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Em seminário realizado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, no dia 2 de junho, sobre “Educação como serviço – Impactos sobre a universidade”, a USP demonstrou sua preocupação com o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (Gats), negociado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), que quer transformar a educação num item de serviços a ser negociado como mercadoria. No evento, o representante brasileiro na OMC, Luiz Olavo Batista – que não pôde comparecer ao seminário, como estava previsto –, proferiu uma palestra em vídeo.

A proposta da OMC visa à aprovação de uma política de liberalização progressiva do comércio de serviços para os Estados dela signatários. A lista de itens é extensa, mas o que mais tem causado preocupação é o quesito “educação de nível superior”. Ele diz respeito à política de subvenção dos governos nacionais no setor e às alíquotas fixadas para os impostos cobrados sobre a remessa de lucros.

As negociações no Gats prevêem a obtenção de concessões no que se refere à melhoria de acesso aos mercados, através da expansão de compromissos e da redução de barreiras. Isso significa “liberdade na remessa de recursos, diminuição das alíquotas para facilitar as remessas de dividendos, não-aceitação de subsídios e subvenções e lucratividade do setor”, explicou no seminário o professor da FEA Celso Cláudio Hidebrand e Grisi, coordenador de uma comissão formada pelo Conselho de Cultura e Extensão Universitária exclusivamente para discutir o assunto.

O debate na FEA: prós e contras do ensino-mercadoria

Estado necessário – Na sua palestra em vídeo, Olavo Batista disse que os países não são obrigados a liberar os serviços na área de educação quando esta se refere a uma função essencial do Estado. “Resta saber se o ensino é uma função essencial do Estado e que função é essa. Pode ser ensino fundamental, médio, técnico, universitário, pós-universitário ou relacionado à formação profissional. No caso da formação profissional, a liberalização já vem ocorrendo há tempos. Quando eu era jovem, já se vendiam cursos técnicos de rádio e TV pelo correio e o certificado era americano.”

A penetração internacional no campo educacional é um problema que deverá, cedo ou tarde, ser enfrentado pelo Brasil, lembrou Olavo Batista. A dificuldade, segundo ele, é que as universidades brasileiras vão sofrer uma grande concorrência pelo fato de essas entidades internacionais serem mais ágeis e terem uma organização mais efetiva. “O grande problema da USP, por exemplo, é o peso da burocracia, que foi criada pela própria Universidade por causa da camisa de força representada pelas regras dos tribunais de contas e licitações públicas, que acabam por engessar as atividades.”

Uma das propostas do Gats é a livre circulação de pessoas. Elas poderão circular livremente para prestar serviços – o que quer dizer que um professor estrangeiro no Brasil automaticamente receberá visto para dar suas aulas. “Se for aprovada uma regra como essa, poderemos, um dia, encontrar todo o staff de uma universidade indiana dando cursos no Brasil”, disse Olavo Batista.

Também presente no seminário, o coordenador-geral de Cooperação Internacional da Capes, Estevão Chaves de Rezende Martins, defendeu a idéia de que a educação no Brasil é um bem comum. Em conseqüência disso, ela tem um intrínseco direito de ação com o Estado. “O processo educacional como um todo, não importa quem o opera, é um bem público submetido ao direito de supervisão pelo Estado em nome do interesse coletivo, na medida em que o Estado é o responsável por garantir a defesa do interesse coletivo no processo de formação.” Para Martins, “o Estado não é nem mínimo nem invasivo, mas o Estado necessário. Ele não abdica de regulação nem do controle de qualidade, que vai do primário à livre-docência”.

Batista faz palestra: “País tem que discutir o tema”

O que está em jogo, disse no seminário a secretária-geral da USP, Nina Ranieri, é a formação da pessoa nos diversos perfis profissionais. “Precisamos pensar a educação relativa à soberania, à identidade nacional e aos direitos fundamentais. O problema da legislação brasileira é a preservação desses três aspectos sem a perda da internacionalização do saber, que, sem dúvida, seria um retrocesso político, institucional e jurídico.”

O seminário na FEA deu início ao debate – promovido pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP – para a elaboração de uma proposta brasileira consistente. Estavam presentes o pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária, professor Adilson Avansi de Abreu, e a diretora da FEA, professora Maria Tereza Leme Fleury. A intenção da Pró-Reitoria é que todas as unidades da USP participem desse debate, organizando palestras e seminários.

