Os
jovens da zona leste e os nem tanto, como operários, mães
de família, gente com pequenos negócios próprios
ou desempregados, estão estudando como nunca e torcendo para
que a USP os ajude e lhes abra uma “janelinha” para
o ensino superior. Com apoio da ação comunitária,
Igreja, organizações não-governamentais, Prefeitura
e governo do Estado, vão proliferando cursinhos preparatórios
para o vestibular, com aulas à noite e nos fins de semana,
ministradas por professores voluntários de escolas estaduais
ou particulares, alunos de universidades e executivos de empresas.
Mas que cursos espera da USP a juventude da zona leste? “A
população não quer que fique só nas
humanas; quer aquilo que a Universidade tem de melhor: exatas, humanas
e biomédicas”, interpreta o subprefeito de Ermelino
Matarazzo, Arnaldo Bispo do Rosário, paulistano com raízes
nordestinas, advogado, militante dos direitos humanos e defensor
da causa dos moradores do Jardim Keralux, uma vila de alta exclusão
social, vizinha do futuro campus, com cerca de 15 mil habitantes,
sujeita ainda a despejo judicial por causa da pendência com
os antigos donos do terreno.
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Reunião
comunitária com o professor Ghanem: muitos planos |
Enquanto
a comunidade estuda e o Plano Diretor do bairro prevê a execução
de obras de grande envergadura para facilitar o acesso ao campus,
a Universidade começa a ser implantada. O projeto da primeira
fase já foi apresentado, a alça de acesso pela saída
17 da rodovia Ayrton Senna acaba de ser inaugurada, assim como o
asfalto da marginal da Penha até o Parque Ecológico
do Tietê e, portanto, à USP e ao Jardim Keralux, de
aproximadamente 6 quilômetros de extensão. Aos poucos,
parece tomar forma a proposta da urbanista Raquel Rolnik, professora
da Unicamp e secretária nacional de Programas Urbanos do
Ministério das Cidades, de mudar para a direção
leste o desenvolvimento da capital de São Paulo, até
agora voltado para o eixo sudoeste.
Sistema
viário — Atencioso e bem-falante, o subprefeito Bispo
do Rosário explica, com ajuda de um mapa aerofotográfico
da região, que, dos mais de 4 milhões de habitantes
da zona leste, 210 mil residem na sua Regional — 110 mil em
Ermelino Matarazzo e 97 mil em Ponte Rasa. O campus da USP tomará
todo o lado norte de Ermelino, limitado pelo rio Tietê, do
lado de Guarulhos, e pela ferrovia, do lado da capital. Na ponta
leste do terreno da Universidade fica a ponte que liga Guarulhos
a São Paulo; na outra, o Parque Ecológico e a rodovia
Ayrton Senna. Em outubro, a Prefeitura começa as obras de
uma rotatória na confluência das avenidas Assis Ribeiro
e Santos Dumont, para acabar com o caos que se forma ali todas as
tardes, emperrando o trânsito na ponte. A área já
foi desapropriada e paga; engenheiros da Emurb tentam agora convencer
os moradores atingidos a se transferir para um conjunto em São
Miguel.
A outra
proposta do Plano Diretor do bairro é transformar a avenida
Jacu-Pêssego, que chega só até a linha de trem,
na Nova Trabalhadores, que seguiria pelo Pantanal (leia texto na
página ao lado) até a rodovia. Assim, quem vem do
ABC, do fundão da zona leste ou do Vale do Paraíba
terá acesso fácil à USP.
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Gimenes
Peres e padre Ticão: o povo quer o melhor da USP |
Mas
a proposta mais ousada da Regional de Ermelino consiste na extensão
do metrô de Itaquera até o aeroporto de Cumbica, passando
pela Ponte Rasa, Ermelino e USP. Seriam 6 quilômetros de linha
até o campus e mais 6 até o aeroporto internacional.
Bispo do Rosário garante que existem avenidas por onde o
trem poderia passar, sem necessidade de muitas desapropriações.
“A luta da comunidade pelo metrô, assim como foi pela
USP Zona Leste, é voz que clama no deserto, mas um dia se
torna realidade”, confia o subprefeito. A atual linha de trem,
que margeia o campus, deverá transformar-se em metrô
de superfície, facilitando o acesso até do Centro
da capital.
Há
pelo menos 15 anos a comunidade vinha pedindo a extensão
da Universidade até a sua região. Uma reivindicação
da população organizada, líderes da Igreja,
intelectuais e políticos. O subprefeito recorda os freqüentes
seminários e reuniões em que se fizeram presentes
professores universitários, como Jair Borin, recentemente
falecido, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, o professor
Demerval Saviani e a deputada Ana Martins, sem falar no padre Ticão,
da Paróquia São Francisco. Todos os sábados,
a comunidade reúne-se em escolas ou dependências da
igreja, agora especificamente para acompanhar a instalação
do campus da USP e sugerir cursos. “Queremos
uma universidade aberta, não fechada em redoma onde a população
seja mero detalhe”, diz Bispo do Rosário.
