Nesses
primeiros momentos após a eleição histórica
de Luiz Inácio Lula da Silva, o cientista político
e professor da Unicamp Leôncio Martins Rodrigues, não
se diz otimista. Nem pessimista contudo. “Estou esperando
para ver”, conta em entrevista exclusiva ao Jornal da USP.
Ele explica que o governo petista deverá enfrentar inúmeras
dificuldades e que nada virá facilmente, mas que parece haver,
por outro lado, uma disposição geral da classe política
brasileira – patriótica, poderia-se dizer – de
fazer com que esse novo governo dê certo. Segundo Rodrigues,
está todo mundo torcendo por Lula e para que o Brasil não
seja uma nova Argentina, o que pode ser visto, para ele, como um
sinal de maturidade política brasileira. Leia abaixo os principais
trechos da entrevista.
Jornal
da USP – Quais são os significados dessa vitória
eleitoral de Lula no plano simbólico e no plano concreto?
Leôncio Martins Rodrigues – Para os eleitores, eu acho
que a vitória de Lula foi a vitória da emoção
e da esperança. Da esperança de melhora, de diminuição
do desemprego e da violência, de melhora dos níveis
salariais e de desigualdade social. Eu penso que para a maioria
dos eleitores esses aspectos não estão tão
claramente definidos quanto eu estou colocando aqui. Mas isso apareceu
muito claramente nas festas de comemoração dos eleitores.
Num
plano mais concreto, a ascensão do PT é um indicador
de uma mudança na composição da elite política
brasileira. No final, significa uma ascensão de elementos
de classe média, apesar do termo ser um pouco vago, ao poder.
Lula é o símbolo disso. Se fala muito do operário.
Seguramente, Lula era um operário, mas o segmento metalúrgico
sempre foi um segmento de salários mais ou menos elevados,
de classe média. Eu mesmo fiz uma pesquisa tempos atrás
com trabalhadores da Ford e detectei isso. De qualquer forma, essa
mudança não aconteceu subitamente com Lula. É
um processo que já vem acontecendo há algum tempo.
Não significa dizer que foram excluídos do poder os
políticos originários de famílias e classes
mais tradicionais. Na verdade, estamos num momento de transição
em que há a permanência do antigo, com a ascensão
do novo. E a eleição de Lula é, a meu ver,
a culminância desse processo.
JUSP
– Desses primeiros pronunciamentos de Lula, o senhor vê
alguma diferença entre o candidato e o Lula presidente?
Rodrigues – Não. Eu acho que essa mudança se
deu antes da vitória de Lula. Foi, basicamente, o abandono
do estilo mais agressivo que era compatível com propostas
mais radicais que vinham desde a fundação do PT. Ao
longo do período, o PT foi se tornando menos radical. Mesmo
posturas como a ênfase na classe trabalhadora, a rejeição
de uma democracia que ele chamava de burguesa, a crítica
à Igreja como ligada às classe dominantes, foram sendo
atenuadas ao longo da vida do PT. Não
foi um processo simples, foi sempre um processo doloroso num partido
que vem com posições muito radicais de transformação
da sociedade, de busca de um novo Brasil.
JUSP
– Essa mudança na cara do PT teve como objetivo claro
vencer as eleições. O senhor acha que se trataria,
então, de uma maquiagem, de uma máscara que deverá
cair a qualquer momento?
Rodrigues
– Não, eu acho que houve um amadurecimento mesmo e
que não foi uma fantasia. Os partidos, numa democracia, sempre
acabam se adaptando ao que o eleitor quer. É a maneira de
ganhar e todos eles fazem isso. Você pode notar, por exemplo,
que os programas eleitorais acabaram ficando muito parecidos. O
PT se adaptou para ganhar as eleições, mas eu não
acho que essa mudança seja puramente tática. É
comum que os partidos mudem de atitude ao se aproximar do poder,
porque percebem que certas coisas não são tão
fáceis assim. Partidos que não têm a menor chance
de vencer podem dizer qualquer coisa sem pensar nas conseqüências.
Tem a idade, também. Ninguém pensa muito nisso, mas
o PT é composto, hoje, de pessoas mais velhas. O Lula de
hoje não é o Lula jovem do movimento sindical. É
uma gente já escaldada por todos esses anos. A conseqüência
foi uma caminhada do PT à direita, se você quiser,
e que atingiu seu máximo agora com a eleição
do Lula.