 

Documento aponta vantagens e desvantagens

O relatório sobre educação no Gats produzido pela comissão do Conselho de Cultura e Extensão Universitária da USP é um bem detalhado documento sobre a questão da transformação do ensino como item de serviço. Segundo esse relatório – finalizado no dia 5 de maio passado –, no contexto imposto pelo Gats as maiores barreiras à liberalização dos serviços educacionais estarão associadas à necessidade de vistos para estrangeiros, restrições da legislação trabalhista, dificuldades impostas às remessas de divisas, reconhecimento do grau ou diploma, limitações no estabelecimento de convênios, restrições de uso ou de importação de material educacional e falta de transparência nas regulamentações domésticas.

O relatório mostra que as entidades representativas de docentes têm recebido a proposta com repúdio generalizado. Da mesma forma, uma parcela considerável da comunidade acadêmica internacional tem reforçado a decisão de manter a educação como um direito
e um bem público.

No Brasil, o Ministério da Educação tem se mantido mais como um observador, aponta o relatório. Para o Ministério, o País não apresenta restrições a que estrangeiros implementem instituições de ensino, associem-se a entidades nacionais ou ofereçam cursos a distância. Todos os cursos devem receber permissão do órgão para funcionar, obedecer à Lei de Diretrizes e Bases da Educação e sujeitar-se às avaliações pelos sistemas existentes no País. Por isso, o MEC entende que não há discriminação das entidades internacionais. Ou seja, o Brasil já cumpre as regras do Gats.

Citando uma entrevista do professor aposentado da USP Simon Schwartzman – concedida ao jornal Folha de S. Paulo em março passado –, o relatório destaca que na indústria do conhecimento a educação transformada em negócio é uma tendência mundial. “Isso pode ser bom ou ruim. A educação é um produto como outro qualquer. Cabe ao usuário avaliar o que está comprando. A demanda pelo ensino superior é crescente e não há problemas de existir uma oferta desses serviços realizada pela iniciativa privada”, disse Schwartzman na entrevista.

O relatório cita também a opinião do o ex-ministro Celso Lafer. Para ele, “não se questiona o direito de os países proverem serviços educacionais públicos e não parece, até o momento, haver o desejo específico, entre os membros da OMC, de liberalizar os serviços de educação básica ou secundária. As resoluções da OMC, nesse sentido, visariam apenas a regulamentar uma situação de fato, ou seja, a crescente participação privada na educação superior”.

Outro depoimento sobre o assunto presente no relatório é do filósofo e professor do Centro Brasileiro de Pesquisa (Cebrap) José Arthur Gianotti, que considera “ingênuas” as reações de indignação às propostas da OMC. “O escândalo é fora de propósito porque o ensino foi mercadoria desde a gênese da educação formal, na Grécia antiga, onde os sofistas já cobravam uma contrapartida por suas lições. A questão é negociar até que ponto o Estado é soberano para determinar as políticas públicas de educação. Se adotarmos uma posição angelical, escandalizados porque o ensino virou mercadoria, acabaremos negociando em condições desvantajosas.”

De acordo com o relatório, a liberalização teria como conseqüências positivas o aumento dos investimentos
no setor, a ampliação dos benefícios oferecidos ao consumidor – quer pelo aumento de opções, quer pelo aumento da qualidade, quer ainda pela redução dos preços desses serviços –, a atualização tecnológica, o treinamento de pessoal e a integração cultural. Já as conseqüências negativas seriam a desnacionalização do setor, o acirramento da competitividade, com prejuízo para os pequenos e médios empreendimentos, o agravamento do quadro das diferenças regionais – como conseqüência da desigualdade dos investimentos, que contemplarão os mercados
de maior atratividade econômica – e o chamado “brain drain”, ou seja, a atração de pesquisadores de outros países.
Coordenada por Celso Grisi, a comissão que elaborou o relatório foi composta pelos professores Gerhard Malnic, Arlei Benedito Macedo, Ernst Hamburger, Tibor Rabócskay
e Sonia Maria Portella Kruppa.

 




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