Com
os anos divididos entre Portugal e o Brasil, por sete vezes Antônio
Vieira atravessou o Atlântico. Por sete vezes, o mais brilhante
jesuíta a vir para a colônia, o padre nascido em Lisboa
e criado em Salvador foi e voltou. Chamado por Fernando Pessoa de
“imperador da língua portuguesa”, Vieira sobreviveria
à morte de seu tempo como escritor. Louvado como símbolo
de estilo, esqueceu-se, no entanto, do quanto do Brasil ele soube
guardar em seus escritos. Além dos seus clássicos
sermões, desde muito jovem até o fim da vida, aos
89 anos, Antônio Vieira escreveu uma vultosa correspondência
em que fez da colônia, então dividida em Estado do
Maranhão e Grão-Pará e Estado do Brasil, o
seu maior objeto. Esses documentos, retratos de um país em
sua primeira infância, podem agora ser lidos em Cartas do
Brasil.
Organizado
por João Adolfo Hansen, professor do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o volume reúne
177 cartas que tratam das questões enfrentadas pelas missões
jesuíticas na administração de seus negócios
ultramarinos. Parte de uma coleção da Editora Hedra,
o livro é o terceiro de uma série de quatro. Os sermões,
sob os cuidados de Alcir Pécora, professor da Unicamp, já
saíram em dois volumes e está previsto mais um, que
trará a sua obra profética, a história que
imaginou para o futuro.
Divididas
por Hansen em três grandes grupos de destinatários
– a Coroa portuguesa, a Companhia de Jesus e a sociedade colonial
–, as cartas foram também postas, dentro de cada grupo,
em ordem cronológica. Cartas do Brasil permite, assim, que
se acompanhe o desenrolar e se entenda o teor de suas relações
com várias das personalidades de sua época.
Uma
outra preocupação do organizador parece ter sido a
de contextualizar Vieira. Uma cronologia de sua vida, uma relação
explicativa dos destinatários, além de uma longa e
elucidativa introdução, integram o livro. Com quase
70 páginas, o texto de Hansen abre as portas do que ele chama
“um mundo morto”, para nós quase incompreensível,
o mundo pré-iluminista em que é Deus o fim e a razão
de todas as coisas.
Tachado
muitas vezes de místico, elitista e reacionário, o
padre escritor seria vítima de uma leitura que o professor
considera anacrônica. “Lançam para ele olhos
iluministas e fazem um julgamento de sua postura através
de valores que só surgiriam posteriormente”, diz. “Rosseau
só vai nascer cem anos depois dele. Não se deve criticá-lo
por não ter feito, por não ter agido de acordo com
uma idéia que só pôde, historicamente, aparecer
um século depois.”
Para
julgar seu comportamento – alguém que defende a liberdade
dos índios e fecha os olhos à escravidão negra
nos parece um tanto hipócrita –, deve ser examinado
como ele se localizava dentro do sistema de idéias a que
pertencia. Antônio Vieira é um homem do seu tempo,
explica o professor, e é o seu modo de pensamento, um raciocínio
teológico, moldado pela metafísica escolástica
e pela retórica latina, que vemos transparecer em suas cartas.
Diferentes
dos sermões por se utilizarem de um estilo mais simples e
elegante, com menos metáforas e figuras de estilo, as cartas,
no entanto, tais quais os textos de pregação, estão
sempre presas a gêneros pré-concebidos, a modelos.
Por estarem impregnadas desses valores é que elas, ainda
que sejam documentos importantes sobre o Brasil, não poderiam
ser lidas como “depósitos neutros de informação”,
alerta Hansen.
Mesmo
quando não são negociais e tratam do âmbito
familiar, as cartas são sempre aplicação do
que é adequado à verdade católica, sempre mantêm
e adaptam os preceitos antigos que definiam as partes e os estilos
de uma correspondência.