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Brito
Santos (em pé) pretende fazer especialização
na USP Leste |
O Plano
Diretor regional fez um levantamento detalhado das carências
(habitação, ensino público, creches, cultura,
lazer), tendo sido contratados para isso técnicos especializados,
coordenados pela professora da USP Rosana Helena Miranda. O subprefeito
justifica: “Não se pode pensar pequeno. Temos um plano
enorme e ofertamos idéias”. Referia-se apenas à
sua Regional, mas a zona leste tem 31 subprefeituras e cada uma
elaborou o seu Plano Diretor. Todos, e ainda municípios vizinhos
como Guarulhos, Itaquaquecetuba, Mogi das Cruzes, Suzano e os do
ABC, serão de algum modo influenciados pelo novo campus da
USP.
Raquel
Rolnik amplia o panorama e propõe um novo traçado
para o Rodoanel. Sugere ligação do sistema Bandeirantes-Anhangüera
com a via D. Pedro, subutilizada atualmente, seguindo pela via Dutra,
depois pelo eixo Jacu-Pêssego até ligar com o sistema
Anchieta-Imigrantes. Esse traçado, além de representar
muita economia, daria à zona leste “um novo espaço
de oportunidades, radicalmente diferente do que existe hoje”.
A presença da USP na região, segundo a urbanista,
será o outro fator importante para deslocar o eixo econômico
na direção leste-oeste.
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Ana
Paula e Gilberto Silva: portas abertas para quem precisa |
Embora
a Universidade ainda não tenha pensado concretamente na implantação
do Projeto Avizinhar visando aos novos vizinhos, é certo
que terá campo para muito trabalho com a comunidade local.
Aquela parte da capital é majoritariamente carente, uma cidade-dormitório,
povo com perfil festeiro, cordial e, principalmente, muito organizado.
Na última votação para compor o Conselho Municipal
de Educação, do total de 31 mil votantes, 3 mil eram
de Ermelino Matarazzo, informa o subprefeito. Mas faltam locais
para lazer e cultura e as instalações novas que a
Prefeitura providencia são imediatamente tomadas por centenas
de pessoas, principalmente crianças. “Parece que brotam
da terra”, resume Bispo do Rosário, mostrando um parquinho
que acaba de ser entregue. Qualquer show de final de semana reúne
milhares de interessados.
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Martchela
e Dircenéia: dúvidas sobre a carreira a seguir |
O bairro
já teve um parque industrial respeitável ao longo
da linha férrea (inaugurada em 1927), com destaque para a
indústria Matarazzo (década de 40), que produzia papel
celofane e cerâmicas, mas a maioria das fábricas foi
fechada. Agora predominam conjuntos residenciais, vários
da CDHU, cujos moradores trabalham em outros bairros. A Regional
faz de tudo para trazer grandes lojas e supermercados, e é
geralmente atendida.
Quanto
ao ensino, há carências no nível infantil e
fundamental. Escolas de “latinha” estão sendo
substituídas por prédios de alvenaria e um CEU (Centro
Educacional Unificado) foi plantado no Jardim São Carlos.
Universidades particulares não faltam. Pelo menos dez estão
na região, segundo cálculo do padre Ticão,
embora a maioria da população não tenha condições
de freqüentá-las.
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Foto
aérea da área a ser ocupada pela Universidade
na zona leste |
Os
vizinhos
Em
uma extensa área conhecida como Pantanal, no fundão
da zona leste banhado pelo rio Tietê — parte de
Ermelino Matarazzo e São Miguel até Itaquaquecetuba
—, moram cerca de 70 mil famílias, constituindo,
segundo o subprefeito Arnaldo Bispo do Rosário, a comunidade
mais pobre do mundo. “Uma
favela só, um outro planeta”, resultante da antiga
política de levar famílias pobres para a margem
do rio. Ali não há escola, nem presença
do Estado, e a violência impera. Num
só dia foram executadas nove pessoas. Grande porção
dessa área pertencia originalmenrte ao município
de Guarulhos, mas com a construção da rodovia
dos Trabalhadores e o desvio de parte do curso do rio, os
seus habitantes ficaram isolados, cidadãos sem município,
porque na prática não pertencem mais a Guarulhos
e, oficialmente, não são de São Paulo,
embora a capital seja sua referência de vida. Um vácuo,
um povo retirante, campo de trabalho para Sebastião
Salgado, que já passou por lá fotografando a
miséria humana. Parte da população do
Pantanal, 700 famílias, foi transferida para um conjunto
da CDHU, bem próximo do campus da USP, a alguns metros
da ponte Guarulhos-São Paulo.
