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Carone: coerência e consistência

Compreender as mudanças e permanências históricas que ocorreram no decorrer do desenvolvimento das diferentes fases do Brasil República foi a grande meta empreendida durante toda a vida pelo historiador Edgard Carone, falecido no último dia 27, aos 79 anos, em São Paulo, e sepultado no dia seguinte no Cemitério da Consolação. O pesquisador estava internado desde outubro, no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, inconsciente e com problemas respiratórios.

Professor da Unesp (campus de Araraquara) por um período e da USP, onde se aposentou como professor titular de História do Brasil em 1993, Carone nasceu em 14 de setembro de 1923, em São Paulo. Desde cedo o jovem revelou vocação para as ciências humanas, especialmente a história, vindo a se formar pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1947, onde também defendeu sua tese de doutorado (1971), “União e Estado na vida política da Primeira República”.

Nessa época, o historiador já era famoso por seus estudos sobre a trajetória da República brasileira, onde os mais variados aspectos foram analisados. Marxista, publicou 12 obras sobre o período que vai da Proclamação da República, em 1889, até o fim do Estado Novo (1945). “O trabalho de Carone é muito importante porque ele fez a história da República, que, no seu tempo, estava abandonada”, afirma Emília Viotti da Costa, Professora Emérita de História da USP. Para a docente, a enorme e constante reunião de documentos sobre o período republicano brasileiro, empreendida por Carone, “estabeleceu um roteiro para os que vieram depois dele”.

Entre suas obras, podem-se destacar: Revoluções do Brasil contemporâneo (1965), A Primeira República (1969), A República Velha (dividida em dois tomos, publicados em 1970 e 1971), A Segunda República (1973), A República Nova (1974), O tenentismo (1975), A Terceira República (1976) e O Estado Novo (1976), entre outras. “Carone foi um homem de esquerda, coerente e consistente, com traço democrático forte”, afirma o historiador Carlos Guilherme Mota, professor da USP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Sua história da República tem um lugar consolidado na historiografia brasileira.”

Além dessas obras, Carone também publicou estudos específicos sobre o movimento operário, o Partido Comunista, o pensamento industrial e a evolução da indústria.

Um dos últimos debates do qual participou ocorreu em setembro de 2002. Intitulado “Jornalismo e História: Diálogos”, a iniciativa foi promovida pela coordenação do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e pela Revista Efeméride – um projeto experimental criado pelos alunos dessa instituição – e reuniu Carone e sua colega, a historiadora Maria Aparecida de Aquino, também professora da USP, além dos jornalistas Jorge Caldeira (ex-editor da Folha de S. Paulo), Luiz Maklouf Carvalho (vencedor do Prêmio Jabuti de Reportagem de 1999) e Marco Antônio Araújo (coordenador do curso de Jornalismo da Cásper). Durante o evento, Carone falou sobre a importância da atividade jornalística para o registro dos fatos e, portanto, no embasamento da produção do conhecimento histórico sobre diferentes períodos mas, principalmente, com relação ao contexto brasileiro do começo do século. “A edição de livros no Brasil era precária e os jornais eram os responsáveis por construir a história”, disse Carone.

Segundo o crítico literário, sociólogo e Professor Emérito da USP Antonio Candido de Mello e Souza, o País fica devendo a Edgard Carone trabalhos importantes para a história política, social e econômica do Brasil contemporâneo. “Seu método se baseia na combinação do documento posto ao alcance do leitor com a narração dos fatos e sua análise”, explica Candido. “Generoso ao extremo, partilhava sem hesitar seus conhecimentos e dados, auxiliando os que a ele recorriam”, conta. “Pode-se dizer que ele pôs a história da República na ordem do dia, não porque faltassem sínteses gerais e estudos especiais sobre seus períodos, mas porque a tratou como um todo a ser estudado extensivamente nos mais variados aspectos.”

Viúvo há mais de dez anos da também professora da USP Flávia de Barros Carone, o historiador deixa dois filhos, André de Barros Carone, responsável pela continuação das atividades comerciais da família, iniciadas pelo pai de Edgard no início do século passado, e Antonio Candido de Barros Carone, que recebeu esse nome como uma homenagem de seu pai ao amigo Antonio Candido de Mello e Souza. “Éramos muito amigos”, disse Candido por telefone. “Foi uma homenagem muito bonita”, recorda. “Ele era casado com Flávia, uma mulher extraordinária, uma grande intelectual, autora de um dos maiores estudos sobre morfossintaxe que já li”, conta. “Ela sempre ajudava o Edgar, revisando e criticando seus livros.”

 

 

Um companheiro leal e afetuoso, segundo Candido

Amigos de longa data, freqüentadores dos mesmos espaços e círculos de amizade, Edgard Carone e Antonio Candido sempre estiveram próximos. Graças a isso, Candido pôde conhecer a fazenda Bela Aliança, de propriedade da família Carone, onde colheu informações, por meio de suas observações, sobre o processo de mudanças pelo qual passavam, em meados do século 20, as relações sociais do interior paulista, estudo relatado em “Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre a crise nos meios de subsistência do caipira paulista”, sua tese de doutoramento, defendida na USP e, posteriormente, transformada em livro. A seguir, a íntegra da entrevista concedida por Antonio Candido ao Jornal da USP, por escrito, sobre o amigo Edgard Carone.

Jornal da USP – Como e quando conheceu Edgard Carone?

