Ao
insistir na reforma da Previdência, manter a taxa de juros
elevada e justificar suas rígidas medidas econômicas
com a “dura realidade” brasileira, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva não está maquiando a verdade.
A conjuntura realmente está ruim e a política de juros
altos – tão criticada por setores que apoiaram a candidatura
do então candidato petista, como os sindicalistas e os servidores
públicos – é necessária num momento de
inflação alta. É essa a opinião do professor
do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade (FEA) da USP Celso Luiz Martone. “Essa política
se explica pelo fato de que não se pode hesitar neste momento”,
analisa o professor. “A esperança é que, depois
de a inflação chegar a um nível de 6% ou 7%
ao ano, exista espaço para uma retomada do crescimento. O
governo joga tudo nessa direção.”
Para
Martone, era preciso que, ao assumir, o atual governo revertesse
o processo inflacionário, sob o risco de inviabilizar a sua
gestão nos próximos quatro anos. “Felizmente
o governo Lula entendeu esse problema e percebeu que, pelo menos
durante algum tempo, será preciso combater a inflação
a qualquer preço, o que explica a política do Banco
Central”, acrescenta o professor. “Claro que há
críticas por parte de vários setores, mas ressalto
que não se pode hesitar quando o problema é a inflação.
Se se perder o controle, não há volta.”
Até
agora o governo está tendo sucesso na queda de braço
contra os preços, acredita o professor. A tendência,
segundo ele, é a taxa de inflação continuar
em queda até chegar às metas fixadas. O lado ruim
é o preço a ser pago por esse domínio da inflação:
a retração da economia, que vê a produção
industrial estagnar e o nível de desemprego aumentar. O único
dado positivo está na balança comercial, cujo superávit
chega a quase US$ 20 bilhões.
A “grande
armadilha” que o Brasil enfrenta há anos, diz Martone,
é o tamanho da sua dívida – problema que cresce
cada vez que o governo é obrigado a subir os juros básicos.
“O governo hoje está gerando um superávit primário
(receitas menos despesas, fora os juros) de 4,25% do PIB, o que
não dá para pagar metade dos juros da dívida.”
Seria preciso gerar superávit primário suficiente
pelo menos para pagar esses juros, calcula o professor, mas eles
são tão altos que isso se torna impossível.
Em conseqüência, a tendência da dívida é
crescer. “Com um PIB hoje em torno de R$ 1,4 trilhão,
até que 4,25% não é um resultado assim tão
ruim. Esse montante pode até ajudar a estabilizar a dívida
e impedir que ela cresça como cresceu no governo FHC”,
acrescenta. “Quanto maior o superávit, mais juros se
poderá pagar e, portanto, a dívida crescerá
menos.”
Todo
o esforço que o governo vem fazendo, porém, é
um “equilíbrio em fio de navalha”, compara Martone.
“Qualquer ventinho lateral pode derrubar. Essa é a
grande armadilha fiscal que existe no Brasil e o que limita muito
a capacidade de o País crescer.” O professor lembra
que, nos últimos anos, o crescimento da economia brasileira
tem sido medíocre: nos anos 90, por exemplo, a taxa de crescimento
ficou em torno de 2,5% ao ano. Em comparação, nos
anos 70 esse índice foi de 6% a 7% ao ano e, na década
de 80, ficou em 2%. A partir de 2000, tem ficado abaixo de 2,5%.
“Com esse crescimento não dá para resolver o
problema do emprego, da distribuição de renda, do
bem-estar das pessoas e da qualidade de vida”, lamenta Martone.
“Estamos lutando para ficar no mesmo lugar. A
população cresce 1,4% ao ano e, ao contrário,
a renda familiar, medida tanto pelo IBGE como pelo Seade, tem caído
muito. As pessoas estão ficando cada vez mais pobres. Se
contarmos a média dos últimos cinco anos, a renda
familiar caiu em torno de 6%.”
Aristóteles
e Maquiavel – Mas os setores que historicamente apoiaram Lula
parecem não aceitar a explicação da “dura
realidade econômica” para justificar as medidas do governo,
que chamam de “neoliberais” e consideram inaceitáveis
para um governo “de esquerda”. Entre esses setores estão
os intelectuais – muitos deles da USP –, que não
têm poupado o ex-sindicalista.
