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Ser capaz de ouvir a grama crescer, eis um dos deveres atribuídos ao revolucionário por Karl Marx. A idéia foi relembrada em Porto Alegre, durante o 3o Fórum Social Mundial (FSM), que terminou, no dia 27 de janeiro, com a marcha de 80 mil pessoas – homens e mulheres que assumiram como projeto pessoal e político uma sociedade de cooperação e cuidado mútuo como resposta à iminência de uma nova guerra, à crescente destruição do planeta e de seus recursos naturais e à imposição de um modelo neoliberal que castiga a maioria dos povos.

Nascido da convicção de um grupo de brasileiros que queria um novo espaço de resistência à idéia de um mundo controlado pelos interesses do capital, o FSM procura juntar, reforçar e ampliar as pequenas iniciativas dos vários pontos do mundo. Oded Grajew, fundador e presidente do Instituto Ethos, organização que estimula a responsabilidade social das empresas, propôs a idéia a Francisco Whitaker, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz. Apresentada a Bernard Cassen, diretor do periódico francês Le Monde Diplomatique, a idéia tomou corpo e foi endossada por oito organizações que assinaram um acordo de cooperação para realizar o FSM. Porto Alegre foi escolhida para sediá-lo por ser uma cidade do Terceiro Mundo, o que mais conseqüências sofre do modelo neoliberal, e por ser a capital de um Estado cada vez mais conhecido por sua experiência democrática. A primeira edição foi em 2001, nas mesmas datas do Fórum Econômico Mundial de Davos, para tornar explícito o contraponto.

A marcha em Porto Alegre por um mundo novo: não ao modelo liberal
 

O FSM tem crescido a cada ano, obrigando a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), que abrigou o encontro desde seu início, a aumentar gradativamente a oferta de salas e lugares. Só no dia 25, houve 283 oficinas simultâneas na Pucrs, sem contar as que ocorreram em outros espaços, como o Acampamento da Juventude, o Anfiteatro Pôr-do-Sol, os armazéns do cais do porto, o Gigantinho e a Quinta Sala. As discussões se agruparam em torno de cinco eixos: desenvolvimento democrático sustentável; princípios e valores, direitos humanos, diversidade e igualdade; mídia, cultura e alternativas à mercantilização e homogeneização; poder político, sociedade civil e democracia; e, por fim, ordem mundial democrática, luta contra a militarização e promoção da paz. Como nas edições anteriores, o FSM teve muita música, que reuniu milhares de pessoas no Anfiteatro Pôr-do-Sol – mesmo palco do pronunciamento do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, às 18 horas do dia 24, justificando sua ida ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, como um convite irrecusável para levar aos governantes dos países ricos a mensagem do FSM.

Boff e Galeano no Gigantinho – Porto Alegre viveu cinco dias de efervescência política, de 23 a 28 de janeiro de 2003. O dia 28 serviu apenas para reuniões internas dos organizadores. O encerramento para os demais participantes ocorreu no dia 27 com a marcha do Gigantinho até o Largo da Epatur (sigla da Empresa Porto-Alegrense de Turismo), onde os petistas costumam festejar as vitórias de seus candidatos nas eleições e, todos os sábados, acontece uma feira de produtos hortifrutigranjeiros. O FSM iniciou e terminou marchando, pois o caminho é que faz história. Todos os participantes do FSM, sempre que possível, introduziam o assunto da guerra no Iraque em seus comentários ou palestras. Uma tentativa enérgica de se fazerem ouvir na Casa Branca.

Nada mais oportuno, portanto, que uma conferência denominada “Paz e valores”. Levou, no final da tarde do dia 26, cerca de 20 mil pessoas ao ginásio de esportes do Internacional, o Gigantinho (já que o estádio principal se chama Gigante da Beira-Rio). Vinte mil representam cinco mil a mais do que a capacidade das arquibancadas do Gigantinho. Apesar do forte calor, dentro e fora do ginásio, com temperatura acima dos 30 graus centígrados, os milhares de participantes aplaudiram – várias e demoradas vezes – os depoimentos do escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, da pesquisadora indiana Radha Kumar, do ex-deputado do parlamento suíço Jean Ziegler e, principalmente, do teólogo, escritor e professor universitário Leonardo Boff. Ele refletiu sobre as possibilidades da paz dentro da condição humana de Homo sapiens e Homo demens.

