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No Brasil, o primeiro Código Civil nos chegou em 1916 e entrou em vigor em 1917. Até então – embora o Brasil já fosse República há bons anos –, os brasileiros se encontravam sob a égide da legislação portuguesa. Nesse anterior Código Civil, cujo construtor foi o arquifamoso jurista brasileiro Clóvis Bevilaqua, encontrava-se o conjunto de regras sobre a pessoa, a família e o patrimônio, descrevendo os direitos a estas categorias atinentes, como o direito de família, o direito das obrigações, o direito dos contratos, a responsabilidade civil, o direito das coisas e o direito das heranças. Tudo isso precedido por um corpo de regras de caráter genérico, acerca das pessoas, dos bens em geral e dos atos jurídicos, corpo este denominado Parte Geral e que tem por escopo a fixação dos conceitos primordiais que estarão a serviço das demais fases destacadas, em especial.

Esse primeiro código vigorou, entre nós, por 86 anos, mas tem, na verdade, mais de cem anos, se considerarmos o período no qual o projeto de lei, de Clóvis Bevilaqua, ficou em discussão, à face da sociedade brasileira do começo do século 20. É claro que o velho código pedia reforma, posto ser um corpo legislativo elaborado nos estertores do século 19 e promulgado no início do século passado, gigante e bem construído para o seu tempo, mas em franco descompasso de atualização em tantos dos seus segmentos, especialmente no que diz respeito ao inegável avanço tecnológico e informático que foi o grande diferencial de progresso do século anterior.

A sociedade brasileira e a comunidade dos juristas, por um lado, reverenciavam a majestade inconteste de seu primeiro código, razão de justo orgulho que sempre foi para todos os brasileiros. Mas, por outro lado, já à volta dos anos 50, pressentiam que os fatos e a vida dos homens na sociedade contemporânea encontravam-se – em tantos vieses – à frente da lei civil de 1916, lei esta que tem por escopo fundamental exatamente a regulação desses fatos e dessas relações da vida privada.

A reforma efetivamente se impunha, tendo em vista o significativo aumento, entre nós, de normas dispersas, margeantes e até mesmo conflitantes, que foram se acumulando na tentativa de adaptar, ou de afeiçoar, o direito legislado às gigantescas transformações operadas na estrutura da sociedade brasileira. Nem sempre, contudo, esse método de revisão e de adaptação legislativa foi seguro e prosperou eficientemente, tendo em vista, especialmente, o fato de que o código anterior houvera sido elaborado para um país diferente, para um povo de costumes distintos, em diversa época e à face de outros anseios e de outros valores.

Centenário, não podia ser diferente: o código de Bevilaqua pedia reforma ou substituição. Como resultado, a mais recente tentativa de reformulação do corpo positivo do Direito Civil data de 1975, ano em que foi concluído o trabalho de uma comissão de ilustres juristas nacionais, constituída pelo governo federal em 1969. Essa comissão, presidida pelo filósofo e jurista Miguel Reale, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), era composta pelos professores José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro.

Não se tratava, contudo, na visão da comissão encarregada de elaborar o projeto do novo Código Civil, de simplesmente fazer com que se desintegrasse um monumento legislativo de altíssima qualidade, como foi o Código Bevilaqua. Mas tratava-se – como sempre repetido pelo professor Miguel Reale – de buscar aproveitar, na maior amplitude possível, o arcabouço de 1916, dando-lhe as cores e imprimindo-lhe os traços consentâneos com a realidade deste momento histórico vivenciado pela sociedade brasileira, já nos albores do século 21.

Este foi o Projeto de Código Civil Brasileiro que logrou ser aprovado, em 10 de janeiro de 2002, depois de decorridos 26 anos de seu encaminhamento inicial à Presidência da República. Ultrapassado o período da vacatio legis, o Brasil passa a ter, agora, o segundo Código Civil desta ainda jovem nação.

Um novo Código Civil

Conservar o possível; inovar, sempre que necessário: esta foi, ao que se verificou, a intenção primordial da comissão de juristas que teve a seu cargo a construção do novo código, inspirados, os seus ilustres membros, na previsão do próprio legislador de cem anos antes, Clóvis Bevilaqua: “Mas por isso mesmo que o Direito evolui, o legislador tem necessidade de harmonizar os dois princípios divergentes (o que se amarra ao passado e o que propende para o futuro), para acomodar a lei e as novas formas de relações e para assumir discretamente a atitude de educador de sua nação, guiando cautelosamente a evolução que se acusa no horizonte” (Miguel Reale, “Lacunas e arcaísmos do Código Civil vigente”, em O projeto do novo Código Civil, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1999, p.28).

