 30 ou 31
(ele ainda não está certo da data), quando assume
o comando da faculdade, se tornarão cada vez mais curtas.
De qualquer modo, São Paulo é bom lugar para apreciadores
da cozinha internacional.
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