O
Brasil que as mãos dos homens edificaram é belo e
rico. Nas colinas, nas montanhas ou nas cidades, esses monumentos
fundem-se majestosos na paisagem. Aliam-se à mão de
Deus. Quem vê a Fortaleza do Monte Serrate, de Salvador, construída
na década de 1580, tem a impressão de que o mar não
seria o mesmo se não fosse ela. Ou a igreja do extinto convento
dos carmelitas de Olinda, em 1588, tão simples e tão
imponente, embelezando o morro com a mesma altivez dos coqueiros
ao redor. E o Teatro Amazonas, inaugurado em 1896, quando Manaus
tinha apenas cem mil habitantes, e que ainda espalha pela cidade
a energia do apogeu do ciclo da borracha.
É
exatamente essa fusão da arquitetura e da natureza que o
fotógrafo Cristiano Mascaro, também arquiteto doutor
pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, conseguiu
captar. E sugerir no livro O patrimônio construído,
da Editora Capivara, patrocinado pela Petrobras. Mascaro, como sempre,
vai além da fotografia. Registra a imagem, mas consegue documentar
também detalhes que, sob a luz do sol – intensa ou
entre as frestas –, ganham uma nova dimensão, transportando
o leitor para o ambiente da foto.
As
paisagens têm a descrição minuciosa dos textos
de três especialistas ligados à preservação
do patrimônio: Alexei Bueno, diretor do Instituto Estadual
do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, Augusto da Silva
Telles, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Lauro Cavalcanti,
arquiteto, doutor em Antropogia Social e diretor do Paço
Imperial, no Rio de Janeiro.
O livro
convida a uma redescoberta da nossa história. Uma redescoberta
visual do Brasil dos séculos 16 ao 20. Da Igreja de São
Cosme e São Damião, em Igarassu, Pernambuco, construída
por Duarte Coelho na década de 1530, até o Palácio
dos Arcos, projeto de Oscar Niemeyer com paisagismo de Burle Marx
inaugurado em 1967, o leitor viaja entre obras de arte, coqueiros,
palmeiras, mares. E, especialmente, entre os sonhos registrados
em monumentos que, apesar das dificuldades e do descaso com a sua
preservação, vêm atravessando os séculos.
Edifícios
tombados – “Escolher os cem prédios mais belos
e significativos entre os mais de 1.500 imóveis que o Instituto
de Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) tombou no
decorrer do século 20 é tarefa certamente fadada à
polêmica”, conta Pedro Corrêa do Lago, coordenador
editorial da Capivara. “De fato, são de tal qualidade
as principais construções preservadas em todas as
regiões do País que omissões e injustiças
deverão surgir, qualquer que seja o critério adotado,
e a seleção final comportará lacunas inevitáveis.”
Consciente
dessas limitações, um comitê integrado por seis
especialistas elaborou uma lista que fosse realmente representativa.
“As principais regiões do Brasil estão representadas,
mesmo que se observe uma grande concentração de prédios
do século 18 entre os selecionados, o que reflete o critério
de escolha do Iphan ao longo das últimas décadas e
também uma realidade objetiva da composição
do melhor do nosso patrimônio construído”, explica
Lago. “Já com relação aos séculos
19 e 20, a raridade relativa de prédios representativos da
arquitetura eclética deve-se a uma má vontade notória
do Iphan na preservação de tais edifícios,
refletida nos pareceres emitidos até a década de 1980.”
A seleção
dos edifícios excluiu, como o próprio Lago observa,
monumentos como o chafariz de mestre Valentim, no Rio de Janeiro,
de grande beleza e importância histórica, por não
se tratar de um prédio, ao contrário do monumento
dos Pracinhas, no Aterro do Flamengo. “Foram privilegiadas
as construções individuais sobre conjuntos urbanos
tombados na sua integralidade, como o centro histórico de
Salvador ou ainda Ouro Preto e Olinda.”
A proposta
da edição é surpreender os brasileiros com
a beleza de novos ângulos de prédios muito conhecidos
e com a revelação de riquezas talvez nunca suspeitadas
em nossos bens tombados menos divulgados. “Para o estrangeiro,
será a oportunidade da descoberta do patrimônio riquíssimo
de um grande país que nunca foi retratado como neste amplo
panorama de mais de 500 imagens de grande impacto.”