O tom
é diferente para cada destinatário: a maneira como
se coloca perante D. João IV não é a mesma
com que se dirige ao índio guaquaíba. Mas ele está
sempre reafirmando a sua condição de membro da Companhia
de Jesus. “Uma tempestade de homem” – assim o
define Hansen –, Vieira ocupou uma infinidade de lugares,
de tudo viu e de tudo tomou parte no século 17. Foi mestre
da retórica, amigo de reis e aristocratas, diplomata, defensor
de índios, perseguido pela Inquisição, profeta,
mas não se distanciou nunca de sua representação
de jesuíta, que como tal deve ser, em todas as ocasiões,
prudente e discreto.
Ao
ler sua correspondência parece impossível encontrar
ali qualquer traço de pessoalidade. Hansen explica que o
que não se vê é aquilo que entendemos por subjetividade,
que é a subjetividade romântica. “Eles não
são burgueses, não acham que existe um eu que se expressa
e diz o que sente”, explica. “Nessa época o que
vale é a representação, você tinha que
ter uma representação adequada ao papel social que
ocupava. É uma teoria das máscaras. Se você
age, se comporta e fala como um padre, então você é
padre.”
Por
mais voluntaristas que possam parecer suas posições,
ainda que seja um homem intenso, duro e até violento na defesa
delas, Vieira não deixa nunca de seguir estritamente as regras
da retórica, de subordinar-se aos interesses da Companhia
de Jesus e da Coroa. Ainda que, quando eles se contrapõem,
privilegie a última.
Um imenso Portugal – Para o padre seiscentista, a expansão
geográfica portuguesa é um efeito da vontade de Deus.
A dinastia dos Bragança seria a escolhida para espalhar o
catolicismo entre as novas terras e os novos povos. “Por isso
nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas
terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer,
toda a terra; para nascer Portugal, para morrer o mundo”,
escreveu em um dos sermões.
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Hansen: Vieira
era “uma tempestade de homem” |
Instrumento
da providência divina, fundador de uma nova idade na cristandade,
Portugal estava destinado a ser, depois do domínio caldeu,
do persa, do grego e do romano, o que Vieira chamava de Quinto Império.
Em
uma de suas cartas mais célebres, a que escreveu para o padre
André Fernandes e ficou conhecida como “Esperanças
de Portugal”, Vieira explica de que maneira se daria a realização
do seu sonho megalômano – através da ressurreição
de D. João IV, que morrera havia pouco.
Escrita
em 1659, para que Fernandes consolasse a rainha viúva, D.
Luísa, “Esperanças de Portugal” era uma
carta pessoal e que, portanto, não deveria vir a público.
Mas a Inquisição, que já o perseguia há
uma década, aproveitou-se de que Vieira não mais tinha
o rei para protegê-lo e encarou a missiva de outra forma,
seqüestrando-a e utilizando-a como prova contra ele.
Na
carta, o jesuíta vale-se das palavras de Bandarra, um sapateiro
que, no século 16, compusera trovas proféticas. “O
Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que
El Rei D. João o quarto há-de obrar ainda muitas coisas
que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando:
logo El-Rei D. João o quarto há-de ressuscitar.”
O uso de um texto não-canônico para fazer profecias
valeu-lhe a condenação como herege e heterodoxo.
Depois
de passar cinco anos na prisão do Santo Ofício em
Coimbra, partiu para Roma e lá passou a pregar na corte da
rainha Cristina da Suécia, da qual se tornou confessor. Com
seus sermões em italiano, alcançou grande sucesso,
mas, assim que obtém do papa o perdão que o livrava
para sempre da jurisdição da Inquisição
portuguesa, volta à sua terra natal. Porém,
a permanência aí é breve. Ele não tardaria
em atravessar o mar pela última vez e vir para o Brasil.
Nas
cartas que escreveu desde então até o fim da vida,
é possível ver um outro Antônio Vieira, agora
velho, ressentido com o abandono da Corte portuguesa, a falar mais
e mais de suas doenças. Chega a pedir que parem de lhe escrever,
por não mais poder responder – está quase cego
e quebrara a mão por duas vezes –, mas não consegue
levar a resolução adiante e passa a ditar suas cartas.
Amargurado, Vieira morreu em 1697, na Bahia. Morreu sem saber que
dali a anos decretariam também a morte do seu Deus.
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Cartas
do Brasil
organizado por João Adolfo Hansen
Editora Hedra
680 páginas
R$ 59,00 |
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