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Os Estados
Unidos
adotaram
uma doutrina
que lhes dá
o direito de
intervir nos países.
Celso Martone
 
Todo tratado
de paz traz
em si as larvas
de uma nova
guerra. O
pós-guerra
será grave.
Guido Fernando Soares
 
O futuro
terá que se
basear na
cooperação
e na
legítima
competição.
Braz José de Araujo
 
Numa análise
fria,ver-se livre
de Saddam
seria um
grande ganho
para o Iraque
e região
Celso Martone
 
Na América
Latina,
o Brasil tem
condições
deliderar a
oposição
à guerra.
Guido Fernando Soares
 
Se vier
a existir,
o eixo
Paris-Moscou-Berlim
causará uma
preocupante
polarização.
Braz José de Araujo

Desde o final do ano passado, o mundo convive com uma sombra incômoda, uma sombra de guerra: o possível embate entre Estados Unidos e Iraque. Decidido a apear Saddam Hussein do poder, o presidente americano George W. Bush não tem medido esforços para conquistar a simpatia da comunidade internacional, principalmente de organismos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, para sua causa. Mas o planeta está dividido e por mais que Bush e outros governantes, como o primeiro-ministro britânico Tony Blair, queiram a guerra, a população civil, aquela que efetivamente sofrerá direta ou indiretamente com os combates travados nas areias iraquianas, já se posicionou: um sonoro “não” ao conflito, personificado em manifestações que levaram milhões às ruas de centenas de cidades espalhadas pelo mundo. E a Universidade de São Paulo não está alheia a essa problemática mundial. Neste dia 10, segunda-feira, ao meio-dia, está programado um abraço simbólico à torre da Praça do Relógio, uma forma de a USP reafirmar a todos sua opção preferencial pela paz. O evento é uma iniciativa da Coordenadoria de Comunicação Social. Mas não é só isso. Em debate organizado em conjunto pela TV USP, Jornal da USP, Rádio USP, Agência USP de Notícias, Revista USP e revista eletrônica Espaço Aberto, os professores Guido Fernando Soares, da Faculdade de Direito e diplomata, Braz José de Araujo, da FFLCH e coordenador do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Políticas e Estratégia (Naippe-USP), e Celso Martone, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, FEA, discutiram os possíveis cenários que se desenharão se ou quando a guerra eclodir, e quais seriam as perspectivas mundiais após o conflito. O debate, que foi mediado pelo jornalista Marcello Rollemberg, diretor de redação do Jornal da USP, e produzido por Alaíde Rodrigues, da Rádio USP, foi transmitido pela TV USP e pela Rádio USP e está disponível no site da revista Espaço Aberto, no endereço www.usp.br/espacoaberto. Veja, a seguir, como foi o debate.

Jornal da USP – Há cerca de duas ou três semanas houve uma grande passeata em cidades de todo o mundo pedindo pela paz. Nesse meio tempo, houve muita discussão dentro da Otan e da ONU. Na opinião de vocês, há como essa guerra entre Estados Unidos e Iraque retroceder ou é apenas uma questão de tempo para ela acontecer?

Guido Fernando Soares – As guerras em geral têm uma dinâmica muito interessante, elas se ligam à política interna de um Estado, mas também têm uma dinâmica de fato internacional, e por isso têm as suas regras próprias. Do ponto de vista da política interna, o presidente Bush tomou tantas providências ao enviar tropas para o Oriente Médio que não vejo como haver retrocesso. Depois de toda essa mobilização, como ele iria explicar uma desistência à opinião pública americana? Já com relação à opinião pública internacional, há chances de um retrocesso, na medida em que o grande líder de uma grande nação possa fazer um levantamento dos ganhos e perdas que terá com essa guerra e possa voltar atrás. Nada impede que haja um retrocesso nessa questão, mesmo que haja uma erosão muito grande do ponto de vista interno, nos Estados Unidos. Mas essa é uma razoabilidade que não se pode esperar de qualquer líder político.