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Teatro
Amazonas, Manaus (AM): arquitetura que reflete
o apogeu do ciclo da borracha no Norte do Brasil |
Percurso
histórico – Além de mostrar as imagens devidamente
legendadas, os especialistas preocuparam-se em apresentar a arquitetura
desde o Descobrimento. Alexei Bueno lembra que desses primeiros
anos nada restou –exceção feita aos padrões
de descoberta plantados em pontos diversos do litoral, destacadamente
o de Porto Seguro. “Esses toscos monólitos em pedra
portuguesa, gastos pelas intempéries e estampando geralmente
as quinas e a cruz de Cristo, são de fato os primeiros monumentos
de uma civilização européia no Brasil”,
observa. “Do período inicial, nos primeiros núcleos
fundados, São Vicente, em 1532, Olinda e Igarassu, em 1535,
Salvador, em 1549, São Paulo, em 1554, e Rio de Janeiro,
em 1565, sobreviveram uns poucos resquícios, especialmente
de arquitetura militar ou religiosa, pois da civil praticamente
nada restou do primeiro século.”
Bueno
diz que a história das primeiras relíquias edificadas
no Brasil é, portanto, uma história condicionada a
alguns fatores importantes: a lentidão do início da
colonização, o caráter provisório ou
passível de ampliação das primeiras construções
e também o vandalismo em tempos modernos, que destruiu alguns
dos mais importantes remanescentes daquele período. “Grosso
modo, quase todos os edifícios sobreviventes do primeiro
século sofreram uma ou outra alteração, pois
tiveram mais tempo que os outros para passarem por isso, mas sem,
às vezes, alterar o seu caráter arquitetônico.”
Entre
os exemplares da arquitetura militar, Bueno cita o pequeno Forte
de São Felipe da Bertioga – citado em um relatório
de Euclides da Cunha –, a Fortaleza de Monte Serrate, em Salvador,
com sua feição medieval, e o Forte dos Reis Magos,
em Natal. Da arquitetura religiosa, destaca igrejas como a da Misericórdia,
em Porto Seguro, e o extinto Convento de São Carmo, em Olinda.
Da arquitetura ligada a alguma atividade econômica, apresenta
as ruínas do Engenho de São Jorge dos Erasmos, em
Santos, que vêm sendo preservadas com a participação
da USP.
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Igreja
de Nossa Senhora do Carmo, Olinda (PE) |
Barroco
na arquitetura – O arquiteto Augusto da Silva Telles explica
que a arquitetura no século 16 e na primeira metade do século
17 é uma transposição do que se fazia em Portugal
na mesma época, apenas com as adaptações e
simplificações decorrentes dos condicionamentos econômicos
e tecnológicos.
Na segunda metade do século 17, após a denominada
Restauração Pernambucana, expulsos os holandeses,
surgem edificações e igrejas de maior porte e, com
elas, o aparecimento de estruturas, ornamentação e
espaços internos com características do barroco. “As
igrejas dos colégios de Salvador, da Bahia, de Belém
e de Vigia, no Pará, são ótimos exemplos. As
obras de talha, no início, constituíam somente os
retábulos das capelas; em seguida passaram a recobrir suas
paredes e as abóbadas e, mais adiante, em igrejas do final
do século 17 e da primeira metade do 18, o revestimento de
talha dourada e policrômica se estendeu às paredes,
pilares, arcos e à totalidade das naves, formando retículas
estáticas e definindo mesmo as características dos
espaços internos dessas igrejas. São as adornadas
em ouro, como a de São Bento, no Rio de Janeiro, ou de São
Francisco, em Salvador.”
Telles
afirma que, na segunda metade do século 17 e no 18, os franciscanos
criaram, no Nordeste, um estilo arquitetônico próprio
para seus conventos e igrejas. Caracteriza-se pelos claustros envoltos
por avarandados corridos, com colunas toscanas que apóiam
diretamente os beirais do telhado, tendo, no térreo, galerias
com arcos em seqüência. O pesquisador destaca o trabalho
de artista/arquiteto de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
“De 1796 a 1799, ele esculpiu as imagens em madeira para os
Sete Passos da Paixão de Cristo. As figuras de Cristo e dos
Apóstolos são obra pessoal do artista, as outras foram
esculpidas por seus auxiliares”, esclarece. “Essas imagens
foram encerradas em capelas, os Passos. De 1800 a 1803, Aleijadinho
produziu as esculturas em pedra-sabão dos doze profetas do
Antigo Testamento.”
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Convento
de Santo Antonio, Rio de Janeiro (RJ) |
Grandes
transformações – O arquiteto Lauro Cavalcanti
estreita o foco na arquitetura brasileira dos séculos 19
e 20. Pontua as transformações econômicas refletidas
no crescimento das cidades e, conseqüentemente, nas edificações.
“No Brasil mais populoso e urbano do século 19, o neoclássico
marcou presença. Até meados do século, dividiu
a cena com as construções setecentistas; na segunda
metade, conviveu com as primeiras manifestações do
ecletismo, estilo que se estenderia até a terceira década
do século 20.”