De qualquer modo, este é o nosso novo Código Civil, de sorte que a comunidade jurídica deve, com a rapidez possível e a seriedade de sempre, buscar entendê-lo, conhecê-lo verdadeiramente, deslizar sobre todos os seus meandros e analisar toda a sua arquitetura, pois somente assim a sociedade poderá agora – já que não participou antes – criar suas opiniões, debater os pontos negativos ou falhos, demarcar os aspectos positivos e inovadores e exigir as alterações que se registrarem como necessárias, como urgentes e como imprescindíveis, conforme o caso, de molde a que o código possa ser modificado e alterado na medida da conveniência do cidadão brasileiro e de sua especialíssima realidade, neste início de milênio.

De minha parte, creio que este momento atual, à face da promulgação da nova lei, supera a discussão tão antiga como importante acerca de ser esse instrumento legislativo um corpo que já nasce velho. Bem como pressinto que seja necessária a superação, neste ponto da vida jurídica brasileira, da discussão acerca da preferência por sistemas codificados ou por sistemas fragmentados em menores estruturas legislativas.

Apesar de todas as críticas que se tem feito ao novo código, mormente nos últimos meses, ele possui muitos pontos altamente positivos, benéficos, avançados. Seria uma irresponsabilidade não admiti-lo, é claro. E há momentos, nessa nova lei, de absoluta beleza e vanguarda, demonstrando que é possível, no nosso país, se desenhar um corpo legislativo que pode se confrontar, em pé de igualdade, com os mais modernos e contemporâneos corpos legislativos de países do chamado Primeiro Mundo. Pena que ele, o nosso código, não seja assim por toda a sua extensão e abrangência. Acontece que os seus pontos de falha e de omissão, sujeitos a esse coro de críticas, empanam, por assim dizer, a beleza de outros segmentos, dada a preocupação grande que tais aspectos não-positivos são capazes de gerar.

Mas ele vai sobreviver, certamente. Tenho dito, em minhas apresentações acadêmicas, que pessoalmente eu teria preferido que o código não entrasse em vigor. Na verdade, eu teria preferido que tivéssemos adotado o sistema fracionário de legislar, ao invés desse sistema codificado, de exagerada abrangência. Mas tenho dito, também, que, agora que o temos entre nós, como a nossa nova e máxima lei civil, a nossa obrigação maior, como cidadãos e como operadores do direito, é fazer com que ele se aplique da melhor maneira possível, ao mesmo tempo em que empregamos o maior e o melhor de nossos esforços para que as alterações urgentes e indispensáveis sejam mesmo levadas a efeito o mais rápido possível.

O novo Código Civil merece o nosso aplauso, como disse, em muitos aspectos, entre os quais destaco principalmente estes, entre outros: a) o acolhimento de importante expressão jurisprudencial que se formou ao longo dos anos, pela voz de nossos tribunais, valorizando especialmente a socialização das relações privadas (pela expressa menção ao princípio da função social da propriedade e da função social do contrato); b) a inclusão do princípio da boa-fé nas negociações, bem como do princípio da onerosidade excessiva a justificar a resolução dos negócios; c) a valorização dos direitos da personalidade; d) a consagração do princípio da igualdade entre homem e mulher, especialmente nas relações familiares; e) a consagração da formação da família por outros modos originários além do casamento civil (como a união estável e a estrutura monoparental); f) a flexibilização das regras sobre regime patrimonial entre cônjuges, permitindo a alteração do regime de bens; g) a integração do cônjuge no rol dos herdeiros necessários, protegendo mais o sobrevivente, por ocasião do recebimento das heranças; h) a inserção de regras mais maleáveis e incentivadoras à elaboração de testamentos; i) a redução da faixa etária em prol da maioridade civil; j) a renomeação do poder-dever dos pais sobre os filhos para “poder familiar”, exercido igualmente por qualquer dos pais; l) a redução do prazo para adquirir a propriedade de bens pela via do usucapião e a incorporação de regras constitucionais que admitem o usucapião fundado em razão ligada à funcionalidade social; m) a adoção de uma maior objetivação para a imputação da responsabilidade civil, em casos de danos sofridos, bem como a inclusão de autorização ao juiz para mensurar o valor da indenização com base na eqüidade.

A restauração das falhas e/ou a complementação das lacunas se dará como deve ser, isto é, pela apresentação de novos projetos de lei que objetivem exatamente a superação desses pontos, na legislação nova. É certo que já se verifica a existência de projetos assim, três deles de autoria do próprio relator do Código Civil, o deputado Ricardo Fiúza. A Câmara dos Deputados se encontra, hoje, melhor equipada para essa fase posterior, de necessidade de alteração da nova lei, para adaptá-la convenientemente às necessidades e realidade brasileiras, graças à abertura que foi dada para uma sadia discussão com os juristas e docentes da USP, em dois grandes seminários para tanto organizados, por meio da Ouvidoria Parlamentar daquela Casa, presidida pelo deputado Luiz Antonio Fleury.

Estamos todos, legisladores, doutrinadores, operadores do direito e sociedade em geral, na mesma expectativa de sucesso na aplicação da nova lei. Sem dúvida.

 

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka é professora do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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