Celso Martone – Com muita probabilidade a guerra ocorrerá, dado o avançar das posições americana e inglesa. E também porque não me parece que a distância que separa os Estados Unidos da França e da Alemanha, por exemplo, seja tão grande assim. Todos concordam que desarmar o Iraque é uma questão vital. Os meios de se fazer isso é que estão sendo discutidos. Os Estados Unidos querem partir direto para uma ocupação, enquanto os outros países estão querendo dar mais tempo para ver se há um processo espontâneo de desarmamento, o que a essa altura me parece difícil imaginar. Acredito que a guerra acontecerá como um fenômeno consensual dentro do Conselho de Segurança da ONU.


Braz Araujo
– Eu gostaria que as coisas fossem nessa direção que o professor Celso está apontando, até porque isso seria melhor para o Brasil e obviamente para o mundo todo, já que seria uma decisão tomada a partir de um certo consenso do Conselho de Segurança e, portanto, a comunidade internacional não estaria dividida. Mesmo do ponto de vista dos países árabes, a ação contra o Iraque estaria legitimada em função de uma decisão do Conselho. Mas acho esse cenário muito otimista. Creio que corremos o risco de uma crise mais profunda. Entendo o jogo americano como um jogo estratégico. Não posso, por exemplo, descartar a hipótese de que os americanos, desde o início, estejam jogando para ganhar sem lutar, porque esse é o sonho de todo estrategista. Se Saddam Hussein renuncia ou sofre um golpe, ou mesmo cai da janela e morre, o fato é que isso poderia evitar uma guerra. Mas não é muito provável que isso aconteça e por isso temos que trabalhar com a probabilidade da guerra. O que devemos desejar é que ela não seja travada apesar de uma decisão contrária do Conselho de Segurança, porque nesse caso o cenário mundial seria profundamente alterado.

JUSP – Foram esgotados todos os meios diplomáticos nesse sentido ou o que está acontecendo é uma forma de emparedar a ONU?

Soares – É evidente que não foram usados todos os meios se entendermos que, entre os meios de solucionar um litígio internacional, um deles é a intervenção de uma organização internacional, como a ONU. O que se discute dentro da ONU são as formas de evitar a guerra, mas existem outras formas de resolver a questão, muitas outras. Por exemplo, a mediação de um grande líder mundial como o Papa, o que seria possível acontecer. Ou uma arbitragem entre os dois Estados. Mas, evidentemente, eu não vejo essas possibilidades. Já existe uma intenção deliberada de invadir um país e derrubar um governo, e qualquer solução de litígio está absolutamente impossibilitada. O Papa pode dizer o que quiser, mas a decisão já está tomada e espera-se apenas um aval da ONU.

JUSP – Mas o quanto essa decisão está sendo forçada ou não?

Martone – Há uma coisa que me preocupa e está no centro dessa discussão: depois do 11 de setembro, o presidente Bush anunciou uma nova doutrina de segurança nacional, pela qual os Estados Unidos se dão o direito de intervenções preventivas, militares se necessário, contra qualquer nação ou região do mundo que possa ser vista como uma ameaça potencial aos interesses norte-americanos. É evidente que uma doutrina desse tipo vai gerar uma contradição e um conflito com outras nações, já que o que está em jogo aqui, a meu ver, é que os Estados Unidos tomaram uma decisão de força contra o Iraque e estão buscando a aceitação das outras nações importantes, os países da Europa, a Rússia, que se vêem coagidas a aceitar uma regra de força. Porque hoje isso vale para o Iraque, amanhã valerá para a Colômbia, depois para um outro país. É uma regra de força que as outras nações terão que engolir e isso é uma coisa que me preocupa. Não sei se no mundo moderno cabe esse tipo de doutrina da forma como foi anunciada, que é muito agressiva, muito prepotente.

