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No dia 30 de março passado, foi instalada na Câmara dos Deputados, em Brasília, a Comissão Especial da Reforma do Poder Judiciário. Desde então, a Câmara vem debatendo alternativas na busca de soluções para problemas administrativos e estruturais que afetam a justiça brasileira. A USP, através das mídias mantidas pela Coordenadoria de Comunicação Social (CCS), tem colaborado para que o assunto seja discutido pela sociedade. A Rádio USP FM (93,7 MHz), por exemplo, apresentou no dia 16 de maio uma edição do programa “USP Debate” inteiramente dedicada ao tema. Participaram do encontro o secretário especial para a Reforma do Poder Judiciário do Ministério da Justiça, Sérgio Renault, o professor da Faculdade de Direito da USP Dalmo de Abreu Dallari, o vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Heraldo de Oliveira Silva, e o segundo vice-presidente da Associação Paulista dos Magistrados, Ademir de Carvalho Benedito. A seguir, trechos do debate entre esses especialistas, que foi mediado pelo jornalista Milton Parron, apresentador do “USP Debate”. O programa foi produzido por Alaíde Rodrigues.

Rádio USP – O Judiciário precisa de reforma?

Sérgio Renault – Provavelmente toda a população brasileira reconhece a necessidade de se ter uma reforma do Poder Judiciário. A verdade é que o Poder Judiciário não atende aos interesses da população. A justiça é muito lenta, demorada, ineficiente. Todos somos capazes de citar uma situação em que um amigo ou um parente teve que recorrer à justica e não obteve o cumprimento do seu direito na rapidez desejada. Queremos discutir com a sociedade a amplitude dessa reforma.

Dalmo de Abreu Dallari
– A rigor, todo o setor público precisa de reforma. Estamos trabalhando com padrões estabelecidos no século 18. Nesse sentido, o Poder Judiciário foi o que menos se transformou, talvez pela sua própria natureza. O Judiciário é concebido como o Poder que tem por responsabilidade a manutenção das leis, e isso em princípio sugere uma atitude conservadora, contra as mudanças. No Brasil, a necessidade de reforma do Judiciário se tornou mais aguda depois da Constituição de 1988. O Judiciário ficou mais sobrecarregado do que nunca. As possibilidades de defesa de direitos foram ampliadas e a criação de associações estimulou a divulgação dos direitos. Além disso, com o aumento do número de faculdades de direito, há mais advogados disponíveis. A conseqüência é uma enxurrada de casos chegando diariamente ao Judiciário. E ele precisa então ser repensado para atender a essa nova situação.

Heraldo de Oliveira Silva – Há a necessidade de uma modernização do Poder Judiciário. O nosso grande problema é a parte administrativa. É preciso modernizar os cartórios, porque eles têm esse formato de funcionamento há, no mínimo, cem anos. Isso faz com que os processos tenham um desenvolvimento mais lento. Mas há também necessidade de investimentos financeiros e vontade política para que isso se resolva.

Ademir de Carvalho Benedito – Talvez não se deva usar a palavra “reforma” do Judiciário, mas sim “modernização”, “ajuste”, no sentido de proporcionar uma justiça mais ágil e mais rápida. Quando se fala em Judiciário, acho que devemos pensar mais em justiça, efetivamente. E eu penso que, além dos ajustes dentro do Poder Judiciário, temos hoje uma necessidade de reforma da legislação processual, que é muito antiquada e já não serve mais a esses propósitos. Tanto os advogados como os juízes estão atrelados a leis que impedem o julgamento rápido e ágil.

Rádio USP – O Ministério da Justiça tem uma proposta de reforma ou modernização do Judiciário?

