A
alma é de certo modo todas as coisas divinas
e humanas e deve travar relações com tudo o que existe.
Concebida no século 4 antes de Cristo pelo filósofo
grego Platão – em sua mais famosa obra, A República
–, essa definição do espírito humano
teria uma longa e fecunda trajetória no Ocidente. Preservada
durante a Idade Média graças à persistência
do filósofo latino Boécio – que em seus textos
conservou a tradição greco-latina em meio ao caos
cultural provocado pelas invasões bárbaras do Império
Romano –, ela inspiraria, no século 12, a criação
das primeiras universidades, em Bolonha, Paris e Oxford, entre outras.
Nelas,
o ensino ministrado, qualquer que fosse a área do conhecimento,
estava sempre relacionado com todo o Universo. Ao estudar o corpo
humano, por exemplo, o mestre e seus discípulos não
se limitavam a entender a anatomia dos órgãos ou a
função das artérias. Antes, investigavam suas
causas materiais e espirituais e buscavam apreender os mais profundos
sentidos daquele conjunto articulado de ossos, músculos e
carne. “Esse é o verdadeiro conceito de universidade”,
afirma o medievalista Luiz Jean Lauand, professor da Faculdade de
Educação da USP. “Se não houver essa
conexão com o todo, junto com uma liberdade irrestrita de
pensar, não é uma universidade.”
Conexão
com o todo e liberdade de pensamento estavam solidamente presentes
no modelo maior de academia – a Universidade de Paris. Fundada
oficialmente em 1215, ela reuniu pesquisadores que se negavam a
estudar apenas uma parte da realidade e perseveravam em relacionar
o seu objeto de estudo ao mundo visível e invisível.
Essa experiência inédita durou pouco mais de 60 anos
apenas – em 1277 o bispo Etienne Tempier proclamou a condenação
de teses expostas em Paris e deu início ao processo de enfraquecimento
da autonomia das universidades. Entretanto, produziu frutos eternos.
Nos
séculos seguintes, graças ao ferrenho apego ao modelo
parisiense – que pressupõe a busca pelo todo, com ampla
liberdade –, as instituições de ensino superior
espalhadas pela Europa realizaram conquistas extraordinárias,
que transformaram a história da humanidade. O físico
e matemático italiano Galileu Galilei, professor da Universidade
de Pádua, revolucionou o conhecimento científico ao
provar que a Terra gira em torno do Sol – e não o contrário,
como se pensava até então. A descoberta – feita
a partir da observação dos satélites de Júpiter
– mudou a concepção que os cientistas tinham
a respeito da natureza, baseada principalmente nas especulações
de Aristóteles, para quem a região “supralunar”
(o Universo) era constituída de uma substância chamada
“éter” e caracterizada por movimentos circulares
e contínuos.
Com
suas descobertas, Galileu inaugurou um método de pesquisa
científica que vigora até hoje na Universidade –
o método da observação e da experimentação.
Antes do professor de Pádua, prevalecia a metodologia aristotélica,
que consistia em especulações fundamentadas na lógica
e não exigia a prova experimental. Por exemplo, a existência
de um “deus” ou de um “primeiro motor” era
certa para Aristóteles porque, se o movimento existe, necessariamente
houve algo que deu o primeiro “impulso” para esse movimento
existir. Galileu mostrou – com seu telescópio apontado
para a Lua e os outros astros celestes – que o cientista precisa
observar os fenômenos tal como ocorrem na natureza, repetir
a experiência e utilizar a matemática, a verdadeira
linguagem do mundo. Estava criada a ciência moderna. Galileu
expôs suas observações no livro Diálogo
sobre os dois máximos sistemas do mundo, ptolomaico e copernicano,
publicado em 1632 em Florença e lançado no Brasil
em 2001 pela Editora Discurso – ligada ao Departamento de
Filosofia da USP –, com tradução do professor
Pablo Mariconda.
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Calouros
da USP sendo recebidos na segunda-feira passada, dia 10, em
suas unidades: Universidade é o espaço propício
para o desenvolvimento do espírito e a abertura para
o todo |
Outras
grandes revoluções surgiram graças à
universidade. No século 17, Isaac Newton, professor em Cambridge,
na Inglaterra, descobriu leis da natureza até então
ocultas à humanidade, como a força da gravidade –
responsável ao mesmo tempo pela queda de uma maçã
e pela órbita dos planetas, atraídos pela massa do
sol – e a composição da luz, formada por espectros
de diferentes cores. O filósofo e professor da Universidade
de Köenisberg, na Alemanha, Immanuel Kant formulou uma ética
celebrada universalmente por estar baseada exclusivamente na razão.