O sociólogo
Francisco de Oliveira, professor aposentado da USP, por exemplo,
disse que, como cidadão, está preocupado com a ameaça
ao Estado republicano, que se funda no funcionalismo público
e este deve se orientar por regras claras, laicas e sem discriminação.
“É uma conquista brasileira e o funcionalismo público
não pode ser demonizado nem transformado em bode expiatório
da Previdência. A questão não é tirar
privilégios – ele não os tem –, mas combater
as superaposentadorias ao abrigo da lei. É preciso elevar
o nível previdenciário do setor privado, não
desmontar o funcionalismo público.” O sociólogo
não vê problema no fato de o sistema ser deficitário,
pois é assim no mundo inteiro. Encará-lo como problema
é próprio de uma visão neoliberal. “Desde
Aristóteles, o primeiro dever da República é
garantir o bem-estar do cidadão. Muito tempo depois apareceram
definições maquiavélicas, envolvendo a luta
pelo poder. Deve-se atentar mais para Aristóteles do que
para Maquiavel.”
A propósito
de outras reformas discutidas no governo Lula, como a trabalhista,
Francisco de Oliveira considerou um equívoco destituir os
trabalhadores de seus direitos, a exemplo do direito às férias.
“Isso é conseqüência de o PT se enfileirar
no neoliberalismo.” Mas como foi acontecer que Lula, que fez
carreira sindical e política apresentando-se como alternativa
para o neoliberalismo, de repente passe a atuar, ele mesmo, como
neoliberal ao assumir o governo? Francisco de Oliveira responde
que não foi bem assim: “A mudança já
vinha se operando sub-repticiamente, escondida pela retórica.
Não foi tão súbita assim. A ‘Carta aos
Brasileiros’ (documento saído de encontro do PT, antes
das eleições presidenciais, em que Lula se comprometia
a não romper compromissos assumidos pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso com o sistema financeiro internacional) já
mostrava a mudança. Não gosto disso”, afirmou
o sociólogo. “Ninguém engana o sistema financeiro.
Prometer e depois tentar voltar atrás é pôr
gasolina no fogo.”
Em
dois encontros de intelectuais ligados ao PT, na USP – dias
5 e 10 –, o sociólogo Octávio Ianni havia dito
que, ao pedir paciência ao povo brasileiro sob a alegação
de que está semeando agora para colher no futuro, Lula de
fato está semeando tempestade. “A tempestade já
está em marcha e as inquietações dos vários
setores da sociedade se multiplicam.”
Outro intelectual da USP, Paulo Arantes, professor de filosofia,
disse que Lula, ao prometer maior consumo aos pobres, sem no entanto
ter condições de implementá-lo, faz um convite
à violência: “Quando você promete consumo
de massa, está prometendo guerra civil”. E explicou
seu argumento: cria-se “uma espécie de horda de consumidores
fanatizados pela indústria cultural que, se privados daquilo,
passam a matar. A lógica do produto, do consumo, da imagem
é a lógica da violência e da competição.
O gozo do consumo é que os outros não tenham aquilo
que eu tenho”. Arantes também não gosta da mania
de metáforas do presidente Lula: “Esse congelamento,
essa imbecilização da opinião pública,
tratada como débil mental, na base de provérbios congeladores
e imbecilizadores”.
Também
filósofa e petista histórica, a professora Marilena
Chauí advertiu: “É nossa responsabilidade histórica
impedir o colapso, o fracasso e a direitização de
um governo de esquerda que está lá porque nós
o construímos”. Fábio Konder Comparato, jurista
e professor da Faculdade de Direito, defendeu a realização
de referendo nacional sobre a reforma da Previdência. Se não
der certo, acrescentou, ainda sobra o recurso de entrar no Supremo
Tribunal Federal com ação de inconstitucionalidade
da reforma. Isso porque “nenhum órgão do Estado
tem competência para reduzir as garantias estabelecidas na
Constituição”. Para o geógrafo Aziz Ab´Sáber,
o projeto do Planalto, que inclui a reforma da Previdência
e “outras reformas inúteis”, é “um
crime nacional”. Entre
a necessidade vital de tomar medidas econômicas rígidas
e o compromisso de campanha assumido ao lado dos intelectuais petistas,
o governo de Lula, ainda em seu início, enfrenta já
um de seus grandes desafios.
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