Plim-Plim.
O homem que para muitos representava, como empresário, a
modernidade e o empreendimento de um Brasil grande; que para outros
era a encarnação do personagem voraz por poder e notícia
Charles Foster Kane, do filme de Orson Welles; e que para alguns
poucos só chegou aonde chegou graças a suas relações
com os principais governantes do País, saiu de cena. Na última
quarta-feira, dia 6, complicações decorrentes de um
edema pulmonar puseram um ponto final nos 98 anos de vida de Roberto
Marinho. A partir de um jornal recém-criado e ainda claudicante
nos distantes anos 20, ele criou as Organizações Globo
e se tornou o mais importante empresário de comunicação
da América Latina, um dos principais do mundo. Mas o “jornalista
Roberto Marinho”– como gostava de ser chamado –
não criou só um império de comunicação
que abrange jornais, revistas, editora, rede de televisão,
emissoras de rádio, Internet e uma fundação
educacional e cultural que leva o seu nome. De várias maneiras,
ele ajudou o Brasil a se conhecer, a se reinventar, a se compreender.
Roberto Marinho ajudou o Brasil a perceber o Brasil.
O reconhecimento
desta longa jornada de trabalho que começou no longínquo
ano de 1925, quando seu pai, Irineu Marinho, morreu e lhe deixou
como herança um pequeno jornal batizado – depois de
uma enquete com os leitores – de O Globo, e que só
foi terminar semana passada, veio de várias formas. Talvez
a que melhor resuma toda a trajetória de Roberto Marinho
seja a frase do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, justamente
ele que se sentiu tão prejudicado pela TV Globo naquele famoso
debate com Fernando Collor de Mello em 1989, que para muitos decidiu
a eleição presidencial a favor deste último.
“Roberto Marinho foi um homem que veio ao mundo a serviço”,
disse o presidente. E veio mesmo. E esse serviço se mostrou
de várias formas. Com o jornal, por exemplo, Marinho empreendeu
durante toda sua vida um caminho coerente de liberalismo, democracia
e tomadas de posição – por mais que esta atitude
para muitos pudesse denotar uma certa subserviência aos poderosos
e aos governantes. Mas não era bem assim, como ele mesmo
cansou de explicar. É certo que O Globo esteve próximo
de praticamente todos os presidentes brasileiros desde Getúlio
Vargas, e para isso o jornalista tinha uma resposta na ponta da
língua, que resumia bem a sua linha editorial. “Tomar
posição nos momentos críticos da política
é obrigação de um jornal.” Questionável
ou não, o certo é que Roberto Marinho levou até
o fim essa posição e, de todos os presidentes que
apoiou, só se arrependeu de dois: Jânio Quadros e Fernando
Collor.
Mas
que essa postura editorial não se traduza em apoio incondicional.
Quando os militares tomaram o poder, em 1964, Marinho disse sim,
mas quando as torturas, as perseguições políticas
e a censura – características da ditadura que se instalava
– mostraram sua face tenebrosa, ele disse não. E resistiu
a pressões inclusive para demitir os filiados ao Partidão
que trabalhavam em O Globo. “Nos meus comunistas ninguém
mexe. É pela competência que um profissional deve ser
julgado, e não por sua opção política.”
Esta postura é referendada pelo professor Luiz Fernando Santoro,
da ECA, que trabalhou na Fundação Roberto Marinho
de 1986 a 1989. “Na
época eu tinha uma militância muito atuante junto ao
Partido dos Trabalhadores e a Globo se manifestava contra a formação
do PT. Todos sabiam disso e nem assim sofri qualquer tipo de crítica
ou repressão. Fui muito mais criticado fora da Globo do que
dentro dela”, lembra Santoro, que também não
concorda com a tese que demoniza o papel da Globo na construção
do regime autoritário no Brasil. “A Globo foi apenas
um dos elementos que ajudaram a construir esse regime. Não
foi a única culpada, e nem acredito que a mídia tenha
esse poder.”
Se
é questionável ou não o papel da TV Globo na
criação de – ou no apoio a – esbirros
ditatoriais, não pode ser colocada em dúvida sua atuação
como elemento catalisador de uma identidade nacional. Não
cabe aqui se levantar a validade de programas como “Amaral
Neto, o repórter”, ou se o Jornal Nacional nasceu como
porta-voz do poder estabelecido ou mesmo se o rumoroso contrato
com o grupo Time-Life era legítimo ou não. O que importa
neste momento é talvez reconhecer que foi com programas de
grande alcance e de repercussão retumbante que a Globo patrocinou,
a seu modo, uma integração nacional que nem várias
Transamazônicas conseguiriam. “A Globo tem, através
das suas novelas, do seu jornalismo, uma influência muito
grande no comportamento, no pensamento e no estilo de vida dos brasileiros”,
afirma Renato Levi, professor de Telejornalismo e Documentário
da ECA. Ele tem razão. No jornalismo, a Globo ampliou fronteiras,
mostrou realidades até então desconhecidas para um
público acostumado ao trivial simples de reportagens bidimensionais.
Criou-se
o tão propalado “padrão Globo de qualidade”,
o que não é pouca coisa. Para o bem e para o mal,
pode-se dizer, mas que é paradigma para qualquer emissora
de TV que queira ser tratada como tal.