A arquitetura,
até meados dos anos 1930, não apresentou nenhuma surpresa.
“Parecia tão somente uma nova importação,
diversa na forma mas similar no espírito a tantas outras
já realizadas na arquitetura dos séculos anteriores”,
diz Cavalcanti. “Esse quadro foi radicalmente alterado a partir
de 1936. A releitura tropical de Le Corbusier, os princípios
teóricos de Lúcio Costa para nosso modernismo e os
projetos inusitados de Oscar Niemeyer apontaram caminhos próprios
para a arquitetura brasileira.”
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Palácio
do Congresso,
em Brasília (acima),
e o Profeta Daniel no
Adro dos Profetas, em Congonhas
(ao lado) |
As
pesquisas de Cavalcanti são registradas nas fotos do Museu
da Inconfidência de Ouro Preto, na Igreja da Candelária
do Rio de Janeiro, no Teatro Municipal e na Estação
da Luz, em São Paulo, entre outros edifícios. São
imagens que pontuam o pensamento no planejamento das cidades e também
o descaso e os avanços na sua preservação e
na dos monumentos. “As três últimas décadas
do século 20 não foram, contudo, anos inteiramente
perdidos”, observa o arquiteto. “Cabe registrar alguns
avanços: as revitalizações de uso e interpretação
arquitetônica criativa de monumentos antes considerados intocáveis.
Quatro exemplos: o Paço Imperial, projeto de Clauco Campelo,
o Sesc Pompéia, de Lina Bo Bardi, a Oca e a Pinacoteca do
Estado, reestruturadas por Paulo Mendes da Rocha. Importante, igualmente,
foi a descaracterização da falsa oposição
entre preservação e desenvolvimento urbano, como o
projeto do Corredor Cultural, e o papel de revitalização
urbana dos museus e espaços culturais do centro carioca.”
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O
patrimônio construído – As 100 mais belas
edificações do Brasil, com fotos de Cristiano
Mascaro e textos de Alexei Bueno, Augusto da Silva Telles
e Lauro Cavalcanti, Editora Capivara (telefone 11 3167-0066),
464 páginas, R$ 143,00 |
Nas
fotos de Mascaro, um Brasil com muita luz
Pegar
a estrada antes do amanhecer e perseguir a luz do sol até
o seu último instante tem sido a rotina de Cristiano
Mascaro nos últimos 36 anos. Uma rotina refletida em
livros, exposições. E infinitas histórias
que vai arquivando na memória, no diário. Ou
contando com o humor também luminoso. “Acho que
não levo jeito para escritor. Quem sabe um dia...”,
diz.
O
peso do equipamento, o trabalho que o afasta do aconchego
de casa, a burocracia para fotografar... Se tiver de andar
a pé por quilômetros a fio ou sair procurando
entre ladeiras um sacristão que foi-se embora levando
a chave da igreja que deseja documentar... Todos os problemas
perdem o foco diante de nuances de uma arquitetura histórica
ou uma paisagem exuberante. “Eu me esqueço da
vida. Minha preocupação é buscar um ângulo
diferente. Registrar tudo...”
Nesse ritmo, as lentes de Mascaro conseguem captar o que foge
aos olhos comuns. Suas fotos transportam quem as observa.
Sugerem a atmosfera do lugar. Vão além da arquitetura
e da paisagem. Fazem sentir os passos de quem passou por ali.
Têm um silêncio ou uma informação
a mais.
“Bem
que eu gostaria de sair ouvindo o canto da sereia, fotografando
sem caminhos definidos. Mas, por enquanto, não é
por aí. Tenho participado de projetos que me levam
sempre a algum lugar, que têm me permitido descobrir
um Brasil que eu não imaginava.”
Mascaro
conta que o livro O patrimônio construído é
resultado de um trabalho em equipe. “Fizemos essa edição
em tempo recorde. Viajei por 20 cidades durante quatro meses.
Tirei milhares de fotos e foram selecionadas 500”, explica.
“Até São Pedro colaborou, porque não
deparei com um único dia que não fosse de sol.
Enquanto estava pelo sertão afora, tinha um assistente
em São Paulo, Carlos Andreazza, que ia me acompanhando
por telefone e cuidando da burocracia para que eu chegasse
nas igrejas ou nos monumentos e encontrasse todas as portas
abertas.”
Paulistano,
58 anos, Mascaro tem muitos projetos. “Estou fotografando
os centros históricos do Brasil para o Programa Monumenta”,
afirma. “Tenho sempre a impressão de que as 24
horas do dia não bastam. Parece que estou perdendo
tempo diante das imagens que pretendo buscar.”
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Mascaro:
histórias gravadas
nas lentes e na memória |
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