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Os
Elhay, família de judeu-egípcio no Cairo, em
1920, e o lançamento da pedra fundamental da sinagoga
sefaradi de São Paulo, em1924 |
Depois
de ter vivido, resta a um homem voltar ao que já foi para
vencer o tempo e estancar seu fluxo. Mestre da memorialística,
Marcel Proust pôde, a partir do gosto de um bolinho embebido
em chá, viajar através dos anos, reencontrar-se menino
e escrever o seu Em busca do tempo perdido. Se tudo vai embora com
pressa, sem data, ele sabia que era preciso estar guardado pelas
palavras.
Foi
para salvar do esquecimento a que pareciam condenados centenas de
velhos imigrantes judeus que a pesquisadora Rachel Mizrahi dedicou-se
por dez anos a ouvir suas histórias e a documentá-las.
O resultado, inicialmente apresentado como tese de doutorado no
Departamento de História da USP, pode agora ser visto no
livro Imigrantes judeus do Oriente Médio: São Paulo
e Rio de Janeiro, primeiro volume da coleção Brasil
Judaico, que a Ateliê Editorial lança no dia 11 (leia
texto na página ao lado).
Fontes
escritas tradicionais – como atas e estatutos de sinagogas,
discursos, relatórios e jornais – foram consultadas
para recompor essa história, mas, por serem limitadas, acabaram
abrindo espaço para a técnica da história oral.
A partir do depoimento daqueles que a viveram, a pesquisadora conta
a história da imigração judaica no Brasil,
o que pode revelar aspectos pouco conhecidos do imaginário
coletivo dessas comunidades, aquilo que os documentos não
podem contar. Com homens e mulheres revolvendo suas lembranças,
foram resgatados os sentimentos de perda que tinham ao deixarem
o Oriente, o momento da despedida, as primeiras impressões
sobre o Brasil, a nova casa, a construção da sinagoga,
a preocupação em preservar os costumes, o fantasma
que eram os casamentos mistos entre judeus e não-judeus.
A epígrafe
escolhida – “As lembranças... são nosso
único patrimônio” – já revela o
tom do livro, todo permeado pela memória. E parece ter sido
um desejo de reconstruir o próprio passado, um encontro consigo
mesma a partir das raízes familiares – Rachel é
filha de imigrantes judeus do Oriente Médio –, o que
motivou o trabalho da pesquisadora. A idéia surgiu de um
filme que contava a história dos judeus no Brasil. “Vi
que eles omitiam a existência da comunidade da Mooca, da qual
eu fazia parte”, conta. “Éramos um pequeno grupo,
mas nós existíamos. Percebi que, se não fizesse
esse trabalho, esse grupo, de cerca de 50 famílias, simplesmente
cairia no esquecimento.”
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Interior da antiga
sinagoga da Abolição, inaugurada em 1929 |
O livro,
dessa maneira, acaba interpretando a imigração judaica
como um fenômeno múltiplo. Percebe-se que os judeus
não formavam um grupo único e homogêneo. Suas
raízes culturais, assim como suas trajetórias, eram
distintas. Os asquenazis, vindos da Europa e que falavam o idioma
iídiche, um misto de palavras alemãs, eslavas, russas
e hebraicas, constituem a grande maioria da comunidade judaica brasileira.
Sobre
eles muito se escreveu e se publicou nos últimos anos. Já
a respeito daqueles que vieram do Oriente Médio, por serem
um grupo estritamente minoritário, a bibliografia é
quase inexistente. Esse estudo recupera então, através
de uma investigação sistemática, a trajetória
dos imigrantes judeus que vieram de países árabes
– os orientais e os sefaradis, um grupo procedente de terras
ibéricas que, a partir de 1492, se instalou também
nas terras do antigo império otomano.
Uma
religião, duas culturas – O foco inicial, que era a
pequena comunidade da Mooca, formada pelos judeus orientais, acabou,
durante a pesquisa, por ampliar-se. Primeiro, ao ir ao Itamaraty
em busca de documentos sobre a política imigratória
nacional, Rachel descobriu que os judeus radicados em São
Paulo tinham vínculos não só familiares, mas
também econômicos, com aqueles que se estabeleceram
no Rio de Janeiro, e que estes, mais tarde, motivados pelo progresso
da capital paulista, acabariam por se transferir para lá,
como foi o caso das famílias Nigri e Kalili.
Além
disso, a pesquisadora percebeu que os orientais não foram
os únicos judeus vindos do Oriente Médio que chegaram
naquele período – entre o início do século
e a década de 30 – e que, na verdade, faziam parte
de um grupo maior, constituído também pelos sefaradis.
“Fiquei curiosa por saber por que esses judeus provenientes
de uma mesma região lá se organizavam em comunidades
distintas e aqui no Brasil também se mantiveram separados”,
explica. Embora não houvesse diferenças substanciais
nos ritos religiosos, as características culturais específicas
impediam uma interação entre os dois grupos –
os orientais falavam o árabe, enquanto os sefaradis tinham
o ladino, idioma muito próximo ao português, como língua
materna.
