Guardadas
em caixas, mais de uma centena de gravuras de Albrecht Dürer,
maior artista alemão da Renascença, estavam esquecidas
nos labirínticos arquivos da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Parte do acervo da monumental Real Biblioteca que D. João
VI trouxe para o Brasil quando fugiu de Portugal, em 1807, essas
estampas do mestre nórdico sofreriam ao longo dos anos as
marcas do descaso de seus guardiões, foram roídas
pelas traças, desgastadas, manchadas e permaneceriam praticamente
inexploradas até que a historiadora de arte Sandra Hitner
resolvesse se entregar a essa empreitada. Devota da arte nórdica
dos séculos 15 e 16, ela chegaria ao tema através
de uma velha revista Veja que trazia uma reportagem sobre o patrimônio
da Biblioteca Nacional e, a partir daí, formularia o seu
projeto de doutorado, feito na Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP. Financiada pela Fapesp, a pesquisa buscou
descobrir a autenticidade e a idade das obras desse artista que
elevou a gravura a um status nunca antes nem depois alcançado.
Diante
das 167 peças atribuídas a Dürer que constavam
do acervo, o primeiro passo da pesquisadora foi separar as xilogravuras
– estampas feitas a partir de matrizes em madeira –
das peças feitas a buril e das águas-fortes. Decidida
a centrar suas análises nas 91 xilogravuras que encontrou,
até fazer a separação Sandra não sabia
que havia tantas peças em buril. Ela, então, começou
a investigação da autenticidade. Passou a fazer criteriosas
análises sobre o papel onde a estampa estava impressa e sobre
as suas marcas d’água – os desenhos impressos
que ficam sob a gravura –, através das quais é
possível descobrir o local onde foi feita a impressão
e demonstrar de maneira razoavelmente precisa a idade da folha de
papel. Para se familiarizar com as técnicas, a pesquisadora
conheceu as mais importantes coleções de Dürer
de toda a Europa, estudou e trabalhou no Albertina Museu de Viena,
na Áustria, no Petit Palais, em Paris, e nos museus de Nuremberg,
cidade natal do artista, e de Berlim, Alemanha. Além disso,
também se valeu de métodos laboratoriais, como raios
x, infravermelhos e ultravioleta, que aprendera a dominar em suas
pesquisas durante o curso de mestrado.
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Frontispício
da série A grande Paixão – Jesus com a
coroa de espinhos (O homem das dores) |
Para
que uma obra possa constar em um catálogo internacional,
é necessário que ela tenha um laudo que comprove sua
autenticidade. Pioneira nesse tipo de estudo no País, que
privilegia a vertente técnica e não estilística
de uma obra de arte, em seu mestrado Sandra investigou a tela de
Hieronymus Bosch que pertence ao Masp. Nessa época, fez estágios
na Bélgica, onde as obras dos primitivos flamengos de todo
o mundo estavam sendo periciadas, e lá aprendeu a examinar
os resultados dos complexos exames utilizados pelos restauradores.
“Os instrumentos são os mesmos dos restauradores mas
a abordagem é diferente. É um trabalho que observa
os sinais para levantar os dados, para traçar um diagnóstico
daquilo que o restaurador deve aplicar”, explica. Para ela,
“o interesse de atribuir um laudo às xilogravuras de
Albrecht Dürer foi o de corrigir e tornar exata a situação
do atual acervo brasileiro, fato muito importante para a significação
desse patrimônio cultural no âmbito internacional”.
Duas
tradições, uma arte — Quem adquiriu
as gravuras de Dürer para compor o acervo da Real Biblioteca
portuguesa certamente conhecia o valor de tais obras. O artista
– que experimentou diversos meios de expressão, fez
belas pinturas, aquarelas e elaborados auto-retratos – acabaria
reconhecido como maior xilogravurista da história. Seria
uma arte até então considerada menor, a gravura, que
lhe daria a fama internacional que conheceu ainda em vida, no século
16.
Filho
de ourives, aprenderia o ofício do pai, mas apresentaria
desde a infância talento para a pintura e o desenho. “Meu
pai sentia uma especial satisfação comigo, pois via
que eu era ávido de saber como fazer as coisas e, assim,
ensinou-me o ofício de ourives, mas, ainda que eu pudesse
realizar aquele trabalho com tanto capricho quanto se espera, minha
alma era mais da pintura. Expus toda a questão a meu pai,
que, longe de se sentir feliz, lamentou o tempo perdido; mesmo assim
cedeu”, conta Dürer no livro de memórias que escreveu.