Araujo – Os Estados Unidos estão em guerra contra o terrorismo e essa guerra foi considerada legítima pela comunidade internacional. Claro que não necessariamente somos obrigados a concordar com todas as percepções de ameaça dos Estados Unidos. Acho que esse é um fato em que a comunidade internacional vai, como já está acontecendo, de vez em quando se dividir. Isso porque não necessariamente aquilo que ameaça os EUA pode ameaçar um outro país, portanto essas percepções de ameaça são diferenciadas. Mas o que importa é que a maior potência do mundo está adotando uma postura de decisões tendencialmente unilaterais e é óbvio que isso se choca com a perspectiva mundial de fortalecimento dos organismos multilaterais, que na tradição da estratégia norte-americana dos democratas é o ideal. Ou seja, a estratégia norte-americana do período democrata é baseada nos preceitos da segurança cooperativa que, aliás, creio que devam ser também os preceitos brasileiros. Mas é importante lembrar que os Estados Unidos são um país democrático e, por conseguinte, o presidente Bush vai ter que disputar as eleições do ano que vem, e não se sabe se será reeleito. Portanto, o próprio povo americano poderá alterar essa política. Mas não sejamos ingênuos de acreditar que, se for eleito um democrata, a possibilidade de guerras deixará de existir.

JUSP – A guerra, no final das contas, é ainda uma extensão da política ou ela se dá quando todas as possibilidades políticas se esgotaram?

Soares – A pergunta envolve o problema, central no Direito, de saber o que é guerra. Saber se existe guerra justa, guerra legítima. Como é que se pode passar de um meio de solução pacífica de litígio para um meio que é a guerra, que soluciona, sim, um conflito, mas que soluciona pela força e que pode criar outros problemas? A questão da legitimidade do uso da força é, no Direito, um assunto extremamente difícil, clássico – o problema da guerra justa ou não – que vem desde a Idade Média. De qualquer forma, esse é um assunto que devemos entender como o uso da violência e do Direito. O Direito, diferentemente da ética, da moral, admite a violência, mas a violência legítima, que tem o nome de sanção. Mas, então, a guerra seria uma sanção para o descumprimento de uma obrigação internacional? É uma contradição, percebe?

JUSP – E seria um braço político?

Soares – Exatamente. A guerra não é um braço político no sentido de legitimação da ação do Estado. Agora, a política enquanto uso de forças, sem dúvida nenhuma. A guerra é a manifestação da política nas relações internacionais. Do ponto de vista da legitmidade, é uma questão como a que se coloca a respeito da violência interna dentro de uma sociedade. Ela é um objeto do Direito, devemos estudá-la? Nós temos que estudar o fenômeno social, mas o Direito não vai poder exatamente legitimar o crime porque isso é uma contradição. A guerra hoje é exatamente um crime internacional, está definida assim em vários tratados internacionais. Como a violência pode ser legitimada? Isso chama-se intervenção coletiva, sob a ONU. É possível o uso da força no Direito legitimamente, mas desde que legitimada por uma decisão da ONU. Aí, sim, pode-se falar em uma “guerra legítima”.

JUSP – Uma coisa é colocar 200 mil soldados no Golfo Pérsico, deslocar navios, porta-aviões, todo um contingente bélico. Outra coisa é ter condições financeiras para manter esse aparato, internas principalmente. Os Estados Unidos hoje estão economicamente preparados para uma guerra?

Martone – Sim, nesse aspecto, sim. Trata-se de uma grande economia, as finanças americanas são gigantescas, é possível financiar tranqüilamente o esforço de guerra. O ponto é que isso vai fazer mal à economia americana, como já está fazendo. Os Estados Unidos tiveram uma década de ouro, a década de 90, que foi um círculo virtuoso de crescimento, ganhos gigantescos de produtividade, de bem-estar coletivo, baixíssima taxa de desemprego e isso tudo foi se exaurindo no final daquela década. Houve uma série de ajustes, que eram já esperados, mas com a administração Bush houve uma mudança fundamental, especialmente no que se refere a gastos públicos. Os Estados Unidos hoje estão com um déficit orçamentário bastante significativo, mais de 2% do seu PIB, o que contrasta fortemente com o superávit que eles tinham há dois ou três anos, e isso, a longo prazo, vai trazer conseqüências ruins para a economia. A economia americana não está se recuperando com o vigor que se esperava, há um processo de incerteza e desconfiança, o que é chamado de “aversão ao risco” por parte dos investidores e que atinge hoje proporções muito grandes. Sem confiança não há recuperação e a guerra age no sentido de estimular ainda mais essa aversão ao risco.