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Os
arredores da Universidade em Ermelino Matarazzo: nova
vida para região |
Do
lado de Guarulhos, vêem-se muitas indústrias
e empresas de grande porte, entre outras, instalações
da Petrobras e da Editora FTD.
Na
área onde está projetada a entrada leste do
campus ainda pastam 50 cabeças de gado, que à
noite o proprietário conduz para um cercado externo.
Segundo o subprefeito, o leite dessas vacas passou por análises
de laboratório, que indicaram boa qualidade do produto.
“Já temos as vacas; agora só falta um
departamento de zootecnia”, brinca Bispo do Rosário.
Ao longo da ferrovia e da avenida Assis Ribeirol (que leva
até a Jacu-Pêssego) sucedem-se estações,
a indústria Matarazzo (que retomou em pequena escala
a produção de papel) e mais conjuntos habitacionais.
Do
extremo oposto do campus, onde será construído
o parque de lazer e esporte comunitário, vêem-se
uma solitária chaminé de antiga indústria,
instalações da Cisper (Companhia Industrial
São Paulo-Rio) e da Belgo — Grupo Arcelor, fabricante
de treliças e telas industriais, que investiu US$ 70
milhões na fábrica, recentemente inaugurada.
Entre os vizinhos, também o Centro esportivo da Portuguesa,
o de treinamento do Corinthians (nada a ver com o Parque São
Jorge) e uma escola de treinamento de pilotos de helicóptero.
Na
área do futuro parque o governador Geraldo Alckmin
e o reitor Adolpho José Melfi lançaram, recentemente,
a pedra fundamental do campus e plantaram mudas de pau-brasil,
mas esses símbolos foram logo destruídos não
se sabe por quem. Não há mais placa nem mudas,
sobrou um bloco de concreto. “Assim
como o lançamento da pedra fundamental foi simbólico,
simbólica é a sua destruição”,
disse o professor Adilson Avansi, pró-reitor de Cultura
e Extensão Universitária da USP, prevendo a
necessidade de um grande trabalho de aproximação
da instituição com a população.
Na opinião de Raquel Rolnik, basta oferecer um bom
serviço para garantir a convivência pacífica.
Como prova disso, ela lembra os exemplos do metrô e
do Sesc, cujas instalações são usadas
por grandes massas e bem conservadas.
Logo
adiante, separado do campus pelo córrego Mongaguá
— um esgoto a céu aberto — fica o Jardim
Keralux. Ruas de terra, casas humildes, mas dotado de água,
luz, esgoto e assistência do Qualis, programa de saúde
familiar, segundo Bispo do Rosário, advogado dos moradores.
O antigo dono teria dado a área como garantia de empréstimo
do Banco do Brasil, mas em seguida teria aberto ruas e loteado
o terreno. Agora quer retomá-lo.
Márcio
Santos é um dos cerca de 15 mil moradores do Jardim
Keralux. Vinte e sete anos, 6a. série completada, mais
um curso de Mecânica de Motor no Senai, faz supletivo
e quer tentar Letras na USP. Mas reparem no que ele aprontou:
casou-se muito jovem com uma descendente de japoneses, três
anos a menos que ele, tiveram uma filha e em seguida foram
trabalhar no Japão, onde ficou oito anos, lidando com
solda e atuando como intérprete. Fala fluentemente
o japonês e o espanhol e usou esse conhecimento para
trabalhar como intermediário na contratação
de empregados latino-americanos pelas grandes empresas japonesas.
A licença de permanência no país oriental
venceu e ele não conseguiu a renovação
do visto. Ficou assim mesmo por mais um ano e meio, até
ser deportado e voltar para o Jardim Keralux, há três
meses. Vive com a mãe e dois irmãos. A mulher,
de quem se separou, e a filha continuam no Japão. Se
não conseguir fazer Letras na USP, pretende ir para
a Espanha onde diz ter amigos, ou para o Japão, de
novo. “Mas não tenho dinheiro nem para chegar
ao aeroporto de Cumbica”, confessa, agora que sobrevive
de vender pano de prato e quinquilharias.
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O
subprefeito Bispo do Rosário mostra o local do
novo campus |
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Os
candidatos
Os
jovens, e os nem tanto, da Regional de Ermelino Matarazzo
não querem que a USP limite os cursos da zona leste
a artes e humanidades. Esperam também engenharia, medicina,
enfermagem, publicidade e acham que sempre haverá uma
forma de contornar a disposição do Estatuto
que veta a criação de cursos já existentes
no município. Nisso têm o apoio da urbanista
Raquel Rolnik, para quem o problema tem solução:
basta considerar os cursos no novo campus como extensão
dos já existentes na Cidade Universitária e
em Pinheiros. Não haveria, assim, a criação
de novas unidades, mas a sua continuação. “Os
mesmos cursos em lugares diferentes.”