Para Kant, o ser humano tem o dever de fazer somente aquilo que
pode ser universalizado e praticado por todos os homens.
Ideais
do platonismo
Em
1934, o conceito platônico de espírito começou
a ser concretizado no Brasil. Naquele ano, o interventor do governo
de Getúlio Vargas em São Paulo – cargo equivalente
ao do atual governador do Estado –, Armando de Salles Oliveira,
assinou o Decreto Estadual 6.283, dando origem à Universidade
de São Paulo (USP). Elaborado por uma comissão de
notáveis – entre eles Júlio de Mesquita Filho,
diretor do jornal O Estado de S. Paulo, André Dreyfus, da
Faculdade de Medicina, e Vicente Rao, da Faculdade de Direito –,
o decreto representava uma vitória da elite paulista. Derrotado
em 1932, quando as tropas de Vargas sufocaram a Revolução
Constitucionalista, o Estado buscou liderar o País através
do conhecimento científico. Dessa intenção
surgiu o lema que até hoje estampa os documentos oficiais
da Universidade – Scientia vinces (“Pela ciência
vencerás”, em latim). O decreto de criação
da USP reflete os ideais do platonismo ao dizer que “a organização
e o desenvolvimento da cultura filosófica, científica,
literária e artística constituem as bases em que se
assentam a liberdade e a grandeza de um povo”.
A exemplo
de seus colegas dos séculos passados, os cientistas da USP
também fizeram descobertas notáveis. Euryclides Zerbini,
então professor da Faculdade de Medicina, por exemplo, tornou-se,
em 1968, o primeiro cirurgião da América Latina a
fazer um transplante de coração. Maurício Oscar
Rocha e Silva, que nos anos 60 foi professor da Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto, da USP, descobriu uma substância
chamada bradicinina, hoje a base de remédios contra a hipertensão
arterial. E mais: a Escola Politécnica foi a responsável
pela construção do primeiro computador brasileiro,
conhecido como “Patinho Feio”, em 1972, e o Instituto
de Física de São Carlos produziu o primeiro estimulador
ultra-sônico de crescimento ósseo do mundo. Conquistas
que se devem, fundamentalmente, ao desejo de conhecer todas as coisas.
Mais
dados sobre a história das universidades encontram-se no
Manual do Calouro 2003 – de onde foram extraídas as
informações citadas aqui –, publicado pela Coordenadoria
de Comunicação Social (CCS) da USP e distribuído
gratuitamente aos novos alunos no ato da matrícula (leia
o texto abaixo).
Os
calouros
Ao
entrar na USP – depois de ser aprovado no vestibular mais
concorrido do Brasil, o da Fuvest –, o aluno torna-se herdeiro
dessa milenar trajetória do espírito humano em busca
do universal. Hoje com mais de 63 mil alunos – dos quais 40
mil estão ligados à graduação –,
14.600 funcionários e 4.700 professores, a Universidade é
o espaço propício para que ele desenvolva seu espírito
e se abra para a totalidade – como é próprio
da alma, segundo a fórmula platônica. Na USP, todas
as áreas do conhecimento estão representadas por 36
unidades de ensino, pesquisa e extensão instaladas nos seus
seis campi, localizados em São Paulo, Bauru, Piracicaba,
Pirassununga, Ribeirão Preto e São Carlos. “Estudar
na USP demanda firmar um compromisso com você mesmo e com
o Brasil: com você, que deverá dar o melhor de si;
com o Brasil, ajudando na solução de tantas injustiças
que ainda não logramos corrigir”, escreve a pró-reitora
de Graduação da USP, Sonia Teresinha Sousa Penin,
num dos textos de apresentação do Manual do Calouro
2003, mostrando que estudar na Universidade é mais do que
limitar-se apenas ao seu objeto de estudo. “O País
precisa contar com sua capacidade, produtividade, cultura e diligência,
sua e de sua geração, que um dia nos substituirá.”
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A
Universidade de Paris, fundada em 1215, e a USP, criada em
1934: os mesmos ideais de universalidade |
A abertura
para o todo não se faz apenas nas salas de aula e nos laboratórios,
mas também nos campos esportivos, nas sessões de cinema
e nos palcos – oferecidos pela USP gratuitamente ao aluno.