Renault – O Ministério da Justiça e a Secretaria de Reforma do Judiciário pretendem fazer todos os esforços para modernizar o Poder Judiciário. Nós entendemos que um dos grandes problemas do Judiciário é que ele não incorpora em sua administração os meios de modernização que já são utilizados por outros setores no País, na atividade privada e mesmo no setor público. Por exemplo, a informatização, que é fundamental para agilizar os procedimentos judiciais. Na verdade, muitas vezes ela é utilizada de maneira inadequada no Poder Judiciário. Às vezes um computador serve como máquina de escrever. Entendemos que o processo de modernização do Poder Judiciário é fundamental, é nossa prioridade.

Rádio USP – Os senhores são favoráveis a um controle externo do Poder Judiciário?

Benedito – A magistratura, de forma geral, e a Associação Paulista de Magistrados, em particular, se opõem ao controle externo, mesmo porque até agora ninguém conseguiu explicar detalhadamente o que se denomina controle externo. Às vezes se imagina que não seja propriamente um controle, mas, de qualquer forma, dentro do sistema democrático não cabe o controle do Poder Judiciário da forma como vem sendo apregoado. A atividade do Judiciário já é suficientemente controlada, por exemplo, através da participação dos advogados nas decisões. Nenhuma decisão judicial pode ser proferida sem a devida fundamentação e há possibilidade de inúmeros recursos. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) participa da escolha dos juízes e da realização de concursos. O Ministério Público fiscaliza constantemente a aplicação da lei nos diversos processos judiciais. Do ponto de vista financeiro, os tribunais prestam contas aos Tribunais de Contas dos Estados, que podem impugnar e corrigir eventuais equívocos e desvios. Entendo que o controle externo vai contra o sistema democrático. Se queremos uma democracia, ela tem de ser uma democracia na sua essência. Nela, o controle é feito automaticamente entre os três Poderes. O controle externo do Judiciário é o controle da lei.

Renault – Essa é a grande polêmica que existe em torno da discussão da reforma do Poder Judiciário. O posicionamento do governo é que devemos ampliar essa discussão e levá-la para todos os agentes que atuam no Poder Judiciário – magistrados, advogados, Ministério Público – e para o conjunto da sociedade. Eu não concordo com o doutor Ademir Benedito. Entendo que devemos caminhar no sentido de criar algum órgão de controle. O problema é essa denominação, “controle externo”. É inadequada. Eu preferiria usar outra denominação, como “controle democrático” ou “controle social”, por exemplo. É diferente, porque, nesse órgão, não estamos excluindo a participação dos magistrados.

Rádio USP – As corregedorias não exercem essa função?
Renault – Não. É diferente. As corregedorias têm uma atuação limitada. A nossa expectativa é que esse órgão venha a ser criado para ter um tipo de controle e fiscalização das atividades administrativas e financeiras do Poder Judiciário. Por exemplo, não se sabe exatamente qual a destinação das custas judiciais. Isso é só um exemplo para mostrar que o funcionamento do Poder Judiciário é desconhecido da maior parte da sociedade. Deve haver controle para tornar o funcionamento do Poder Judiciário no País mais transparente. Não pretendemos criar – aí é que está o equívoco – nenhum tipo de controle da atividade judicante dos juízes. Não se trata disso. O juiz é independente nas suas decisões. O Poder Judiciário tem que manter sua autonomia. Esse é um princípio basilar da separação dos Poderes. Não está em discussão. Agora, uma coisa é a independência do Poder Judiciário, outra coisa é o Poder ter uma atuação que não é passível de conhecimendo pela população.

Oliveira Silva – O Poder Judiciário elabora um orçamento que é submetido ao Poder Executivo. Este mexe, faz alguns vetos e depois encaminha para o Poder Legislativo, que aprecia, aprova ou rejeita alguns gastos. Feito isso, o Poder Judiciário só pode gastar o que ficou determinado. Depois, os gastos ainda são submetidos a outro controle, que é o do Tribunal de Contas. Ou seja, no que se refere às finanças, o Poder Judiciário já é controlado. No que se refere a um controle externo, se se trata de punir juízes que não agem corretamente, as corregedorias têm agido nesse sentido. Exemplo disso ocorreu recentemente, quando a Corregedoria do Superior Tribunal de Justiça suspendeu um ministro. O que acontece é que, numa ação, sempre tem uma parte que perde. Como ninguém gosta de perder, a parte derrotada diz que o juiz se vendeu. Se há uma irregularidade, é simples: basta ir à corregedoria, que vai apurar o ocorrido. Isso tem acontecido.

