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Como pode uma pessoa debruçar-se durante três, quatro ou mais anos sobre um minúsculo organismo do mar, anotar dia a dia o seu comportamento, hábitos alimentares e reprodutivos, anestesiá-lo, sacrificá-lo, executar microoperações com instrumental mais delicado ainda, fixá-lo em lâminas e prepará-lo para o depósito em museu? A perguntas desse tipo os pesquisadores do Centro de Biologia Marinha da USP em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, já estão mais que acostumados e parece que são eles que não entendem como os simples curiosos não percebem o prazer da pesquisa. Descobrir uma espécie de vida ainda não descrita, acompanhar a reprodução de um animal hermafrodita, explicar por que aquele verme tem o ânus um pouco abaixo da boca e não na outra extremidade, observar microscópicos filhotes nadando no interior da transparente mãe holotúria (animal relacionado com a estrela-do-mar), observar que uma hipótese levantada no início do projeto está se confirmando deve ser uma satisfação comparável à que sente um jogador de futebol ao dar um bom drible ou marcar um gol olímpico. Os jovens biólogos do Cebimar têm consciência de que seu trabalho consiste no estudo de organismos marinhos, no levantamento da biodiversidade marinha, e que estão abrindo caminho para outros pesquisadores, quando ao interesse acadêmico poderão se acrescentar objetivos práticos, tais como a exploração comercial de peixes ornamentais, o aperfeiçoamento da pesca e melhor preservação ambiental.

O Cebimar, um dos seis institutos especializados da USP — os outros são o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE), Instituto de Estudos Avançados (IEA), Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e Instituto de Medicina Tropical (IMT) —, com 35 mil metros quadrados de área, uma parte de mata atlântica preservada, tem infra-estrutura para receber até 48 pesquisadores, alunos e estagiários. Eles procedem de outras unidades da USP, especialmente do Instituto de Biociências, mas também dos campi do interior e, ainda, da Unicamp, Unesp, de Institutos de Pesquisa do Estado de São Paulo e de universidades de outros Estados. São, na maioria, alunos da graduação em final de curso ou pós-graduandos. Nem todos se hospedam no Cebimar; alguns moram ou passam temporadas com a família na cidade. Dependendo do projeto, podem passar anos, semanas ou dias, geralmente num contínuo vaivém entre São Sebastião e as cidades de origem.

Estância de trabalho — Engana-se quem pensa que o centro é uma estância de lazer. É verdade que lá está a tranqüila praia do Cabelo Gordo — assim chamada porque antigamente os índios que ocupavam aquele sítio arqueológico passavam gordura de peixe nos cabelos antes de entrar na água —, de uso quase restrito da USP, não porque não haja acesso a qualquer pessoa pelos costões, mas porque os banhistas respeitam aquele local de pesquisa. Mal clareia o dia, lá estão os alunos movimentando os barcos e zarpando para o mar, armados de sacos de coleta, redes, às vezes material completo de mergulho, cada qual em busca de seu material de estudo. Na volta, é rebocar o barco, lavá-lo, triar o material recolhido e se fechar nos laboratórios, entre tanques, microscópios, vidros de todos os tipos e tamanhos, formulários, arquivos e armários.

“O Cebimar é o negativo da USP”, diz o professor Cláudio Tiago, diretor de Ensino e Pesquisa, explicando por que nas férias os jovens pesquisadores estão mais ativos. Eles precisam compatibilizar horários, aproveitar o recesso escolar para adiantar os projetos. O curso regular na Universidade prevê tempo para a pesquisa de campo, “mas não previu que o mar está longe, não se desloca e que o aluno é que deve ir até ele”. Os prazos para conclusão do doutoramento também estão ficando cada vez mais curtos, obrigando o aluno a trabalhar mais intensivamente. Embora a maioria dos projetos tenha algum tipo de financiamento, da Fapesp, Capes ou CNPq, há alguns jovens pesquisadores que precisam trabalhar para pagar as despesas de hospedagem, alimentação e uso de equipamentos.
Na USP, o mar não é objeto de estudo só do Cebimar; o Instituto Oceanográfico é uma unidade inteira dedicada a esse campo de trabalho. Qual a diferença? O horizonte de pesquisa do IO é o oceano, o alto-mar e até o potencial da Antártida; ao Cebimar cabe estudar os organismos, sua biologia básica e história natural, levantar a vida marinha próxima da praia, dos costões e dos fundos litorâneos. A diferença se manifesta também nos meios utilizados na exploração: navios oceanográficos de maior calado no instituto e embarcações a remo ou motor de popa no centro.

Além de pesquisas próprias, o Cebimar participa em um projeto temático do Programa Biota, da Fapesp, que há quatro anos faz o levantamento da biodiversidade no Estado de São Paulo, abrangendo a fauna e a flora e envolvendo a maior parte das instituições públicas paulistas de ensino e pesquisa. Praticamente cada unidade da USP participa de um projeto nesse programa, que resultará na catalogação das espécies, prospecção bioquímica de compostos de origem biológica e a deposição no museu de cada exemplar analisado. Só assim estará construída a base para pesquisas futuras. Ao Cebimar coube preparar o levantamento dos invertebrados marinhos. Um primeiro livro já foi publicado, na coleção de sete que a Coordenação Biota-Fapesp encomendou aos pesquisadores envolvidos no programa. Chama-se Biodiversidade do Estado de São Paulo, Brasil — 3, Invertebrados Marinhos, tendo como editores Alvaro Esteves Migotto e Cláudio Gonçalves Tiago. Assunto para pesquisa é que não falta no Cebimar: dos 44 grupos de invertebrados marinhos, 10 nunca foram registrados no Brasil e em cada projeto em andamento encontram-se novidades. O Programa Biota/Fapesp listará o já conhecido e o novo.

