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Uma das discussões que permearam a política nacional dos anos 90 foi a da reforma da Previdência Social. Com déficits crônicos e crescentes, é unânime entre os especialistas da área que os critérios de arrecadação e concessão de benefícios precisam mudar pois, do contrário, o sistema se tornará insustentável em alguns anos. Pensando na questão, o novo governo anunciou que pretende abrir uma discussão abrangente, com todos os setores da sociedade, incluindo os servidores públicos autárquicos — ou seja, não contratados sob o regime da CLT — de diferentes categorias, principais alvos das mudanças. A proposta inicial se baseia na idéia de unificar todos, com exceção dos militares, trabalhadores públicos e da iniciativa privada, em um sistema básico único de Previdência, com um teto máximo de benefícios próximo do valor atualmente pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), fixado em R$ 1.561,56. “Todo sistema previdenciário é um acordo entre os trabalhadores e o Estado”, afirma Hélio Zylberstajn, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e especialista no tema. “É como acontece todos os dias, em diferentes tipos de contratos: quando uma das partes percebe que não vai conseguir cumprir o acordo, ela se senta com a outra para negociar uma nova forma de honrar seus compromissos.”

Direitos garantidos

Atualmente, o sistema previdenciário brasileiro, incluindo o INSS e os sistemas próprios da União, Estados e municípios, apresenta um déficit global da ordem de R$ 70 bilhões. Entretanto, o Ministério da Previdência Social reconhece que uma eventual aprovação da reforma não impedirá o crescimento do déficit no curto prazo. O início da reversão dessa curva é esperada pelos técnicos num prazo entre oito e dez anos.

De acordo com o plano do governo, para quem está na ativa e já contribuiu para a Previdência, a idéia é respeitar os direitos acumulados até a data da aprovação da reforma. A partir daí, passará a vigorar para esses trabalhadores a regra universal, o que significa que suas aposentadorias serão compostas de uma parte formada a partir das normas atuais e outra parte definida pelas novas regras. Segundo Zylberstajn, não há motivos para preocupação pois a transição seguirá o critério da progressividade, pelo qual quanto mais tempo de contribuição o trabalhador tiver no sistema atual menor será o efeito da reforma para ele. “Por exemplo, um funcionário público autárquico com salário de R$ 4 mil e 33 anos de contribuição, faltando dois anos para se aposentar, terá direito a 33/35 avos do seu salário, ou seja, sua aposentadoria será quase integral”, explica o docente. “A diferença de dois anos será calculada sobre sua contribuição nesse período, a qual será feita a partir das novas regras, com base nos valores do teto máximo e do seu salário, e o resultado será somado ao restante dando, no final, um número muito próximo do que seria o salário integral. E, no caso de quem já tem tempo suficiente para se aposentar mas ainda não fez seu pedido de aposentadoria, continuará tendo o direito de receber seu salário integral.”

Zylberstajn: não há motivos para preocupação

O especialista lembra, ainda, que os funcionários públicos autárquicos com menos tempo de contribuição e os que começarem a trabalhar após a aprovação das mudanças terão a opção de aderir a um fundo de pensão complementar, mecanismo que permitirá, como na iniciativa privada, que essas pessoas se aposentem com salários maiores que o teto do sistema unificado. “Na prática, haverá um teto máximo básico igual para todos, que poderá ser complementado com outro montante no momento da aposentadoria, de acordo com o valor que cada funcionário escolherá para recolher, mensalmente, ao fundo complementar, incluindo, aí, a possibilidade do seu salário de inativo ficar quase igual ao valor recebido na ativa”, diz. “Está em estudo, inclusive, a possibilidade de que haja uma obrigatoriedade de adesão dos funcionários ao fundo complementar, com o estabelecimento de um piso mínimo de contribuição, de acordo com o salário de cada um, para que, ao se aposentarem, seus benefícios sejam maiores, impedindo uma drástica redução do seu poder aquisitivo”, informa. “Trata-se de um sistema democrático, que teoricamente permitirá a todos ter sua aposentadoria ao mesmo tempo em que servirá como um instrumento social para a promoção de uma melhor distribuição de renda.”

Segundo declarações do ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, não haverá a hipótese do servidor optar por um fundo privado, como os da iniciativa privada fazem, porque o Estado vai pagar a parte do empregador, coisa que hoje não acontece. A participação da União é defendida como forma de garantir a concentração de uma massa de recursos que viabilize a criação do fundo complementar e de um tratamento igual para todos. “É por isso que a decisão de deixar os militares de fora do sistema básico único de Previdência é um erro”, defende Zylberstajn. “Não há nenhum motivo para isso pois, após as discussões, caso se comprove que algumas categorias precisam ter sistemas complementares um pouco diferenciados, isso poderá ser viabilizado”, afirma. “Abrir uma exceção agora, antes do início das discussões, poderá fazer com que outras categorias se organizem para defender seus direitos corporativos, em detrimento do bem comum.”

De acordo com comunicado oficial emitido pelo Ministério, “o ministro considera importante registrar que na sua visão o Regime Especial dos Militares das Forças Armadas não constitui ‘privilégio’, pois é derivado de determinações constitucionais democraticamente decididas, conforme o estabelecido no Artigo 142 da Constituição Federal”.