JUSP – Sem entrar no mérito das obviedades, de limite de força, de poderio militar, há realmente vencedores e vencidos em uma guerra como essa, ou perde todo mundo, principalmente as populações civis?

Araujo – Uma guerra é sempre catastrófica para a população. Hoje temos milhares de refugiados no mundo todo em função de guerras as mais variadas. Obviamente o povo iraquiano vai novamente sofrer se houver a guerra, até porque não se recuperou ainda da guerra passada. No Iraque, até hoje, são milhares de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza e falta de medicamentos em função do bloqueio imposto pelas Nações Unidas. Saddam Hussein não cumpre os compromissos que assina, e por isso não é confiável, criando uma situação de tensão que é impactante, não apenas para o seu povo, mas que afeta o mundo todo. Dependendo das condições diplomáticas e militares em que essa guerra for travada, ela terá um impacto maior ou menor, mas haverá o impacto.

JUSP – Falou-se há pouco da necessidade do aval da ONU. E se esse aval não for dado, os Estados Unidos irão à guerra assim mesmo, correndo o risco de uma espécie de ilegalidade?

Soares – O interessante é observar que a ONU é uma das criaturas dos Estados Unidos. Não vamos esquecer isso. A idéia de um Conselho de Segurança com votos qualificados foi uma idéia dos Estados Unidos. Além disso, a ONU e seus órgãos principais estão sediados em Nova York. Mas é importante observar que os Estados Unidos, com todo o seu poderio, estão se contendo até agora, esperando uma aprovação da ONU. De uma certa forma inconscientemente, há aquela idéia de que é preciso o aval da ONU. Porque se fosse uma guerra, no sentido clássico, os Estados Unidos, com o poder e a vontade de fazer guerra, já a teriam feito. Mas, no entanto, estão negociando, estão se submetendo a um desgaste internacional, tentando mudar a negociação com o Conselho de Segurança. Há uma vontade, pelo menos dos Estados Unidos, de não estourar com a ONU. Mas vejamos o pior cenário: os Estados Unidos declaram a guerra. Sem dúvida a ONU será detonada. No aspecto de segurança coletiva, há muita coisa na ONU que não será necessariamente detonada. O aspecto de cooperação internacional, de financiamentos internacionais, esses talvez não sejam detonados. Mas o principal da ONU, que é a conservação no mundo da segurança coletiva, será perdido.

JUSP – Dentro desse contexto, é possível ficar surdo a manifestações como a de Londres, que reuniu mais de um milhão de pessoas contra a guerra?

Martone – Não, claramente não. Acho que é por isso que os Estados Unidos e especialmente o primeiro-ministro britânico Tony Blair estão esticando o prazo-limite para obter esse consentimento. Acho que essa é preocupação da legitimação da ação militar no Iraque. Agora, uma avaliação fria, independente da questão jurídica, indicaria que, do ponto de vista do Iraque e da região, se ver livre de Saddam seria uma grande vitória, um grande ganho. Porque o que o Iraque vem sofrendo nos últimos dez anos, como resultado do embargo que a ONU fez e do próprio estilo de administração de Saddam, é uma coisa chocante. Acho que nesse raciocínio frio, objetivo, independente de questões jurídicas ou legais, em uma avaliação puramente econômica, a melhor coisa, não só para o Iraque mas para toda a região, seria remover Saddam Hussein.

JUSP – Há uma outra questão: quem colocar no lugar de Saddam Hussein? Já se falou na possibilidade de os Estados Unidos colocarem uma espécie de interventor, o que seria um corpo estranho à cultura iraquiana, antes de mais nada. Como é que fica não só o Iraque, mas toda a região em uma situação dessas?