Acampamento de jovens participantes do FSM: apoio aos povos que sofrem

“Temos a arte, a poesia, já fomos à Lua, já deixamos o Sistema Solar, através de uma nave que leva, escrita em mais de cem línguas, a palavra paz – nossa mensagem para o universo é de sabedoria. No entanto, a demência também nos caracteriza: etnocidas, matamos povos; biocidas, destruímos ecossistemas; e estamos bem perto de nos tornar geocidas, destruindo nosso planeta vivo.” O teólogo lembrou que demos o salto para a humanidade através da solidariedade: diferentes dos chimpanzés, nossos ancestrais caçadores levavam o alimento obtido para lugares comuns e dividiam-no com os demais. É próprio do ser humano o cuidado de um com o outro, e a perversidade do sistema econômico mundial, segundo Boff, está em acumular privadamente, e não dividir humanamente: “Vive-se a política do chimpanzé”. Cooperação e cuidado mútuo são os dois valores fundamentais que distinguem o ser humano do chimpanzé e que podem gerar a tão esperada paz mundial, disse. No final de sua explanação, o teólogo recitou a oração universal da paz. As mais de 20 mil pessoas presentes acompanharam a prece de mãos dadas, chorando lágrimas de esperança na luta solidária por um novo mundo. O mesmo clima se repetiria no dia 27, também no Gigantinho, ao som de “Imagine”, de John Lennon.

Sim à paz – Não está entre os objetivos do Fórum fixar as diretrizes desse novo mundo porque, como disse Jean Ziegler na mesma tarde em que Boff falou no Gigantinho, o mundo novo que está nascendo pertence aos mistérios da liberdade dos homens. Sem a rigidez de um documento final, o FSM dá todo espaço para a busca de alternativas àquilo que, isso sim, sabe-se muito bem, não se quer. Por exemplo, a guerra entre os Estados Unidos e o Iraque. O egípcio Samir Amin sublinhou que essa guerra é anti-européia, com o objetivo de reduzir a marcha política da Europa e do resto do mundo, dando aos Estados Unidos o controle da região mais rica em petróleo. O Iraque é incapaz de enfrentar a agressividade americana, o que garantiria aos Estados Unidos uma vitória já de início.

Outro ponto comum entre os palestrantes em Porto Alegre foi que a presença de Lula tanto no FSM quanto no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, onde se reuniram representantes dos países mais ricos, teve um significado positivo. No dia 24, às 18 horas, o presidente falou de improviso para cerca de 70 mil pessoas – segundo estimativas da Brigada Militar (a Polícia Militar gaúcha) – no Anfiteatro Pôr-do-Sol, às margens do rio Guaíba, que contorna uma parte da cidade. Nesse breve encontro, de menos de uma hora, Lula prestou contas ao público sobre sua ida à pequena cidade que serviu de inspiração para o romance A montanha mágica, de Thomas Mann. “A eleição de Lula ultrapassa as fronteiras deste país”, disse Eduardo Galeano, para quem o ex-metalúrgico encarna a dignidade do trabalho e também ajuda a difundir “as vitaminas de que precisamos contra a peste da falta de esperança”. Há quem discorde. Uma ativista de uma suposta organização chamada Confeiteiros sem Fronteiras expressou sua contrariedade com a viagem de Lula à Europa jogando uma torta na cara do presidente do PT, José Genoino, durante uma entrevista coletiva no Hotel Sheraton, da capital gaúcha.

O presidente da República foi a Davos para tentar promover o diálogo dos contrários. “Não dá para mudar o mundo conversando só com quem concorda com a gente”, disse. Reafirmou, do Brasil à Suíça, seu compromisso com a dignidade. E, segundo ele, dignidade é, para quem tem fome, comer; para quem não tem emprego, trabalhar; para quem não tem casa, morar; e, para quem não tem esperança, sonhar.