Sábado
(7), enquanto na Escola Estadual Filomena Matar, avenida Paranaguá,
a comunidade ligada à Igreja do padre Ticão
realizava encontro para discutir os futuros cursos da USP,
com a presença do professor Elie Ghanem, da Faculdade
de Educação, em outras dependências, a
três quadras dali, três salas recebiam alunos
do cursinho Educafro, voltado para carentes e negros.
Daniel
Gonçalvez da Cruz, aluno de Engenharia de Produção
no Instituto Osvaldo Cruz, abençoava o cursinho por
tê-lo ajudado a alcançar a faculdade e prometia
montar uma filial no Jardim Keralux, onde reside. Se passar
no vestibular da Fuvest, espera eliminar algumas disciplinas.
Alexssanter
Sousa Santos, com formação em Língua
Portuguesa, Língua Inglesa e Literatura Portuguesa
e Brasileira, é professor de uma das classes. “Sou
professor de inglês e português, faço uma
faculdade de Filosofia, tenho pós-graduação
em semiótica e em língua e literatura, mas estou
desempregado”, lamenta. “Na rede pública
há muita concorrência e me falta experiência.
Prestei concurso na Prefeitura e espero ser chamado.”
Ele nasceu em Ermelino Matarazzo, viveu um tempo em Minas
Gerais e voltou. Nos finais de semana e no tempo livre —
enquanto não consegue emprego — dedica-se ao
cursinho da comunidade.
Na
sua classe, Ana Paula Vieira Silva (de 12 alunos ouvidos,
5 têm Silva no nome, 4 são Santos e 1 acumula
os dois sobrenomes) vem de Artur Alvim, tem magistério,
trabalha em creche com contrato temporário. “Procurei
o cursinho porque quero fazer Pedagogia. Espero que as portas
da USP sejam abertas para quem realmente precisa. Os alunos
da USP Oeste não são carentes. Só queremos
uma janelinha”, diz, disposta a se inscrever na Fuvest
assim que a Universidade começar a funcionar na sua
região.
A
seu lado, Gilberto Silva Júnior, que trabalha em marcenaria,
pretende disputar uma vaga em Ciências da Computação.
Na sua família, o irmão bancário é
o que está melhor na vida, mas se depender de sua força
de vontade, Gilberto será o mais famoso.
Narita
da Silva Costa ainda não sabe o que escolher na USP.
Espera definição sobre cursos. Talvez tente
Farmácia ou qualquer curso na área da saúde,
se houver. Tem 35 anos, três filhos e uma oficina de
bolsas. “Não gosto desse serviço. Temos
é que lutar por nossos direitos. Mudar a nossa zona,
grande e esquecida.”
Dircenéia
Silva dos Santos, de 18 anos, hesita entre Jornalismo e Secretariado
Executivo. É de São Miguel e concluiu o curso
médio no ano passado.
Martchela
Selma Oliveira Santos, 18 anos, nasceu em São José
do Rio Preto e veio com a família para São Paulo.
Seu coração também balança entre
duas especialidades: área social e enfermagem.
Em
outra sala de aula, o professor João Batista Brito
Santos dá aula de História. “Aprendi na
própria vida”, mas a Universidade de Guarulhos
ajudou. Se der, pretende fazer especialização
na USP. Em dias úteis, dá aulas de história
em escola estadual no Itaim Paulista, e também ensino
religioso.
Kleber
Patrício de Oliveira teve sorte e competência:
conseguiu bolsa da Getúlio Vargas (fundação
que ajuda o cursinho da comunidade). Já leu os oito
livros indicados pela Fuvest. Como os outros, espera que a
USP “deixe os pobres acessá-la”.
Cláudia
Maria Rosa Andrade Silva, a tímida, além de
estudar para o vestibular, preocupa-se com os problemas do
bairro, onde faltam oportunidades de esporte, lazer e há
muitas crianças na rua.
Daniela
Diniz considera-se suficientemente criativa para tentar Publicidade
ou Marke-ting. Aos 25 anos, é casada e tem uma filha.
“Sou espontânea e adoro criar.”
À
porta do cursinho aparecem três moças que vêm
de Itaquera, em busca de inscrição no cursinho.
São Fernanda Jaqueline Marcelino Narciso, Fernanda
de Fátima Singilo Araújo e Carla Tatiane da
Silva. Logo depois, surge Aparecida dos Santos Abrante que,
junto com Ademir Gimenes Peres, coordena o Educafro. É
bolsista da PUC, estuda Inglês, está no terceiro
ano e dá aulas de cidadania. Cuidar do cursinho é
sua forma de retribuir a ajuda recebida.
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