O Centro de Práticas Esportivas (Cepeusp), por exemplo, dispõe
de cursos de treinamento em mais de 20 modalidades de esportes,
que vão do futebol e da natação até
o remo e o ciclismo. Para isso, conta com uma infra-estrutura composta
por um conjunto aquático com piscina olímpica e tanque
para saltos, três campos de futebol, um estádio olímpico
com capacidade para 35 mil pessoas e 12 quadras poliesportivas,
entre outros equipamentos. Já as sessões de cinema
são oferecidas pelo Cinema da USP (Cinusp), que fica nas
colméias, na Praça do Relógio, na Cidade Universitária.
Peças encenadas por alunos são apresentadas regularmente
no Teatro Laboratório da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP. Tudo isso, e ainda mais, o calouro terá
à sua disposição, a fim de concretizar em si
o legítimo espírito universitário, que busca
conhecer todas as coisas “divinas e humanas”.
Um
manual para os novos alunos
Como
ocorre anualmente desde 1996, a Coordenadoria de Comunicação
Social (CCS) da USP lançou neste mês uma publicação
destinada a apresentar aos novos alunos o vasto mundo da Universidade.
Com 164 páginas e uma série de informações
úteis ao estudante, o Manual do Calouro 2003 está
dividido em cinco seções: Apresentação,
História, Os campi da USP, Serviços e Anexos.
Na
Apresentação, o Manual traz textos do reitor
da USP, Adolpho José Melfi, e da pró-reitora
de Graduação, Sonia Teresinha Sousa Penin, dirigidos
diretamente ao novo aluno. Neles,
Melfi e Sonia parabenizam o calouro por ter conseguido entrar
na maior universidade da América Latina, lembrando
porém que a esse privilégio corresponde uma
série de responsabilidades. “A Universidade é
um patrimônio da sociedade que a patrocina”, destaca
Melfi. “Cumpre a vocês realizarem seus estudos
e atividades com muita consciência desse fato, pois
a Universidade espera um retorno exemplar de seus estudantes
a essa mesma sociedade que os ampara.”
Na
seção História, dois textos abordam o
surgimento das universidades, no século 12, e a criação
da USP, no dia 25 de janeiro de 1934. Eles sugerem que as
mais remotas origens da universidade moderna enraizam-se no
pensamento do filósofo grego Platão, que, ao
dar uma definição da alma – necessariamente
voltada para a totalidade das coisas –, estabeleceu
os fundamentos do legítimo espírito universitário,
de acordo com o professor Luiz Jean Lauand, da Faculdade de
Educação da USP (leia o texto acima).
Já
a seção Os campi da USP está dividida
em seis capítulos, cada um dedicado a um campus da
Universidade. No capítulo sobre o campus de São
Paulo, por exemplo, destaca-se a Praça do Relógio,
o “cartão-postal” da Cidade Universitária.
O leitor fica sabendo que o projeto paisagístico da
praça – elaborado por professores da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e do Instituto de Biociências
(IB) da USP – criou, nos 176 metros quadrados do local,
os seis ecossistemas vegetais predominantes no Estado de São
Paulo. “Num dos lados da praça, junto à
avenida Professor Luciano Gualberto, por exemplo, foram plantadas
4 mil mudas de 60 espécies típicas da mata atlântica,
como jatobá, jequitibá, pau-brasil e cedro-rosa”,
lê-se na página 34. Erguida no centro da praça,
a Torre do Relógio foi construída em 1973. Com
projeto do arquiteto Rino Levi, ela é um monumento
que expressa o ideal da USP de manter integradas as ciências
– humanas, exatas e biológicas – e as artes,
como é típico do legítimo espírito
universitário. “As duas paredes interligadas
da torre – que alcança 50 metros de altura –
expõem 12 painéis em baixo-relevo de Elizabeth
Nobiling. Os seis painéis da face voltada para a Reitoria
simbolizam a Matemática, a Astronomia, a Biologia,
a Química, a Física e a Geologia. Os outros
seis painéis, voltados para o Edifício da Antiga
Reitoria, representam a Filosofia, a Música, a Dança,
o Teatro, a Sociologia e as Artes Plásticas.”
A
assistência social ao estudante – serviços
de bolsas de estudos, passes escolares e moradia estudantil
– é analisada na seção Serviços.
Essa seção contém ainda informações
sobre as bibliotecas, as salas de informática à
disposição dos alunos de graduação
em sua unidade e os programas de prevenção de
drogas na Universidade, entre outros dados.
Nos
Anexos, o aluno encontra o calendário escolar de 2003
e orientações sobre bolsas de estudo de iniciação
científica, um passo importante para quem deseja fazer
pós-graduação.
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