Homem religioso, envolvido em uma profunda rigidez moral, seria
essa sua curiosidade insaciável, essa ânsia pelo desconhecido,
por ele mesmo descrita, que o levariam da medieval oficina paterna
para o encontro da nova arte que se fazia do outro lado do continente,
o Renascimento italiano.
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Série
A pequena Paixão – O pecado de Adão
e Eva
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Para
ele, os artistas alemães eram “inconsistentes como
uma árvore selvagem intata”. Na Itália, para
onde foi em 1494, iria impressionar-se com a obra dos humanistas
pela independência de pensamento. Veneza seria o ponto culminante
dessa sua viagem. Notório pesquisador e observador de tudo
o que se passava ao seu redor, lá dedicou-se a aprender tudo
o que os mestres podiam lhe ensinar: a ciência da perspectiva,
os retratos de modelo nu. Copiava trabalhos de gravadores e discutia
as muitas teorias da arte que circulavam entre os pintores da cidade.
De volta às terras germânicas, transplantaria ao seu
ofício esses rudimentos da Renascença. Enraizado,
no entanto, nos princípios nórdicos, sua obra nunca
passaria por um trabalho italiano, e seria exatamente essa mistura
sem precedentes que faria de sua arte, apesar das influências
que nela se podem reconhecer, algo de absolutamente original. Ainda
que aplicasse as técnicas meridionais de desenho, com linhas
curtas e que conferiam volume às figuras, o que retratava
eram rostos atormentados, com traços duros, tipicamente nórdicos.
Multidões e demônios expressavam o seu sentimento religioso,
traduzindo-o de maneira pessoal e apaixonada.
É
também nesse período, quando as inquietações
religiosas tomavam o velho continente, recém-saído
da Idade Média, que ele faria sua primeira obra-prima, a
série de gravuras O Apocalipse de São João.
Apesar de serem impressas em uma gráfica que não a
sua, Dürer fez questão de, através de um monograma,
assinar suas obras, prática até então pouco
comum. Ao perceber-se alvo de cópias – ele foi uma
das maiores vítimas de plágio da história da
arte –, promoveu uma sistemática campanha para assegurar
a propriedade artística e também para elevar a condição
do artista, que era visto como um artesão. Dürer não
se identificava com essa condição. Inteligente
e culto, orgulhoso de seu talento e envaidecido com a própria
beleza, o que pode ser observado nos auto-retratos que fez, ele
se via como um intelectual, um humanista erudito, e invejava o tratamento
que os italianos dispensavam a seus artistas. Pouco antes de regressar
da sua segunda viagem à Itália, escreveu: “Aqui
sou um cavalheiro; em meu país, um parasita”. E seria
exatamente por esse motivo, por não receber apoio dos burgueses
alemães para se dedicar à sua arte, que ele foi aos
poucos abandonando a pintura, sua verdadeira ambição,
para se entregar ao trabalho como gravador. Conseguiria
alcançar, na xilogravura e nos buris, a grandeza que os artistas
venezianos emprestavam aos seus quadros e afrescos.
Um
aspecto notável da arte düreriana é a sua maestria
nos detalhes, próxima daquela própria dos flamengos.
“O mínimo detalhe deve ser realizado o mais habilmente
possível, nem as menores rugas e pregas devem ser omitidas”,
disse o mestre alemão certa vez. Nunca tantos sentimentos
haviam sido transmitidos em uma escala tão pequena e com
tanto apuro técnico. Suas gravuras exibiam uma enorme variação
de tons e texturas, além de variações de luz
e sombra. “A relação entre papel e tinta de
impressão veio a ser sublimada pela relação
entre luz e sombra: os contornos entintados, além de indicarem
forma e volume, passaram a significar escurecimento; e o vazio da
matriz, que produzia o branco do papel, passou imediatamente à
significação de luz, numa escala de valores chiaroscuro”,
afirma Sandra Hitner em sua tese. Seu pioneirismo também
pode ser visto nas formas de expressão que usou. Foi um dos
primeiros a utilizar o processo da água-forte, mais tarde
celebrizado nas mãos de Rembrandt.
