NESTA EDIÇÃO
 
 
Dom Quixote a cavalo
com lança e espada
 



Primeiro vem o lápis. Criança, quando ainda não conhece tintas e telas, não estudou técnicas e ignora estilos, é com lápis e papel que costuma descobrir-se como artista. O desenho é geralmente a sua técnica primeira, seu primeiro ímpeto, a sua porta de entrada. Depois cria-se o pintor, com óleos e têmperas, devoto da opulência das cores, e o desenho ocupa lugar secundário. Quase sempre. No caso de Candido Portinari, não. Lugar em que descobria as soluções para suas obras, onde originalmente registrava os traços dos grossos pés e mãos brasileiros, ele esteve presente em todos os períodos de sua longa trajetória. E, em um difícil momento, quando sob ameaça de intoxicação foi afastado das tintas, acabaria por ocupar lugar de protagonista.

Portinari já era artista consagrado no Brasil e no exterior quando, em 1956, fez a série de 21 desenhos inspirados em Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, que o Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP apresenta a partir desta quinta-feira, dia 20.

Primeira atividade da programação dos seus 40 anos, com a exposição “Dom Quixote – Portinari” o MAC também participa das comemorações do centenário de nascimento do artista (leia texto na página seguinte) e pretende, segundo a professora Elza Ajzemberg, diretora do museu, “oferecer ao público a possibilidade de refletir sobre a contribuição de um dos mais importantes artistas brasileiros”. Também estarão expostas quatro telas de Portinari que pertencem ao acervo do museu.

Traços do cavaleiro triste

As ilustrações para o clássico de Cervantes foram feitas pelo artista a pedido do editor José Olympio. A intenção de Olympio era lançar uma edição brasileira do clássico espanhol, ilustrada pelo mestre modernista. No entanto, apesar de Portinari ter feito 21 desenhos a lápis de cor, o projeto não vingou e ficaria engavetado até o ínicio da década de 70, quando Carlos Drummond de Andrade foi chamado para fazer poemas para cada um dos desenhos, e o livro foi finalmente publicado. Na mostra do MAC, os desenhos estarão acompanhados das glosas do poeta mineiro.

 
Dom Quixote e Sancho Pança saindo para suas aventuras
 

A essa série, em que traçou as aventuras e as agonias do Cavaleiro da Triste Figura, como o Dom Quixote mesmo se chamou, Portinari devotava uma especial afeição e não se separou dela enquanto viveu. A obra foi vendida apenas após a sua morte, em 1962, e hoje pertence ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que a mantém exposta na Chácara do Céu, no Rio de Janeiro.

Filho de imigrantes italianos, Candido Portinari nasceu em 1903, em uma fazenda de café paulista. Ainda menino partiu para o Rio de Janeiro, onde daria ínicio a sua sólida formação clássica, que completou na Europa. Fascinado pelos renascentistas italianos, admirador profundo de Picasso e influenciado pela arte dos muralistas mexicanos, é difícil enquadrá-lo em alguma escola ou movimento. Homem sempre marcado por suas posições políticas de esquerda, foi autor de grandiosos painéis, como os que figuram na Igreja da Pampulha, em Belo Hobizonte, e na sede da ONU, em Nova York, e também de telas em que retratou as mazelas de um País subdesenvolvido, os migrantes do Nordeste, os trabalhadores negros, índios, mulatos e caboclos, um Brasil em tons de roxos e marrons.

Afastado das tintas, o pintor usou o lápis de cor e soube vencer as limitações da técnica para ilustrar o sonho impossível de D. Quixote – o da apoteose do herói popular. O cavaleiro magro e alto, em cima do pangaré Rocinante e tendo como companheiro o roliço Sancho Pança, parte de uma fazendola no Reino de Castela para consertar as coisas tortas do mundo. No risco do artista brasileiro foram marcadas as cenas da obra-prima de Cervantes que, desde o século 17, quando foi publicada, povoa imaginações ao redor do mundo.

 
Sancho Pança deitado
 

Os moinhos de vento – que D. Quixote pensa ser gigantes – são vulgares para todos os outros olhos. A distância entre o real e o ideal, entre a essência e o palpável, dicotomia fundamental da narrativa, está interpretada pelo pintor, ganhou suas cores, seus símbolos, seus traços. “Há muito de quixotesco na própria pintura de Portinari, na sua luta pelo social. É um artista que gritou o sofrimento e a tragédia popular”, explica Elza.

De acordo com ela, essa relação entre literatura e pintura estabelecida na série deve ser explorada. “Esses desenhos, até pelo fato de terem como adjacentes Cervantes e Drummond, são capazes de ligar vários setores da Universidade.” Durante o período da exposição serão oferecidas monitorias e atividades educacionais. Os alunos da Escola de Aplicação da USP já estão envolvidos no projeto e, motivados pela mostra, vão participar de oficinas de desenho e de produção de textos. “Uma outra grande vantagem dessa série é o fato de ela atingir várias faixas de público. Da criança ao intelectual.”

Exposição "Dom Quixote – Portinari", no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (rua da Reitoria, 160, Cidade Universitária), de 20 de fevereiro a 30 de março, de terça a sexta, das 10h às 19h, sábado e domingo, das 10h às 16h. A entrada é gratuita.

 

O derrotado invencível
Gigantes!
(Moinhos
de vento ...)
Malina
mandinga,
traça
d‘espavento!
(Moinhos e moinhos
de vento ...)
Gigantes!
seus braços
de aço
me quebram
a espinha,
me tornam
farinha?
mas brilha
divino
santelmo
que rege
e ilumina
meu valimento
doído
moído
caído
perdido
curtido
morrido
eu sigo
persigo
o lunar
intento:
pela justiça no mundo
luto, iracundo.
Sancho Pança servindo de diversão para os aldeões (ao lado, poema de Carlos Drummond de Andrade)

 

 

 

 

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]