JUSP
– Como o próximo governo deve lidar com os diversos
grupos de interesses, até antagônicos, dos quais recebeu
apoio?
Rodrigues
– Não ficou muito claro qual é a nova ideologia
do PT. Cada eleitor votou no Lula imaginando uma coisa. Vai ser
um problema compatibilizar essas coisas. Compatibilizar o compromisso
com a manutenção da moeda, a contenção
da inflação, a reivindicação dos funcionários,
das classes trabalhadoras, pois seguramente haverá uma pressão
nessa direção. Esse primeiro discurso do Lula agradou
a todo mundo. Isso sinaliza para um governo que não será
muito radical. Mas vai encontrar na prática uma série
de dificuldades.
JUSP
– Ele deve continuar assim, tentando agradar a todos, ou acabará
tendo que escolher um determinado caminho mesmo que não seja
consensual?
Rodrigues
– O próprio governo não tem muita certeza disso.
Quando começar a funcionar a equipe de transição,
eles vão ter mais informações e vão
poder definir melhor o que poderão fazer. O que está
me parecendo é que Lula está pondo muita fé
num pacto social de negociações diretas entre governo,
empresários e representantes dos trabalhadores. Esse tipo
de atuação significa escapar um pouco das negociações
pelos canais tradicionais da política que seriam os partidos
e o parlamento. Quer dizer ir mais um pouco para o lado da sociedade
civil, resolver os conflitos através do consenso. É
algo que está ainda para se ver como irá funcionar.
Lula acredita muito na sua capacidade de negociação.
Ele está com uma grande legitimidade pelo número de
votos que obteve e acredita que isso possa ser um fator positivo
e que possa obter êxito. Eu acho que isso é um fator
positivo, que ajuda, mas não resolve todos os problemas.
Sempre há um limite em que as pessoas não querem ceder
em seus interesses.
JUSP
– Existe, na sua opinião, o risco de a figura de Lula
acabar caindo para o campo do populismo exacerbado?
Rodrigues
– É uma boa pergunta. É verdade que a vitória
de Lula se deveu mais à figura pessoal dele do que do PT
e esse fato pode, sim, dar estímulos para o populismo. Eu
acho que o risco existe, mas que a sociedade brasileira, o eleitorado,
de maneira geral, está mais maduro e não aceitaria
algo assim. Porque um populismo dessa maneira significaria passar
por cima de partidos, tentar pôr de lado o domínio
do Congresso e eu não acredito que haja condições
no Brasil para isso, mesmo porque não houve uma vitória
esmagadora do PT.
JUSP
– Como é que o mundo está vendo e deverá
ver o Brasil com o Lula?
Rodrigues
– O Bush já fez declarações e costuma
expressar uma visão um tanto pejorativa em relação
ao Terceiro Mundo. Mas eu acho que isso não vai ocorrer na
Europa, por exemplo. Muito pelo contrário. O Brasil demonstrou
ter uma democracia bastante consolidada e está fazendo uma
passagem de poder muito civilizada. O resto vai depender de como
Lula se comportar. Até agora ele tem assumido uma postura
muito de estadista e não de líder sindical. A postura
dele, falando com calma, com segurança – ele fala bastante
bem – passa confiança. Ele aprende com muita rapidez
e penso que ele será aceito como um político respeitável,
presidente de um país que tem um grande peso e um grande
potencial. Acho que ele acabará sendo bem-aceito.
JUSP
– Como o senhor avalia essas primeiras declarações
de Lula depois de eleito em relação ao combate à
pobreza e à criação de novos órgãos,
como a Secretaria da Fome?
Rodrigues
– O investimento do Brasil em gastos sociais não é
baixo, é alto. Não se gasta pouco, o problema é
que se gasta mal. O pobre não recebe grande parte do que
lhe é destinado. Para montar um novo órgão,
você começa contratando gente, funcionários,
motoristas, você precisa de um espaço. Uma parte do
dinheiro já fica aí. Tem uma outra coisa que o PT,
que Lula, levantou que pode ser mais importante: o combate à
corrupção. O PT, de certo modo, tem cacife para isso,
porque é um partido menos tolerante à corrupção
do que outros partidos. É uma bandeira muito importante,
que ganha eco entre os eleitores e nesse ponto eu sou muito otimista.
O combate à corrupção pode contribuir mais
para uma melhor distribuição da renda do que a criação
de um novo órgão. Além do custo da corrupção,
há o desperdício que é muito grande no Brasil.
O Brasil desperdiça demais.
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