Araujo – Acho que tudo vai depender de qual guerra e de qual pós-guerra estamos falando. Se será o pós-guerra de uma guerra feita com base na legitimidade do Conselho de Segurança ou se é o pós-guerra de uma guerra decidida pelos Estados Unidos e os seus amigos da coalizão, em processo de formação. Tenho a impressão de que isso é muito importante.

JUSP – Mas quais seriam as diferenças?

Araujo – No primeiro caso, ela tem o carimbo da legitimidade internacional. Nesse caso, seria um cenário muito mais tranqüilo do ponto de vista do pós-guerra, na medida em que, havendo legitimidade reconhecida por parte da comunidade internacional, a situação na comunidade de países árabes seria muito mais tranqüila. Mas, pelo menos agora, o cenário mais provável é de uma decisão unilateral e, nesse caso, além da crise já mencionada com relação à ONU e ao seu respectivo conselho, nós temos uma crise talvez de dimensões ainda não bem estabelecidas e não muito claras, que é a crise que vai resultar não apenas da forma como os americanos vão gerenciar o Iraque do pós-guerra, mas também os demais tipos de reações que teremos no mundo todo em função da decisão norte-americana e, particularmente, no mundo muçulmano. Haveria o desenvolvimento de um anti-americanismo militante e, em contrapartida, as respostas que os Estados Unidos darão a esse sentimento, caso ele agrida os seus interesses. E o que é mais preocupante em tudo isso é a provável polarização que virá a ocorrer no mundo, em função justamente de posições que podem ser assumidas pela França. O eixo Paris-Moscou-Berlim, caso venha a existir, é um cenário muito preocupante, e ele pode ser catastrófico para muitos países.

Soares – Do ponto de vista do Direito internacional, não há dúvida de que a situação pós-guerra será muito grave. Qual o governo que será colocado ali? Um governo pela força, pela força de ocupação. Isso foi possível no pós-guerra no Japão e, imediatamente depois, na Alemanha. Mas depois houve exatamente a legitimação desses governos através de todo um processo democrático. Mas eu não vejo essa possibilidade no Iraque. Como é que se vai aceitar um governo imposto pelos Estados Unidos, tendo em vista as diferenças de civilização? Além disso, não vamos esquecer que é muito estranho os Estados Unidos colocarem alguém agora para substituir quem eles apoiaram por tanto tempo. O antigo filho dileto hoje é o inimigo principal e quem é que se coloca no lugar dele? O pós-guerra vai ser muito grave. E todo o tratado de paz que finaliza uma guerra traz dentro de si as larvas de uma nova guerra. Uma insatisfação que vai causar novas guerras, como aconteceu depois da Primeira Guerra Mundial. Os estrategistas falam, inclusive, de “guerra larvar”. Nesse caso, não vejo exatamente o que vai ser pacificado, o que se ganha com essa guerra.

JUSP – Muito tem se falado sobre os interesses americanos nas reservas de petróleo do Iraque, o que pode ser uma desculpa simplista para a guerra. Mas onde entra a questão econômica nessa invasão ao Iraque ?

Martone – O Oriente Médio, como o grande produtor de petróleo do mundo, é uma área especial, do ponto de vista estratégico, para o futuro. Portanto, Saddam Hussein incomoda mais ainda por ser um inimigo em uma região que tem um produto tão vital quanto o petróleo. O Iraque é um país com bons recursos naturais, tem água, ao contrário da região, e tem muito petróleo. Diz-se até que pode ter reservas superiores às da Arábia Saudita. É evidente que essa questão do petróleo é importante, não como motivação da guerra, mas como um ingrediente dentro do processo que levou a essa situação. Trata-se de uma região especial e todo mundo dependente de petróleo tem interesse em que as coisas funcionem bem. Mas o petróleo não é a motivação, acho que a motivação é mais ampla. Há muitos ingredientes envolvidos. Interesses econômicos, sem dúvida. Ouvi um depoimento de um sociólogo americano dizendo que existem, na verdade, dois Estados Unidos. Um que é mais próximo da Europa, a Nova Inglaterra, a costa leste, o que equivale a mais ou menos a metade do país. E a outra metade que é mais conservadora, o centro-oeste, o sul. E o presidente Bush representa essa segunda metade, como Bill Clinton representava a primeira. Portanto, há uma divisão de opinião dentro dos Estados Unidos também. Essa questão do Iraque pode ser uma questão conjuntural, que pode até ter um desfecho trágico, no sentido de não ser uma guerra legitimada, mas essa posição pode ser revertida. Hoje acho que há uma certa paranóia com essa questão terrorista.