Um novo FSM na Índia – Na Índia também se sonha com um outro mundo, o que será reforçado na próxima edição do Fórum Social Mundial, em Hyderabad. É uma tentativa de inserir maior número de participantes asiáticos nas discussões, tornando o encontro mais colorido e, portanto, plural. Vários indianos estiveram em Porto Alegre, para levar na bagagem erros e acertos do encontro no Brasil. Daniel Edwin, representante de uma organização não-governamental que luta pelos direitos do povo dalit, de origem camponesa, discriminado como casta inferior, acha que o FSM na Índia será mais enxuto, mas nem por isso menos importante que o de Porto Alegre. Para Edwin, é positiva a mudança, principalmente para que os indianos também se juntem ao movimento por um mundo melhor e para que, no plano local, reivindiquem ao governo indiano maior responsabilidade com a coisa pública. Ele contou que os dalits somam 25% da população indiana, de 1 bilhão de pessoas. Classificados como impuros pelo extremismo religioso, não podem ser tocados pelos outros nem usar a mesma louça.

Depois de uma edição na Índia, o FSM voltará para a capital gaúcha, em 2005. Discute-se como fazer os próximos encontros, se pautados por uma maior ou menor diversificação. Houve, em Porto Alegre, uma inevitável fragmentação temática. Dezenas de grupos, ora defendendo o esperanto como língua universal, ora exibindo a dança folclórica do Paraguai, vieram a Porto Alegre, acima de tudo, para se expressar. O Acampamento da Juventude abrigou mais de 25 mil pessoas, que montaram suas barracas multicoloridas no Parque da Harmonia, junto às margens do rio Guaíba. Despojados, os acampados não se importaram de usar banheiros portáteis, esperar numa longa fila a vez de tomar um banho e dormir sobre o chão duro. Esses pequenos desconfortos antes avivaram nas mentes de todos a causa por que lutam: solidariedade à Venezuela, à Bolívia, aos povos indígenas oprimidos em toda a América Latina; reivindicação da liberdade política, religiosa, sexual (inclusive com nudismo, imediatamente reprimido pela Brigada Militar); protesto contra a Alca, a exploração irresponsável de recursos naturais e o uso de transgênicos.

Em relação aos transgênicos, João Pedro Stédile, da Via Campesina, afirmou na conferência “Terra, território e soberania alimentar”, na tarde do dia 24, no Gigantinho, que se for necessário os camponeses continuarão invadindo latifúndios, mas que eles não pensam só no seu umbigo. “Querem mudar a humanidade com vocês”, disse, dirigindo-se ao público que, mais uma vez, lotou as dependências do ginásio na avenida Padre Cacique. Segundo Stédile, para enfrentar um modelo agrícola perverso é preciso força acumulada, força de massa, e que isso será efetivado para ajudar o governo Lula. O ecologista canadense Pat Mooney afirmou, no mesmo encontro, que novas tecnologias não resolvem velhas injustiças e que as culturas transgênicas estão contaminando as lavouras do mundo inteiro, inclusive no Rio Grande do Sul.

O palestino é meu amigo – Não ter uma causa específica não impediu ninguém de se irmanar no desejo de construção desse novo mundo. A luta palestina conquistou numerosos adeptos. O pacifista Michel Warschawsky veio de Jerusalém denunciar o mau uso da palavra diálogo: “Atrás dela há, freqüentemente, a tentativa de impor uma paz hegemônica”. Os israelenses, para alguns participantes do FSM, reproduzem no Oriente Médio a mesma política externa agressiva adotada pelos Estados Unidos contra o Iraque. A Palestina, segundo Warschawsky, não é vista como um conjunto de homens, mulheres e crianças que vivem numa cultura, mas como um bando de bárbaros, terroristas. E, contra terroristas, tudo deve ser feito, a começar por uma guerra preventiva.

Os palestinos vieram a Porto Alegre pedir proteção preventiva, e ganharam. O movimento civil internacional pela proteção palestina – não salvação, como bem sublinha Warschawsky – recebeu na capital gaúcha um visível incremento. Emad Yasin viajou de Ramallh para o Rio Grande do Sul trazendo na mala numerosos e tradicionais lenços quadriculados em preto-e-branco, que foram vendidos com sucesso a pessoas como Ana Cacilda Quadrados, gaúcha de Pelotas. Ela não só colocou o xale sobre os ombros como fez questão de se deixar fotografar, sempre que solicitada, enrolada na bandeira da Palestina. Um dos refrões clamados durante a marcha de encerramento do Fórum dizia: “O palestino é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”.