Antonio Candido – Creio que ali por 1943 ou 44. Ele ainda não tinha entrado para a Faculdade de Filosofia, onde cursou Geografia e História na turma de 1947. Ficamos logo amigos e ele se tornou freqüentador íntimo de nossa casa.

JU – O seu livro Parceiros do Rio Bonito usou material colhido na fazenda dele. Como foi isso?

Antonio Candido – O pai de Edgard, grande comerciante e homem de negócios, era proprietário da enorme Fazenda Bela Aliança, em Bofete, mas não a explorava, de modo que a rotina caipira tinha se refeito nela com base no sistema de parceria agrícola. Em 1948 Edgard resolveu explorá-la e foi para lá, nela morando até mais ou menos 1960, quando mudou para Botucatu. Eu estava estudando desde 1946 certas manifestações da cultura rural e fui passar um tempo com ele. Colhi muito material, que me levou a mudar de rumo, deixando de lado as manifestações folclóricas que me interessavam inicialmente e focalizando os meios de vida. Em 1954, ele já casado com a lingüista Flávia de Barros Carone, voltei lá por mais de um mês a fim de completar e retificar o material. Edgard me ajudou muito e devo a ele bastante coisa do que pude fazer.

JU – Como era Edgard Carone no convívio?

Antonio Candido – Como disse, sempre fomos amigos íntimos. Depois que veio de Botucatu para São Paulo, em meados dos anos de 1960, costumava ir à nossa casa todos os domingos pela manhã. Além disso, mesmo quando morava fora e vinha aqui, nos encontrávamos para longas caminhadas pela cidade, indo ao cinema, almoçando e jantando nos mais variados restaurantes. Só nos últimos anos esse ritmo diminuiu, porque passei a sair pouco e ele teve problemas de saúde. Mas vinha almoçar em nossa casa pelo menos uma ou duas vezes por mês. Foi um companheiro leal, afetuoso e dedicado por mais de meio século. Conversávamos muito sobre os assuntos do seu interesse. Ele era uma fonte inesgotável de informação, conhecendo nos menores detalhes os fatos e a bibliografia.


JU – Quais foram os seus interesses principais?

Antonio Candido – Edgard foi um dos maiores leitores que conheci. Desde menino teve paixão pelo livro e chegou a reunir uma enorme biblioteca. A certa altura vendeu para uma instituição de Pernambuco quase toda a Brasiliana, mas conservou o grosso dos outros campos, que talvez seja o acervo particular mais rico do Brasil de estudos que se poderia qualificar “de esquerda”. É uma coleção preciosa, que ele sempre pôs à disposição dos pesquisadores e que deveria ser integrada a alguma instituição de cultura. Ele vivia rebuscando livrarias e sebos, aqui e no Rio, de modo que conseguiu raridades incríveis. Chegou a comprar parte da preciosa biblioteca de Astrogildo Pereira. Além dos livros, tinha paixão pelo cinema, que conhecia a fundo, chegando a reunir muita bibliografia a respeito.

JU – Como o senhor avalia a sua obra no panorama da cultura brasileira?

Antonio Candido – Não sendo historiador, não sou capaz de dar um parecer, digamos, técnico. Como leitor, acho que o seu feito maior foi ter chamado a atenção para a necessidade de estudar sistematicamente a história da República. O seu primeiro livro a respeito foi Revoluções do Brasil contemporâneo, de 1965. A partir daí se dedicou de maneira intensa ao assunto, que naquele tempo não despertava grande interesse e que ele pôs, de certo modo, na ordem do dia. O seu método me parece eficaz. Ele organizava volumes de documentos e textos comentados, que se tornaram instrumentos de trabalho e permitiram o conhecimento extenso dos períodos. Em volumes separados, narrava os fatos e os analisava, de maneira que o conjunto proporciona, ao mesmo tempo, material informativo precioso e análise bem orientada, porque ele era um homem de diretriz política definida.

JU – Qual era a posição política de Edgard Carone e como ela influiu nos seus trabalhos?

Antonio Candido – Edgard era marxista e muito politizado, mas nunca pertenceu a nenhum partido, o que não impediu que fosse preso no tempo da ditadura militar. A sua única militância regular durou poucos meses, em 1945, na pequena União Democrática Socialista, agrupamento inspirado por Paulo Emílio Salles Gomes. Ali fomos companheiros, mas ele não nos acompanhou quando entramos pouco depois para a Esquerda Democrática, que em 1947 mudou o nome para Partido Socialista Brasileiro, fechado em 1965. Creio que sofreu três influências decisivas: a de seu irmão mais velho, Maxim Tolstoi Carone, militante comunista de corte stalinista, como era normal na época; a de Azis Simão e a de Paulo Emílio. Azis ficou cego e durante anos Edgard foi seu companheiro dedicado, lendo para ele, acompanhando-o a conferências e eventos, ouvindo aulas na Faculdade de Filosofia e se beneficiando da sua capacidade excepcional de análise e reflexão. Azis era um socialista democrático fortemente anti-stalinista, com muitas amizades entre os trotskistas. Paulo Emílio, naquela altura, idem, de maneira que Edgard, apesar de simpatizante do Partidão, sempre foi aberto e não discriminou os seguidores de outras correntes na esquerda. O fato de ser marxista o levou não apenas a estudar a nossa história contemporânea com forte influência dessa orientação, mas a se interessar pelo estudo dos partidos de esquerda, do movimento operário, da economia. Mais para o fim da vida manifestava simpatia pelo PC do B, em cuja imprensa publicou trabalhos.

 




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