Araujo – Os fatos da vida cotidiana dos Estados Unidos estão mostrando que o povo americano está sofrendo desse pânico e muita gente está morrendo porque o pânico explode e é incontrolável. Também é um fato que a sociedade americana está dividida. Na realidade, o mundo está dividido. As forças políticas hoje no mundo estão em um momento da história em que vamos ter que definir como vamos construir o futuro. A resposta que a comunidade dá, do ponto de vista de suas tradições, é simples. Vamos ter que construir um mundo baseado nos princípios da cooperação e da competição. Ou seja, é legítimo competir e é fundamental que se coopere. Isso faz parte do jogo da economia de mercado, da democracia e dos princípios da liberdade. A cooperação internacional faz parte de valores que todos compartilhamos no mundo. No entanto, estamos diante de um fato que também é real: os Estados Unidos estão em guerra contra o terrorismo e seu presidente é George W. Bush. Esses fatos condicionam a história, não posso querer substituí-los por outros. No limite, nós não podemos considerar tudo isso, como alguns autores estão sugerindo, como uma tendência irreversível de unilateralismo dos EUA. Não acredito nisso porque os mecanismos da democracia americana são mecanismos que podem corrigir esses desvios. Não há razões para esse catastrofismo do unilateralismo do império. Não se construirá nenhum império, baseado na competição e na cooperação, se a adesão a esse império não for com base no consentimento. Com base na força, não é viável a construção desse império. Portanto, se nós nos referirmos aos valores que nós compartilhamos, e que são valores do mundo ocidental, que são os valores da liberdade, da economia de mercado, da cooperação internacional, nós temos que trabalhar para a pespectiva da segurança cooperativa e dos organismos multilaterais. Claro que estamos em um momento de crise dessa perspectiva, mas me permito imaginar que seja uma crise momentânea.

JUSP – Falou-se do momento histórico para a reconstrução do futuro e no princípio da cooperação. Dentro desse quadro, pode-se pensar qual o papel que órgãos internacionais como a Otan e a ONU desempenham hoje, cerca de meio século depois de sua criação. Qual a importância da Otan hoje ?

Soares – A pergunta se insere dentro de uma visão mais geral: o que é a diplomacia do século 20 e o que ela está sendo hoje? A diplomacia multilateral, exercida no interior das organizações multilaterais. Isso é típico dentro da Liga das Nações e da OIT, que foram as grandes organizações feitas durante todo o entreguerras. Depois da Segunda Guerra, surgiu a ONU. Então é uma proliferação inacreditável de organismos internacionais e é lá que se exerce a diplomacia. A cooperação é a grande tônica do século 20. O Direito hoje não é mais de autocontenção dos Estados, mas um direito de cooperação para atingir um determinado fim. Classicamente, o Direito internacional é um direito de proibição, regras proibitivas de um Estado todo-poderoso. Hoje, a tônica é realmente de cooperação, em matéria de meio ambiente, de finanças internacionais. A Otan se insere no esforço do pós-guerra de permitir uma Europa Ocidental forte contra o bloco socialista, mas, hoje, depois da queda do muro de Berlim, ela é um anacronismo. Significa a presença dos Estados Unidos dentro da Europa. Existem, hoje, dentro da Comunidade Européia, três pilares que estão sendo construídos. Um, que já está mais do que construído, é a integração econômica. O segundo pilar vai ser a cooperação judiciária, e o terceiro é o pilar da segurança européia. E nesse último, os Estados Unidos não vão entrar. Então a Otan está perdendo a sua atualidade política, ainda que ela não esteja sepultada.

