O
ponteiro mal havia concluído sua primeira volta,
anunciando o começo do dia 20, quando a figura engravatada
e grave do presidente americano George W. Bush surgiu na tela da
TV para informar aquilo que todos sabiam que iria acontecer mas
poucos aceitavam: o início dos ataques americanos ao Iraque.
À meia-noite e um (no horário de Brasília)
da última quinta-feira, Bush – que poucos minutos antes
havia sido flagrado por câmeras indiscretamente abertas tendo
os cabelos penteados e borrifados de laquê quando se preparava
para seu pronunciamento – avisou ao mundo que cerca de meia
hora antes Bagdá começara a ser bombardeada. Mas
o primeiro tiro saiu pela culatra. O bombardeio “cirúrgico”
a um prédio na capital iraquiana, onde a CIA acreditava que
Saddam Hussein estava escondido, mostrou que os agentes americanos
se equivocaram. O alvo não estava lá. Mas aqueles
foram apenas os primeiros disparos de muitos que estavam por vir.
Afinal, George W. Bush, em seu pronunciamento bem-penteado, avisou
que a guerra poderia ser “mais longa” do que o inicialmente
previsto. O mundo que se prepare.
“Essa
guerra poderá ser longa porque os Estados Unidos usarão
a estratégia da ‘espiral invertida’, ou seja,
cercar paulatinamente, sem causar danos, até chegar a Saddam
Hussein”, afirma Braz José de Araujo, professor da
FFLCH e coordenador do Núcleo de Análise Interdisciplinar
de Políticas e Estratégia, o Naippe. Para ele, uma
guerra “longa” levaria cerca de três meses, o
que afetaria a vida de todos ao redor do globo. “Ao alongar
o período de conflito, a ação americana causará
impactos econômicos em todo o mundo. As estratégias
e planos do governo brasileiro terão de ser revistos. Haverá
reflexos da guerra nas áreas de transportes internacionais,
seguros e exportação”, acredita.
Se
a ação americana já era dada como certa, a
reação mundial – pelo menos daquela enorme parcela
do planeta que repudia a guerra como meio de solucionar querelas
– foi igualmente a esperada. “Uma ação
militar não pode de forma alguma ser justificável.
A ação militar é um grande erro político”,
disparou, do Kremlin, o presidente russo Vladimir Putin. “Nós
esperamos que esta operação seja rápida, termine
o mais rápido possível, cause o menor número
de vítimas e não cause uma catástrofe humanitária”,
arrematou o francês Jacques Chirac, o grande antagonista de
Bush à invasão do Iraque, aparentemente conformado
com o ataque que ele tanto tentou evitar.
No
Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi incisivo,
tanto no rápido pronunciamento que fez por rede nacional
no início da tarde da mesma quinta-feira, dia 20, quanto
na nota oficial que o Planalto distribuiu. “O governo brasileiro
lamenta profundamente o início das operações
militares em território iraquiano e que não se tenha
perseverado na busca de uma solução pacífica
para o desarmamento do Iraque, no marco da Carta das Nações
Unidas e das resoluções do Conselho de Segurança”,
diz um trecho do comunicado de Lula. Longe dos gabinetes refrigerados
dos dirigentes mundiais, porém, a resposta ao ataque americano
foi menos diplomática e mais explícita. Uma onda de
protestos pacifistas começou a se espalhar pela Europa e
pelo Oriente Médio na própria quinta, logo depois
que as primeiras bombas atingiram Bagdá e pouco antes de
as tropas americanas sediadas no Kuwait começarem a agir
na fronteira com o Iraque. Na Austrália, por exemplo, cerca
de 40 mil pessoas tomaram as ruas de Melbourne, a segunda maior
cidade do país, para dizer “não” à
guerra. Em Roma e Milão, na Itália, manifestantes
fizeram passeatas e em Atenas, na Grécia, cerca de 10 mil
pessoas reuniram-se para marchar até a embaixada americana.
O maior
protesto europeu, contudo, aconteceu justamente na casa de um aliado
de primeira hora de Bush, a Inglaterra. O primeiro-ministro Tony
Blair, que ao longo da semana passada viu seu staff minguar com
as demissões de quase uma dezena de ministros, teve que engolir
outra derrota – a das ruas. Ativistas britânicos bloquearam
as principais vias de Londres e convocaram a população
a faltar ao trabalho e às aulas para se manifestar contra
a guerra. Foram prontamente atendidos.
Em
nome de Deus, não
– É difícil ser a favor do ataque americano
ao Iraque, mesmo se sabendo que Saddam Hussein é um líder
sangüinário e que tem se mantido no poder às
custas do terror que inoculou em seu povo. Mas a questão
é ética e moral e não é só porque
acredita-se que o demônio esteja escondido sob um cafetã
e uma gutra árabes que se vai salpicar de bombas um país
inteiro. A situação chegou a tal ponto que o papa
João Paulo II esqueceu que está alquebrado por uma
série de doenças que lhe minou a saúde e fez
um vigoroso pronunciamento na Praça de São Pedro,
exigindo que George W. Bush deixasse de evocar o nome de Deus quando
tratasse de seus assuntos belicistas. A guerra contra o Iraque pode
ser santa para Bush. Para o papa, que entende mais do assunto, não.