Se
no telejornalismo a Globo empreendeu seu caminho através
do Brasil, com a telenovela ela empunhou um espelho e mostrou à
população seu próprio rosto. Deixou de lado
textos importados de autores que pouco ou nada tinham a ver com
nossa realidade, como Gloria Magadan, e investiu em uma teledramaturgia
tipicamente nacional, com nomes como Janete Clair, Lauro César
Muniz e Dias Gomes – este, outro comunista de carteirinha
acolhido nas hostes globais. Goste-se ou não de Roberto Marinho,
o fato é que ele teve uma atuação marcante
na vida e no imaginário dos brasileiros. Plim-Plim.
Uma
breve cronologia
1904
- Roberto Marinho nasce na cidade do Rio de Janeiro a 3 de
dezembro de 1904, filho do jornalista Irineu Marinho e de
Francisca Pisani Marinho. Faz seus estudos na Escola Profissional
Sousa Aguiar e nos Colégios Anglo-Brasileiro, Paula
Freitas e Aldridge.
1925 - Com a morte do pai, em agosto, Roberto Marinho ingressa
no recém-fundado vespertino O Globo, onde exerce as
funções de copidesque, redator-chefe, secretário
e diretor.
1930 - O jornal empenha-se na campanha eleitoral, com simpatia
pelos candidatos da Aliança Liberal Getúlio
Vargas e João Pessoa.
1945 – Depois de apoiar durante longo tempo Getúlio
Vargas, O Globo muda de posição e fica a favor
da redemocratização do País.
1964 – Apóia o golpe militar que apeia do poder
o presidente João Goulart.
1965 – Inauguração da TV Globo, que viria
a se tornar uma das mais importantes redes de TV do planeta.
1972 – Primeira transmissão em cores da TV Globo
1993 – É eleito para a Academia Brasileira de
Letras na vaga do também jornalista Otto Lara Resende
2003 – Morre em decorrência de edema pulmonar
no dia 6 de agosto |
Um
período na Irineu
Marinho, 35
Trabalhei
em O Globo entre 1985 e 1987, em sua famosa sede da rua Irineu
Marinho, 35, no Centro do Rio de Janeiro. Nesses quase três
anos, vivi uma situação antagônica: mal
vi dr. Roberto – como o chamávamos –, mas
eu e todos os colegas de redação o percebíamos
em cada instante, em cada detalhe do jornal, em cada fechamento.
Diferentemente de outros grandes “barões”
da imprensa brasileira, como M. F. do Nascimento Brito, do
antigo e glorioso Jornal do Brasil, Victor e Roberto Civita,
da Editora Abril, os Mesquita no Estadão ou os Frias
na Folha, sempre muito visíveis e até mesmo
acessíveis, Roberto Marinho não era “figurinha
carimbada” na redação de O Globo, por
mais que mantivesse sua sala um andar acima do nosso e chegasse
sempre muito cedo ao prédio. Dr. Roberto, na verdade,
dava expediente duplo: pela manhã, ele ia para O Globo,
à tarde, estava na TV Globo.
Mas
como já disse, se ele não era visto, ele era
percebido por todos e sua presença se fazia sentir
principalmente por meio de seus dois homens de confiança
no jornal, Henrique Caban, secretário de redação,
e Evandro Carlos de Andrade, o todo-poderoso diretor de redação,
que ajudou Roberto Marinho a alavancar O Globo e depois foi
levado por ele para chefiar o jornalismo da TV Globo. Como
uma aura acima do bem e do mal, dr. Roberto pairava pela redação
e a todo momento podíamos ouvir a voz aflita de alguma
secretária: “Evandro, dr. Roberto quer falar
com você”, “Caban, dr. Roberto no telefone”...
E assim se passava o dia, com “o velho” –
como alguns o tratavam meio sorrateiramente, ao mesmo tempo
com carinho, respeito e uma certa dose de receio – presente
a todo o momento. Seu controle sobre a redação
era absoluto – ele podia não estar por lá
fisicamente, mas sabia de tudo. E fazia questão de
opinar sobre as principais matérias e a primeira página,
por mais que respeitasse as decisões que as chefias
e os editores tomavam. Ele não queria intervir. Ele
queria saber. E, em alguns momentos, alterar uma rota que
para ele talvez não fosse a mais adequada. Essa é
uma das imagens mais fortes que guardo de dr. Roberto: a do
homem, a do jornalista, sempre presente em praticamente todas
as ações do jornal, por mais que para nós,
a raia miúda, ele fosse quase como um ícone,
um holograma.
Mas
há uma outra imagem de dr. Roberto que me marcou, e
que talvez, por mais frugal que possa ser, resuma a sua intensa
vitalidade. Certo dia de 1986, creio eu, estava chegando cedo
ao Globo ao mesmo tempo que dr. Roberto. Seu carro parou diante
da escada de dez, doze degraus, que levava ao hall dos elevadores,
ao mesmo tempo em que me preparava para subi-la. Eu tinha
na época 24 anos, e dr. Roberto, 81. Quando havia subido
metade da escada, senti que tinha perdido a parada: “o
nosso companheiro Roberto Marinho” já havia vencido
os degraus num pique só e entrava em seu elevador privativo.
O “velho” não tinha mesmo tempo a perder.
E sabia disso.
(M.
R.) |
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