O trabalho de pesquisa não se esgota nunca. Os levantamentos precisam ser cíclicos, porque as condições de vida no mar se alteram com o tempo e a situação de um ambiente descrita em determinado momento pode não corresponder à realidade posterior. Por exemplo, uma espécie pode ter invadido um ambiente e prejudicado as que lá viviam ou, até, eliminado alguma. Esta é mais uma razão para se manter nos museus as amostras estudadas. As exigências mundiais em relação às pesquisas também se sofisticam cada vez mais, acompanhando o progresso da tecnologia. No Programa Biota/Fapesp, para que possam ser incluídas no banco de dados da localização das espécies existentes no Estado de São Paulo, é preciso que cada amostra esteja rigorosamente situada geograficamente. Para isso utiliza-se o GPS, instrumento que determina as coordenadas com auxílio dos satélites artificiais que orbitam a Terra. Nenhum cientista sai a campo sem ele para escolher a estação de coleta. No tempo de Charles Darwin não era assim e amostras coletadas em qualquer ponto do litoral brasileiro podiam ser identificadas tendo a localidade “Rio de Janeiro” como o local de coleta. Aliás, como observa brincando Cláudio Tiago, se vivesse hoje Darwin também não conseguiria recursos de agências financiadoras, porque não tinha um projeto de pesquisa estruturado como os atuais. Apesar de ser um bom ponto de partida, uma idéia na cabeça e um microscópio na mão não é mais o suficiente para a obtenção dos recursos necessários.

Novos doutores — O Cebimar tem estrutura para desenvolver projetos compatíveis com as finalidades para as quais foi criado — a construção em 1993 e em 2000 de edifícios para laboratórios ampliou esse potencial —, mas, lamentavelmente, o centro tem suas limitações, explica o diretor de Pesquisa. “O Cebimar só pode ceder o espaço, o equipamento específico tem que ser adquirido através de recursos obtidos pelo projeto do pesquisador.” Cláudio Tiago acrescenta que o Conselho Deliberativo do Cebimar definiu recentemente um roteiro para os interessados em desenvolver seus projetos na instituição.

Para quem se candidatar, não faltará literatura para consulta. A biblioteca tem 2.330 livros, 540 teses, 5 mil periódicos e 7 mil separatas. Nas coleções doadas por antigos professores como Erasmo Garcia Mendes e Antonio Sérgio Ferreira Ditadi, há raridades. A biblioteca possui sistema de empréstimo e é franqueada ao público em geral, como todas da USP.

Atualmente o acervo conta, inclusive, com bibliografia sobre a própria instituição, pois uma nova obra acaba de ser acrescida ao acervo. Nesta é contada, através de textos e farta documentação iconográfica, a história dos 40 anos de incorporação do Cebimar à USP e foi organizada pelos pesquisadores Alvaro Esteves Migotto, Sérgio de Almeida Rodrigues e Virgínia Castilho (bibliotecária).

Os pesquisadores — O Cebimar é uma instituição quase cinqüentenária. Começou como Fundação Instituto de Biologia Marinha (IBM) em 1955, instalando-se em terreno adquirido por alguns professores. Antes disso, os trabalhos em biologia marinha eram feitos durante estadias na Ilha das Palmas, Itanhaém, Peruíbe, Bertioga, Ilhabela e São Sebastião. Em 1962, o IBM foi oficialmente transferido para a Universidade e em 1980 transformou-se em centro interunidades com o nome de Centro de Biologia Marinha - Cebimar. Dez anos depois, ganhou status de instituto especializado.

Após a criação, em 1981, de um grupo estável de trabalho, o centro conseguiu montar dois modernos edifícios de laboratórios, graças a recursos do Bid (Banco Interamericano de Desenvolvimento), em 1993, e, depois, da Fapesp, em 2000. Os equipamentos são os básicos, não havendo, segundo o diretor de Pesquisa, necessidade de adquirir alguns de alta tecnologia, mas de uso restrito. Se um projeto exigir, por exemplo, o uso de microscópio de varredura ou de seqüenciador de DNA, os estudos serão realizados em colaboração com outras instituições especializadas da Universidade. É mais prático e a colaboração de um especialista de outra área torna os dados do projeto mais confiáveis.

Segundo Cláudio Tiago, o nível dos alunos que freqüentam o Cebimar é alto e eles trabalham muito. Há casos de pesquisas que necessitam de acompanhamento ininterrupto, obrigando o pesquisador a passar noites, sábados e domingos ao lado dos experimentos ou no mar.

Atualmente, quatro docentes estão lotados no Cebimar, pesquisando e orientando os alunos. São eles Eleonora Trajano (diretora, professora do IB), Alvaro Esteves Migotto (vice-diretor), Cláudio Gonçalves Tiago (diretor de Ensino e Pesquisa) e Valéria Flora Hadel.

 




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