Ao
recriar a Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento
do Nordeste), ao mesmo tempo em que sinaliza para a reativação
da extinta Sudam (Superintendência para o Desenvolvimento
da Amazônia), o governo Lula quer deixar claro o caráter
intervencionista do Estado sob seu comando, delineando assim uma
estratégia diferente da administração FHC,
de orientação neoliberal. Além disso, a presença
do idealizador da Sudene, Celso Furtado, na cerimônia de reinauguração,
no dia 28 de julho, é um forte símbolo da intenção
de o governo retomar o papel original do órgão fundado
em 1959 por Juscelino Kubitschek, depois de uma seca que aumentou
a tensão social nos sertões nordestinos.
As
afirmações são do geógrafo Ariovaldo
Umbelino de Oliveira, professor da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “A política
neoliberal da administração FHC caminhou na direção
do Estado mínimo. Ele extinguiu Sudene, Sudam e outros órgãos
e criou as agências reguladoras, coisa que os Estados Unidos
conheceram há mais de 30 anos. No governo Lula, ao contrário,
o Estado é agente mobilizador de recursos e de uma política
de desenvolvimento”, diz.
Originalmente
concebida para promover o desenvolvimento regional e reduzir os
bolsões de pobreza no Nordeste semi-árido, a Sudene
teve suas funções desvirtuadas durante o regime militar
(1964-1985). Na época, o caráter de intervenção
e planejamento estratégico do órgão cedeu lugar
a uma política de subsídios fiscais que atendia aos
interesses de uma elite oligárquica, que só agiu em
interesse próprio, segundo o professor. Ele vai mais longe:
“Na verdade, os militares montaram uma estratégia de
desenvolvimento no sentido de não promover a reforma agrária
no Nordeste e no Brasil”, afirma.
Autor
de Geografia das lutas no campo (editora Contexto), Umbelino de
Oliveira ressalta em seu livro que as lideranças das Ligas
Camponesas – associações de trabalhadores rurais
criadas em Pernambuco, que se difundiram no Brasil de 1955 até
a queda de João Goulart, em 1964 – “foram cassadas,
com dois esses e com cedilha”. Isso porque “o movimento
das Ligas foi perseguido politicamente e efetivamente extinto pelo
governo militar”. O professor lembra ainda que o presidente
João Goulart foi deposto logo após o famoso discurso
da Central do Brasil, quando, sensível às tensões
no campo, anunciou a criação da Supra (Superintendência
da Reforma Agrária).
Inserir
a questão agrária no escopo de atuação
da Sudene, especialmente num momento em que aumentam as ocupações
dos sem-terra no campo, é discussão válida,
acredita o professor. Até porque esse foi um dos temas estudados
pelo GTI (Grupo de Trabalho Interministerial), estruturado no início
do ano, sob coordenação da economista Tânia
Bacelar de Araújo, com o objetivo de propor medidas para
a recriação da nova Sudene. Na Oficina do Semi-árido,
que em junho passado reuniu vários especialistas do GTI,
houve diversas questões discutidas, sobre as quais se chegou
à “unanimidade, convergência ou divergência
de opiniões” sobre um conjunto razoável de idéias.
O encontro deu origem ao documento Oficina do Semi-árido:
contribuição da “nova Sudene” para o desenvolvimento
da região semi-árida do Nordeste.
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A
questão agrária deve ser inserida na atuação
da Sudene, diz professor |
Sobre
a questão agrária, inicialmente houve “divergência
em relação à importância absoluta conferida
à agricultura familiar como foco central das políticas
públicas de apoio ao desenvolvimento sustentável do
semi-árido nordestino”, traz o texto. Isso porque “sua
caracterização como única atividade capaz de
promover o desenvolvimento necessário e desejado da região
foi considerada um excesso”. No entanto, os especialistas
do GTI chegaram à conclusão de que seria preciso chegar
a um consenso sobre o conceito de “agricultura familiar”,
antes de definir sua importância para o progresso regional:
“Estava-se diante de um tipo de agricultura que não
podia nem devia ser confundido com a agricultura de subsistência
de baixa produtividade, praticada no semi-árido, em áreas
pouco favoráveis do ponto de vista de solo e água. Trabalhou-se
a idéia de que a agricultura familiar pode constituir um
negócio bem-sucedido, especialmente na perspectiva dos pequenos
agricultores (proprietários ou não de terra). Suas
possibilidades de sucesso dependem tanto do uso de tecnologia, assistência
técnica, processos de comercialização e mercado
quanto a chamada agricultura empresarial, integrante do agronegócio”.