“Quaisquer
que sejam as razões geopolíticas e econômicas,
é uma insânia, um retrocesso político e civilizatório
sem precedentes. Há um descompasso tão grande entre
os motivos alegados e o ato que não há o que se comentar”,
afirma o cientista político Gabriel Cohn, da FFLCH. Para
ele, o que os Estados Unidos estão inaugurando não
é uma nova era de “segurança” mundial,
como apregoa o presidente americano, mas algo diametralmente oposto.
“Nada justifica essa modalidade cruel de atacar um povo indefeso,
que mal está recuperado da guerra anterior. Os Estados Unidos
fizeram exigências impossíveis de serem cumpridas e
não aceitaram sequer a possibilidade do cumprimento dessas
exigências. Trata-se de uma figura nova nas relações
internacionais: a tortura internacional.”
O “retrocesso
político” ao qual Cohn se refere já fez pelo
menos uma vítima conhecida: a Organização das
Nações Unidas, o órgão criado logo após
a Segunda Guerra Mundial para substituir a sorumbática e
ineficaz Liga das Nações. Emparedada pelos Estados
Unidos, que desistiram de uma ação diplomática
da ONU quando perceberam que sua proposta de ataque não teria
os votos necessários, será que a instituição,
com sede em Nova York, vai ser obrigada a se repensar? “A
ONU não sai necessariamente enfraquecida, os americanos é
que saem deslegitimados. Eles estão fazendo uma intervenção
brutal em outro país passando por cima da comunidade internacional.
A ONU sempre foi estruturalmente fraca, por causa da montagem internacional
e também devido à sua completa dependência econômica
dos Estados Unidos. Mas pode ser que haja mudanças”,
afirma Cohn. “Eu veria com prazer a retirada da ONU do território
americano e sua instalação na Europa. A ONU tem que
ser reformulada, porque é um organismo extremamente vulnerável”,
acredita.
Cicatrizes
permanentes
– Todo o rebuliço bélico que tomou conta das
areias do Iraque não é, contudo, o suficiente para
intimidar pelo menos uma pessoa, que tem relações
com a guerra bem diferentes daquelas de Bush e Saddam. O jornalista
William Waak, da Rede Globo, cobriu a primeira guerra do Golfo em
1991 pelo jornal O Estado de S. Paulo, foi preso – em companhia
do então fotógrafo Hélio Campos Mello, hoje
diretor de redação da IstoÉ – e escreveu
um livro que lhe valeu o Prêmio Esso de Jornalismo daquele
ano, Mr. You Bagdad. Waak adoraria cobrir mais esta guerra do Golfo,
mas dessa vez não foi escalado. Diferentemente do que afirmou
George W. Bush, o jornalista acredita que o conflito será
curto, coisa de “uns 20 dias”. “Há quatro
diferenças principais. A primeira é que, em 1991,
os Estados Unidos bombardearam alvos estratégicos iraquianos
por 43 dias e só depois movimentaram as tropas terrestres.
Dessa vez, ocorre a combinação clássica de
ataques simultâneos por terra, mar e ar. As outras diferenças
são a motivação: há 12 anos, tratava-se
de libertar o Kuwait e expulsar as tropas iraquianas – o que
foi feito em cem dias. Hoje é para derrubar Saddam Hussein.
Finalmente, há o fator tempo: os aliados estão impacientes
e pretendem uma vitória ampla e rápida, para que saiam
como heróis e não haja muitas baixas”, acredita
o jornalista, que é formado pela ECA. Segundo
ele, o presidente Bush não está querendo isolar seu
país do resto do mundo. “Os americanos podem vencer
a guerra sozinhos, mas a paz se dará em conjunto. Haverá
consenso, embora as cicatrizes permaneçam por muito tempo.”
É
exatamente a possibilidade de cicatrizes que vem assustando os israelenses,
principais rivais do mundo árabe e alvo preferencial de Saddam
caso o ditador iraquiano decida acender o rastilho de pólvora
no Oriente Médio. Em 1991, Israel foi atacada por mísseis
Scud do Iraque. Dessa vez, o temor é pelo uso de armas químicas
e biológicas – aquelas que o ditador jura não
possuir, os enviados da ONU não encontraram e Bush e Blair
garantem estarem estocadas em quantidade industrial em algum ponto
do Iraque. O temor maior é quanto a bombas que disseminem
a varíola e a peste bubônica. “O governo israelense
preferiu não fazer imunização porque seria
muito arriscado, já que a reação à vacina
é tão violenta que pode até matar. No caso
de ataque, o governo disse que fará quarentena e dará
antibióticos às pessoas”, afirmou ao Jornal
da USP a brasileira Lilian Rubinsky Shemesh, que vive nas redondezas
de Jerusalém. O medo do ataque químico obrigou a população
israelense a estar sempre com uma máscara de gás a
tiracolo e a manter em casa sempre um quarto preparado com mantimentos
e janelas vedadas, para impedir a penetração de gases
letais, como o gás nervoso. Para
a brasileira, que é mãe de três filhos pequenos
e é formada em Serviço Social nos Estados Unidos,
a questão é muito mais ampla do que a simples existência
de Saddam Hussein. “Essa guerra não vai resolver nada.
O meu dia-a-dia aqui já é uma guerra, sempre temendo
ataques suicidas de palestinos”, conta, ressaltando que evita
ir a teatros, cinemas e restaurantes por não se sentir segura.
“É muito difícil viver assim. Isso diminui a
capacidade do ser humano de desfrutar da vida, de fazer qualquer
outra coisa a não ser se prevenir.”
Bagdá
sob bombardeio: a meta é Saddam |
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