No
entanto, ainda que separados, eles se relacionavam. Instalados na
Mooca, os judeus orientais mantinham laços estreitos com
os sefaradis, que buscaram regiões no centro comercial de
São Paulo, nos Jardins e na Consolação. Para
entender essa relação e em que sentido a cultura dos
judeus orientais diferenciava-se e em quais se aproximava da dos
sefaradis são apresentadas as matrizes culturais comuns desses
grupos no Oriente Médio: as perseguições que
sofreram, como a Dispersão, levaram os judeus a conviver
com muitos povos, assimilando seus valores e costumes, ao mesmo
tempo em que, mesmo na contínua absorção de
novos traços culturais e acomodando-se à estrutura
política, econômica e social islâmica, eles não
deixaram de preservar a religião judaica.
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Família
de Isaac Sayeg, São Paulo, 1924 |
Expulsos
de Portugal e da Espanha em 1492, os sefaradis encontraram lugar
no império dos turco-otomanos, que lhes ofereceram abrigo.
Amparados e protegidos, eles viviam nas cidades próximas
ao poder e mantinham respeito às autoridades otomanas. Assim
que chegaram ao Oriente Médio iniciaram contatos com judeus
de outras origens. As relações entre suas comunidades,
ora de aproximação, ora de afastamento, variava em
função das condições locais. Embora
fiéis aos preceitos religiosos, mostravam-se receptivos ao
meio cultural que os cercava. E, ao contrário dos orientais,
conservadores, eram mais liberais e abertos às mudanças.
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Cerimônia
de inauguração da sinagoga Israelita Brasileira,
São Paulo,1930 |
Em
São Paulo, distribuídos por diversos bairros, eles
tinham, inicialmente, dificuldade de se reunir para realizar as
cerimônias religiosas. Já havia templos asquenazis,
mas os sefaradis não se sentiam atraídos em participar
de seus rituais. A solução foi construir uma sinagoga
própria, e o local escolhido foi a Rua da Abolição,
na Bela Vista. A simplicidade da construção, sóbria,
pequena e íntima, contrastava com a posição
econômica que os sefaradis ocupavam na época: o domínio
do francês e dos hábitos ocidentais fez com que o grupo
assumisse profissões e atividades comuns aos brasileiros
de média e alta posição social. Mas o templo,
na verdade, refletia uma tradição de Esmirna, cidade
de onde provinham, em que a modéstia do lugar servia para
que os judeus se voltassem para si mesmos durante as cerimônias.
O historiador Boris Fausto, em um depoimento ao livro, conta que,
logo depois das rezas, os fiéis retiravam o solidéu
e iam para a rua se misturar aos passantes. “A religião
era algo particular e que a ninguém dizia respeito”,
diz ele.
Se,
dispersos espacialmente, os sefaradis conseguiram se reunir ao redor
de um templo, os orientais da Mooca, ao contrário, construíram
duas sinagogas, em uma mesma rua. O pequeno número de imigrantes
procedentes de comunidades diferentes não justificava a existência
de duas sinagogas no bairro. Entretanto, o forte regionalismo das
famílias libanesas da cidade de Sídon provocou uma
certa divisão comunitária.
A paz
possível – Na Mooca, os judeus, procedentes em sua
maioria do Líbano e de cidades do atual Estado de Israel,
fixaram-se ao lado de outros imigrantes, como os italianos e os
espanhóis. Os sírio-libaneses eram também presença
constante. “Excluindo a religião, os judeus da Mooca
aproximaram-se dos sírio-libaneses, cristãos e muçulmanos
e com eles mantinham negócios”, explica a autora. O
fato de falarem o mesmo idioma, o árabe, a estrutura patriarcal
de suas famílias, a comida e a música eram fatores
de identificação surgidos durante a convivência
que tiveram durante séculos nas terras do Oriente Médio.
Era dos árabes, e não dos judeus asquenazis do Bom
Retiro, que os judeus da Mooca compravam as mercadorias de que precisavam.
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Detalhe
de Jerusalém, litografia de David Roberts |
Sem
entrar em embates ideológicos, o livro acaba por discutir
o atual conflito entre palestinos e judeus. O que surge nas histórias
das famílias desses primeiros imigrantes, contrariando a
idéia de que o ódio entre árabes e judeus existe
desde tempos imemoriais, é uma convivência não
só pacífica mas bastante amistosa entre os dois povos.
“Os árabes entravam nas sinagogas e dançavam
com os judeus. Os melhores amigos dos meus pais e dos meus avós
eram árabes, muçulmanos e maronitas. Eles viviam bem,
conviviam, e isso pode ser provado pelas relações
que estabeleceram aqui no Brasil”, conta a autora. Essa relação
teria se deteriorado, especialmente depois da criação
do Estado de Israel, com o acirramento dos nacionalismos, por parte
dos dois lados. Para ela, no entanto, “apesar dos altos e
baixos das tentativas de conciliação, e ainda que
os conflitos nacionalistas estejam em cena, os milenares e positivos
contatos entre judeus e muçulmanos, prevalecentes até
o final da Primeira Guerra, não devem ser esquecidos e podem
ser resgatados”.
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Imigrantes
judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de
Janeiro
Rachel Mizrahi
Ateliê Editorial
334 páginas
R$ 70,00
O
lançamento será no dia 11 de agosto, no Museu
da Casa Brasileira (avenida Brigadeiro Faria Lima, 2.705,
telefone 3032-2564), às 19h30 |
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