Apesar
do sucesso que acabaria por conquistar, ele não deixaria
nunca de ser um homem amargurado. Obcecado pelas conquistas italianas,
a leveza e a fluidez, a beleza e a harmonia, que sempre pareciam
lhe escapar, e também extremamente solitário, abalado
pela morte da mãe e infeliz em um casamento arranjado.
No
fim de sua vida, iria dedicar-se às suas obras escritas.
Publicou tratados sobre perspectiva e proporção, além
de um livro de memórias. Não teve discípulos,
mas seria um novo modelo de artista para o norte da Europa. Deixaria
uma forte marca na arte alemã, ajudando-a a florescer e abrir-se
para o Renascimento e para o romantismo que chegaria mais tarde.
Território
inexplorado — A maior parte das peças do artista
alemão que estão no Rio de Janeiro pertence às
suas séries mais conhecidas, os chamados Três Grandes
Livros de Dürer: O Apocalipse de São joão, A
grande Paixão e A vida da Virgem. São raras as gravuras
soltas.
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Série
Apocalipse de São João – Os quatro cavaleiros
do Apocalipse |
O artista
que começa a trabalhar pouco tempo depois do advento da imprensa,
com Gutenberg, quando as edições de livros bíblicos
se tornavam populares, dedica-se a esse filão fazendo séries
de gravuras com temática cristã. “Dürer
é o primeiro artista a seguir as novas tendências surgidas
com a invenção da prensa, de adequar texto e imagem.
Essa é uma de suas grandes inovações”,
diz Sandra. No formato de livro, essas gravuras compunham uma espécie
de Bíblia ilustrada, em que atrás de cada uma havia
um texto escrito por um monge beneditino. A presença do texto
foi um dos critérios utilizados pela pesquisadora para reconhecer
como originais as gravuras da Biblioteca Nacional. Aquelas que não
portavam os escritos no verso, assim como as que não apresentavam
marcas d’água, foram descartadas. Além disso,
havia entre as gravuras marcas d’água que não
constavam de nenhum registro e não eram reconhecidas na Alemanha.
Para
ter certeza de que se tratavam de marcas amorfas, a pesquisadora
visitou o maior centro de marcas d’água do mundo, o
Arquivo Superior Municipal de Stuttgart. Lá examinou cerca
de 8 mil marcas da escola alemã medieval mas não conseguiu
encontrar par para as peças do acervo carioca. Esses
exemplares ainda devem ser enviados para Stuttgart, onde serão
analisados mais detidamente.
Um
outro problema com o qual o estudo de autenticidade se deparou foi
o estado de conservação das obras. “Muitas das
nossas gravuras estão extremamente machucadas e pela sua
condição não podem constar desses catálogos
internacionais”, explica a pesquisadora. “São
grandes obras de Dürer mas estão desfiguradas, são
desenhos que perderam os detalhes, os sombreados, os matizes dados
pelo artista.” Outras ainda passaram por processos de restauração
equivocados que destruíram importantes indícios de
autenticidade. “Muitas vezes é preciso mostrar as deficiências.
Se uma estampa foi tirada de uma matriz de madeira que tinha um
defeito, que foi comida por um caruncho, isso deve ser deixado,
não é para que se passe tinta por cima, porque é
um sinal para que ela possa ser reconhecida como verdadeira.”
Das 91 xilogravuras analisadas pela pesquisa, 26 ganharam laudo
de originalidade. As estampas danificadas e as que não puderam
ser identificadas ou datadas com precisão foram apenas catalogadas
em reconhecimento ao seu valor documental, mas não podem
ser expostas nem têm mais valor comercial.
Sandra
ressalta que a Biblioteca Nacional ainda é um território
a ser desbravado. “É fundamental que se conheça
esse patrimônio histórico. Há ainda muita coisa
a ser explorada pelos nossos pesquisadores, obras de todas as escolas,
da francesa, da alemã, da flamenga, da espanhola. Isso só
no setor de iconografia, sem falar nos livros que constituem um
acervo absolutamente grandioso.” Em sua próxima pesquisa,
a historiadora pretende continuar se dedicando ao estudo do restante
da coleção brasileira de Dürer, analisando desta
vez os buris e as águas-fortes. “Nas xilogravuras ele
tratou dos temas bíblicos, que tinham forte apelo popular.
Em buril, uma técnica mais aprimorada, em que o desenho é
mais sutil, mais solto, e que também atingia um outro tipo
de público, pôde dedicar-se à temática
pagã ”, conta.
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