Dallari – Também sou contra a expressão “controle externo”. Dá a impressão de que alguém vem de fora se imiscuir no Judiciário. Na verdade, é o controle de um órgão do qual participem também os magistrados, mas não só eles. Tenho muita reserva à idéia de autocontrole. Com freqüência, autocontrole é nenhum controle ou controle com muito favorecimento. Agora, quanto às corregedorias, no meu livro O poder do juiz, cito um caso em que um desembargador escandalosamente tomou uma decisão para favorecer um político. Ele tomou a decisão na sexta-feira – um despacho de interesse político-partidário – e no mesmo dia o diretório desse político distribuiu cópias do despacho aos jornais. Fui verificar e descobri que os autos estavam na casa do juiz e só foram devolvidos na segunda-feira. Como o diretório tinha a cópia da decisão? Estava escancarado o favorecimento. Pois bem. Fui falar ao corregedor e ele me disse que não tinha competência para agir sobre desembargadores, só sobre juízes de primeiro grau. E isso é praticamente uma norma nos Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros. A corregedoria não tem competência sobre o desembargador. Onde está a corregedoria então?

Rádio USP – Os ministros que integram o Supremo Tribunal Federal, máxima corte do Poder Judiciário, são indicados pelo chefe de outro Poder, o Executivo. Essa é a forma mais correta do preenchimento desses cargos?

Oliveira Silva – O Brasil é uma democracia e, nela, há um equilíbrio entre os três Poderes. A Suprema Corte é uma corte política e tem o poder de cassar leis feitas pelo Poder Legislativo e decisões do Poder Executivo, como medidas provisórias. Entendo que a escolha feita pelo presidente da República, depois aprovada pelo Legislativo, é uma forma de conseguir o equilíbrio político desses tribunais. Pelo menos o ingresso nessa corte passou pelo crivo dos demais Poderes. Agora, se é a melhor forma ou não, é uma questão delicada. Eventualmente se poderia fazer uma lista tripla ou sêxtupla, para que o presidente escolhesse um dos nomes, que depois iria para o Senado. Eu acredito que o ministro, depois que assume a Suprema Corte, passa a ser um juiz e, como juiz, ele vai julgar independentemente de quem quer que sejam o autor e o réu das ações. Ele vai se travestir do Poder Judiciário e assim ele vai agir. Não tem que se sentir melindrado ou receoso de julgar quem o escolheu. O cargo dele é vitalício, ele tem a segurança da irredutibilidade de vencimentos. Nada vai afetar a sua vida. Acredito que será um magistrado como outros tantos.

Dallari – Oliveira Silva coloca a posição correta do ponto de vista teórico, ideal. Só que nós temos uma experiência que mostra que nem sempre isso acontece assim. Eu lembro, por exemplo, o comportamento do ministro Nelson Jobim. Ele foi ministro da Justica de Fernando Henrique Cardoso. Depois, indicado para o Supremo Tribunal, passou a julgar inclusive atos que ele próprio havia praticado no Ministério da Justiça. E Jobim é conhecido, como líder do governo no Senado, exatamente pelo seu comportamento parcial a favor do governo. Então o ideal seria esse, o juiz se comportar como juiz, mas...

Renault – O Poder Judiciário tem uma estrutura muito verticalizada e pouco transparente. Entendemos que é necessário arejar e democratizar o processo de escolha das cúpulas dos dirigentes do Judiciário. Deveriam se promover mais consultas à comunidade jurídica. Os processos de escolha são muito fechados. Um processo mais aberto e democrático permitiria uma maior participação dos outros agentes que atuam no Poder Judiciário e que não têm voz, o que é fundamental para o próprio funcionamento da justiça.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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