JUSP – A Otan e a ONU são organismos políticos. O que se pode dizer hoje do FMI, também criado no pós-guerra, e que é um organismo econômico? Ele também está precisando se redefinir nesse novo contexto do século 21?

Martone – Na ótica de um país como o Brasil, esse multilateralismo e essa cooperação internacional são fundamentais para abrir oportunidades para o País. Nesse sentido, quanto mais abertos, quanto mais cooperativos forem esses organismos – e não falaria apenas do FMI, mas também da OMC e dessas iniciativas que estão ainda no início, como a Alca –, mais sucesso terão, na medida em que esse sentimento de cooperação internacional predomine. O pior cenário para o Brasil é um cenário de fechamento, de unilateralismo, de uso de força, de desmoralização de organizações internacionais, a começar pela ONU, e eventualmente expandindo para organizações econômicas. O desfecho dessa questão política me parece que terá alguma repercussão também do ponto de vista das organizações multilaterais na área econômica. No caso específico do FMI, as coisas estão um pouco mais maduras, suas críticas têm sido bastante severas, vindas de vários setores. É um caso de reforma mais amadurecido. No caso da OMC, existem hoje várias dúvidas a respeito do sucesso dessa nova rodada de negociações. E em relação à Alca, essa administração americana, que resolveu prosseguir nas negociações mas agora tem o seu foco deslocado da América Latina para assuntos estratégicos mais urgentes como a questão do Oriente Médio, pode, de certa maneira, prejudicar o Brasil.

JUSP – Quais seriam suas considerações finais a respeito dessa possível guerra e como o Brasil pode ser afetado?

Araujo – Em função desse cenário econômico, o Brasil talvez seja o país do mundo mais interessado na paz. O Brasil é um país grande e a perspectiva de cooperação no mundo, que nos interessa, vai nos permitir crescer mais rapidamente e ampliar o nosso sistema produtivo, para nos desenvolvermos mais e atingirmos mercados que nós temos condições e competência para atingir em um cenário de mais igualdade. A paz é para nós fundamental, vital para aumentar a competitividade brasileira. Portanto, a guerra não nos interessa. Só que a guerra não depende só de nós e a grande questão que está colocada no cenário internacional hoje, e que é mais um dilema para o Brasil, é que posição nós, brasileiros, vamos tomar no caso de uma polarização mundial contra os EUA. Acho que as posições brasileiras estão muito claras, o que não está claro é o que esse cenário reserva para o Brasil no pós-guerra. Não nos interesa a polarização, interessa ao Brasil um cenário de negociações, mas isso não depende só de nós.

Soares – O Brasil é um país muito grande, muito evidente dentro do mapa mundial, para ficarmos alheados a uma problemática internacional. A democracia racial é o nosso traço e devemos nos apegar a isso como um grande crédito que temos. Nós podemos muito bem compreender a problemática do mundo islâmico, porque convivemos com ele aqui dentro do país. Por outro lado, nós somos América Latina e vai ser exigido de nós, sim, um posicionamento. Nós estamos dentro do continente americano e temos historicamente laços muito fortes com os EUA. Não parece adequado que o Brasil apóie os americanos nessa guerra, a meu ver uma guerra completamente sem juízo. O Brasil tem condições, dentro da América Latina, de liderar uma posição de oposição a essa guerra.

Martone – O Brasil depende muito, para o seu crescimento futuro, do cenário internacional. Nas últimas duas décadas o nosso crescimento tem sido medíocre, houve um certo fracasso no processo de desenvolvimento econômico brasileiro. A recuperação de taxas de crescimento maiores vai depender crucialmente do ambiente internacional. Hoje é impossível para um país do tamanho do Brasil pretender um crescimento totalmente endógeno, totalmente voltado para dentro. Nós temos que buscar no comércio internacional, nas relações internacionais, essa ponte que nos permitiria crescer mais rápido. Portanto, o desfecho dessa situação, da guerra, do pós-guerra, é uma questão de interesse vital para o Brasil. Isso vai condicionar fortemente o nosso crescimento futuro, as nossas estratégias e as nossas oportunidades de crescimento. É um momento de expectativa.

 




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