Antes do início da conferência de encerramento do 3o Fórum Social Mundial foi lida a Carta de Porto Alegre, uma declaração assinada conjuntamente por pacifistas israelenses e palestinos, condenando o ataque do Exército de Ariel Sharon (recém-reeleito primeiro-ministro israelense) em Gaza, na noite do dia 26 de janeiro, e pedindo o final da ocupação israelita em terras palestinas, e que Jerusalém seja a capital dos dois povos. A música de fundo da leitura foi “Imagine”, de John Lennon. Os 20 mil aparelhos de tradução simultânea não foram suficientes para atender a todas as pessoas que estavam no Gigantinho nessa tarde. Pouco importa: não foi necessário tradução para saber que elas não eram as únicas sonhadoras do mundo.

Representantes de diversos povos, raças e culturas manifestaram, em Porto Alegre, o seu desejo de uma ordem mundial mais justa

A grama está crescendo – O enorme descontentamento com os rumos que o poder econômico está tentando impor às coletividades parece que não será suficiente para impedir o ataque dos Estados Unidos ao Iraque. Isso não quer dizer, no entanto, que os sonhos demarquem um território distante da prática. Os ecos das mesas de discussão do FSM já fazem falhar o coração do capitalismo. A escritora indiana Arundhati Roy, durante a conferência de encerramento do encontro, apontou a maior vitória prática do FSM: “O império está desmascarado. Hoje, todos sabem que as justificativas para atacar o Iraque são mentiras, das quais a mais ridícula é a de levar a democracia para lá. Quando George W. Bush diz que ou estamos com ele ou com os terroristas, há uma outra resposta: não, obrigado. Os povos do mundo não precisam escolher entre o Mickey Mouse malévolo e os mulás malucos. Não precisamos comprar o que eles têm para vender: suas armas, suas idéias, sua versão da história”.

Arundhati apontou outras ações que o FSM está engendrando: continuar a construir a opinião pública até ela se tornar um rugido ensurdecedor. Reinventar mil formas diferentes de desobediência civil. “Um outro mundo não só é possível, como está a caminho”, disse ela. “Se ouvirmos com atenção, podemos ouvi-lo respirando.” A grama cresce, fertilizada pela coragem dos seres humanos capazes de cuidar uns dos outros.

Lula em Davos, firme e sincero

Ao se apresentar no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e, em seguida, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva agiu corretamente. Foi franco, não tentou enganar nem agradar a ninguém, não omitiu num lugar o que falaria, ou falou, no outro, e conseguiu transmitir sua mensagem com sinceridade, firmeza e consistência. É a opinião do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Em Porto Alegre, Lula procurou endosso dos participantes do encontro para o que falaria em Davos, apresentando-se na Europa com maior força e credibilidade. Segundo Janine, a imprensa mundial, especialmente a francesa, entendeu perfeitamente a posição do presidente brasileiro e elogiou a sua disposição de dar prioridade à questão social.
A boa imagem que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tinha no exterior fica também com Lula, não se confirmando prognósticos pessimistas de alguns setores que consideravam difícil para um governante que não domina línguas estrangeiras sair-se bem no exterior. “Itamar Franco também não fala inglês nem francês e, no entanto, ninguém apresentou esse argumento contra ele quando era presidente”, disse o professor da USP.
Janine diz que a alta porcentagem de apoio que Lula detém no momento — quase 80% dos brasileiros acreditam nele — deve ser considerada normal, porque o governo está apenas começando e, no início, até os derrotados costumam dar um voto de confiança aos governantes. Manter esse apoio ao longo dos anos é difícil e um índice de 80% é francamente impossível. No entanto, se Lula conseguir levar a bom termo projetos como o da Fome Zero e de erradicação da miséria, certamente continuará tendo o apoio da maioria mesmo em final de mandato.

Miguel Glugoski

 




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