Acesso ao crédito, especificidades do ambiente rural e urbano,
escassez de água, energia, demografia, diversidade econômica
e outros temas e desafios ao GTI foram tratados e podem ser conferidos
na página eletrônica www.sude ne.gov.br/gti.
Controle
social – Um país com grandes desigualdades regionais
não pode prescindir de um instrumento como a Sudene, acredita
o economista Adriano Henrique Biava, professor de Economia do Setor
Público da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade (FEA) da USP. Mas serão necessários
“estreita observância e controle da sociedade para que
não se repitam os erros do passado”, afirma. Biava
lembra que, nos anos que antecederam o fechamento da autarquia,
os recursos públicos foram apropriados por grupos particulares
em razão da pouca transparência na administração
dos fundos regionais. Para que isso não ocorra novamente,
é preciso que a entidade seja protegida por salvaguardas
e que passe por um crivo técnico adequado, afirma.
O professor
Umbelino de Oliveira também acredita que a transparência
administrativa é um trunfo no sentido de evitar corrupção.
Mas prefere defender a hipótese de “blindagem”
apresentada pelo presidente Lula, no discurso de reinauguração
da Sudene, em Fortaleza. “Até hoje a Sudene não
deu certo devido à ação de uma elite corrompida,
a chamada ‘indústria da seca’, que vive dos recursos
públicos. O problema não está no organismo,
mas na política governamental implantada. Quando o presidente
Lula diz que vai blindar a Sudene contra a corrupção,
entendo que, na verdade, ele não permitirá que as
elites controlem o órgão, ou seja, vai montar um mecanismo
de controle de modo a evitar a malversação do dinheiro
público e, se isso ocorrer, que os culpados sejam punidos.”
Já
o geógrafo Aziz Ab’Sáber, professor do Instituto
de Estudos Avançados (IEA) da USP, acredita que a falta de
conhecimento técnico, e não só a corrupção,
atrapalhou o bom funcionamento do organismo. “Ainda hoje,
o conhecimento que o grupo da Sudene conseguiu reunir sobre a região
é muito frágil. No passado, também não
deu certo porque seus dirigentes não tinham um conhecimento
consistente da região e faltou um planejamento voltado a
um ideário social. Os atendimentos pontuais não resolveram
e não resolverão os problemas do conjunto regional”,
afirma Ab’Sáber. “Por exemplo, o atendimento
que o município de Guaribas, no sudeste do Piauí,
está recebendo assemelha-se mais a um assistencialismo do
que propriamente a uma política de desenvolvimento. O local,
como ponto piloto de implantação de uma estratégia,
não é representativo de outros pontos do Nordeste.
Numa estrada próxima a Garanhuns, em direção
ao sertão, vi pessoas esperando há dois dias pelo
caminhão-pipa na beira da estrada, enquanto caminhões-pipa
de fazendeiros passavam com água para o gado. As elites existem,
é fato, e sempre pressionarão a seu favor. Mas há
que se reunir mais conhecimento sobre a região para montar
boas estratégias de ação. Há que se
mapear a hidrografia, conhecer bem a hidrologia, o clima, a demografia,
a dinâmica de mercado. Tudo depende de como organizar o conhecimento
macro e microrregional. Por que, por exemplo, implantar pequenas
e médias empresas só na zona da mata?”
A divisão
que caracteriza os órgãos governamentais de promoção
ao desenvolvimento do Nordeste é outro entrave à efetivação
das políticas de planejamento regional, acrescenta o professor
Umbelino de Oliveira. “A Codevasp (Companhia de Desenvolvimento
dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) fica em
Salvador. A Sudene, em Recife, e assim por diante. Como
é possível ter resultados positivos se existe essa
falta de integração das ações governamentais?
É preciso integrar as políticas entre as três
esferas de poder.” O professor não vê com bons
olhos a disputa de cargos que começou a surgir já
no dia da reinauguração da Sudene, protagonizada pelo
PMDB. Para
ele, se o organismo continuar sob a coordenação da
economista Tânia Bacelar, estará “em boas mãos”.
“Ela é uma profissional da mais alta competência
e de ilibada reputação.” Quanto
à disputa entre partidos, ele acredita que o rateio de cargos
é um dos maiores problemas de governar e é preciso
tomar cuidado para que os partidos não tomem conta do novo
organismo. Caso contrário, “as elites também
irão dominar”.
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