Mercado informal

Além dessas possíveis mudanças, outra idéia que está sendo discutida é a continuidade da contribuição dos trabalhadores após a aposentadoria e o início da cobrança de quem já está aposentado. “Do ponto de vista constitucional, essas cobranças não são possíveis, pois os aposentados já adquiriram, com suas contribuições anteriores, o direito à aposentadoria”, diz Zylberstajn. “Mas, se pensarmos na questão sob outro ponto de vista, o de que isso ajudaria o País a viabilizar o futuro do sistema previdenciário, talvez a medida seja necessária”, analisa. “Para alcançarmos o equilíbrio, precisamos do sacrifício de todos”, diz, lembrando que o governo tem outros desafios pela frente, que passam por uma ampliação do mercado formal de trabalho, que é de onde saem as contribuições para a Previdência. “A reforma da Previdência, se efetivada, permitirá uma maior distribuição de renda e, conseqüentemente, elevação do consumo, crescimento econômico e geração de novas vagas formais de trabalho”, afirma. “Mas outras estratégias de inclusão dos trabalhadores que hoje atuam no mercado informal também são necessárias, além, é claro, do combate às fraudes e à evasão de recursos do INSS, conforme o próprio ministro tem declarado.”

Para Zylberstajn, outra medida urgente é a separação dos benefícios para trabalhadores rurais do INSS. “O campo apresenta uma situação diferenciada da cidade, com muitos trabalhadores que, por uma série de motivos, incluindo sua excessiva exploração ao longo de toda a vida, acabaram contribuindo pouco com o INSS, onerando o instituto e os outros trabalhadores”, diz. “Não que eles não devam receber o benefício, cuja concessão é fundamental para a sobrevivência da economia de muitos municípios pequenos. O que o governo precisa fazer é providenciar uma verba própria para esses benefícios que, como o nome diz, não são aposentadorias e, progressivamente, criar formas que permitam a esses trabalhadores o acesso a melhores condições de vida e trabalho, o que lhes permitirá contribuir mais com o sistema previdenciário.”

Carvalho: conteúdo de uma possível reforma ainda está sendo discutido

Com relação às universidades públicas (federais e estaduais), Zylberstajn acredita que a mudança pode trazer benefícios no longo prazo, com um maior tempo de permanência na ativa dos professores e funcionários. “A perspectiva de ter uma redução do salário, ainda que minimizada no caso dos que aderirem ao fundo complementar, pode levar muitos a adiar a aposentadoria, o que é bom, pois é após os 55 anos que a maioria atinge a ampla maturidade intelectual e profissional”, afirma. “Atualmente, por conta das atuais regras, as universidades têm vivido uma fuga de cérebros justamente no momento em que estão aptos a produzir mais.”

Segundo Adilson Carvalho, coordenador de Administração Geral da USP, as avaliações sobre o tema precisam ser feitas, nesse momento, com muito cuidado. “Ainda não há nada definido. São apenas hipóteses e idéias, o cenário ainda está muito impreciso para que possamos estabelecer uma ampla análise dos impactos da reforma, cujo conteúdo ainda está sendo discutido.”

Após o término das discussões, previstas para durar cerca de 90 dias, no final de abril o ministro Ricardo Berzoini pretende apresentar uma proposta definitiva para o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Em maio, a proposta será transformada em um projeto de emenda constitucional, que deverá ser encaminhado para o Congresso Nacional em junho.

 

“Novas regras não prejudicam situações consolidadas”

A seguir, o Jornal da USP publica o pronunciamento do reitor da USP, professor Adolpho José Melfi, sobre a reforma da previdência, feito na reunião do Conselho Universitário realizada no dia 17 de dezembro de 2002

“Os meios de comunicação divulgaram recentemente declarações de personagens políticas da mais alta envergadura, nas quais manifestam a intenção de aprofundar a reforma da previdência pública, com o estabelecimento de novas regras sobre o limite superior dos proventos que, segundo as mesmas declarações, somente não alcançariam quem já estivesse aposentado.

Diversos professores, tomados de mais que compreensíveis preocupação e ansiedade, dirigiram-se ao Departamento de Recursos Humanos, ao qual requereram a expedição de certidão de tempo de serviço ou solicitaram informações sobre a concessão de aposentadoria independentemente do gozo de licenças-prêmio e férias ainda não fruídas.

Diante desse panorama, em que se vislumbra outra possível concentração de precipitados pedidos de aposentadoria, cabe ao reitor chamar a atenção de todos para que, nos termos da ordem constitucional em vigor, regras jurídicas novas não podem prejudicar situações individuais já consolidadas, ou porque decorrentes de ato jurídico perfeito ou de coisa julgada, ou porque associadas a direito adquirido.

Assim, a situação jurídica individual de quem já estiver aposentado e a situação jurídica individual de quem já tiver preenchido todos os requisitos para aposentar-se, embora ainda não estiver aposentado, seriam igualmente intangíveis no que concerne a eventuais novas regras sobre o limite superior de proventos, a primeira porque fundada em ato jurídico perfeito, e a segunda porque fundada em direito adquirido.”

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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