Recentemente,
o presidente da República, buscando justificar algumas políticas
de governo, fez referência, em discurso para líderes
sindicais, à ação de um medicamento “que
dói mas cura” – a benzilpenicilina benzatina
–, cuja utilização pelo auditório teria
sido ampla no combate a determinadas infecções.
“Doer”
e sofrer é realmente necessário? Não seria
mais fácil prevenir do que curar? Mais insidiosa do que a
crescente resistência dos agentes patogênicos às
terapias não seria a resistência cultural à
mudança de valores, que não dependem apenas da “cultura
popular”, mas do próprio sistema instituído,
um dos maiores obstáculos em saúde pública?
Embora
poucos discordem de que é mais fácil prevenir do que
curar, ainda prevalece a noção de que os remédios,
embora “amargos”, sanariam os males derivados da deterioração
da qualidade de vida, das condições psicossociais
anômalas que levam aos comportamentos de risco, derivados,
por sua vez, de “valores em risco”, que os sustentam.
O Estado
é responsável pelas políticas públicas
que implementa, não podendo se omitir face às conseqüências
de uma cultura largamente incentivada pela ciranda dos mercados,
pela propaganda, pelos meios de comunicação social,
que tendem a reduzir as pessoas à condição
de “mercadoria” e a função pública
a um mero apêndice.
Políticas
restritas à salvaguarda individual ignoram que ninguém
se salva às custas do sacrifício dos demais. O respeito
mútuo não pode ser introduzido como uma virtude cívica
se não for produto de uma configuração em que
intervêm quatro dimensões de mundo (íntima,
interativa, social e biofísica), que se imbricam reciprocamente.
A degradação
da cultura é mais grave do que a ausência de direitos
prescritos. Além dos códigos, estruturas e instituições,
dos direitos e deveres estatuídos, estão os processos
e condições que os sustentam. Direitos civis, políticos,
econômicos, sociais necessitam de uma cultura que os sustente,
sob pena de figurarem apenas no papel.
Rompido
o tecido cultural, as salvaguardas públicas tornam-se inócuas,
o bem comum perde significado, as massas deixam-se levar pelo carrossel
do consumo indiscriminado; oportunistas espertos passam a ditar
“normas” e “valores”, em um gigantesco shopping
mall de liberdades e prazeres imediatos, desvinculados de qualquer
responsabilidade.
Princípios
e idéias, valores e comunicação genuína
são substituídos por jargões, slogans e propaganda
interesseira. O declínio cultural reflete-se na perda de
sensibilidade e capacidade crítica para discernir e implementar
valores estéticos, éticos e cu|turais, que tornariam
a vida melhor, se fossem integrados a diferentes aspectos da atividade
humana.
Vítima
das calamidades do dia, o homem comum não consegue desembaraçar-se
da rede diabólica dos interesses e artimanhas políticas
e econômicas, acelerando-se o círculo vicioso da pobreza,
da deterioração cultural e ambiental, da derrocada
dos valores que distinguiriam a condição humana do
estado de necessidade das bestas selvagens.
Conflitos
e tensões, apresentados de forma fragmentada e superficial
no espaço virtual dos mass media, diluem-se nos contextos
dramático-narrativos, reduzindo as antinomias e dilemas coletivos
a peculiaridades individuais, legitimando modelos de conduta que
levam a graves distorções culturais (“salve-se
quem puder”, “leve vantagem”, “resolva no
tapa”).
A “inclusão”,
nesse sistema, gera um círculo vicioso, em que os novos “incluídos”
passam a integrar o coro daqueles que debitam os problemas às
próprias vítimas, apesar da desigualdade, do clientelismo,
das diferenças de origem, sem questionar as opções
de desenvolvimento (desenvolvimentista, neoliberal ou de desenvolvimento
humano).
A tentativa
de colocar remendos em tecidos rotos contribui para preservar um
estado de coisas que, em seu conjunto, é nocivo à
qualidade de vida, perpetuando a noção de poder como
domínio e exploração, riqueza como exploração
predatória, crescimento como “expansão ilimitada”,
trabalho como “especialização segmentada”
(O’Sullivan).
Conforme
ensina Erich Fromm, liberdade não é apenas a ausência
de coerção externa (liberdade “de”), mas
é a capacidade de sentir, refletir e atuar (liberdade “para”).
Permitir, democraticamente, que todos possam tocar piano não
significa que as pessoas, indistintamente, tenham liberdade para
tocá-lo, se nunca aprenderam como.
Questões
metodológicas, como a integração dos conteúdos
de ensino, não podem relegar a questão dos valores
às “trocas de mercado”, ignorando os aspectos
éticos necessários à formação
do homem, que, na visão de Bertrand Russel, antecede a formação
do cidadão. Educação, formação,
informação, instrução têm conotações
diferentes.
Para
uma prática emancipadora, recente publicação
(Rockefeller Foundation) recomenda a observação dos
seguintes princípios:
• considerar as pessoas e os grupos como componentes essenciais
de sua própria mudança, ao invés de objetos
da mudança.
• apoiar o diálogo e o debate sobre os assuntos fundamentais
que os preocupam, ao invés de elaborar, testar e distribuir
mensagens.
• introduzir as mensagens com sensibilidade no diálogo
e debate, ao invés de repassar de forma didática informações
de peritos e técnicos.
• enfocar as normas sociais e políticas, a cultura
e os apoios ambientais, não comportamentos individuais.
• negociar com as pessoas o melhor modo de levar adiante um
processo participativo (alianças), ao invés de tentar
persuadi-las a fazerem algo.
• enfatizar o papel central das pessoas avetadas pelas questões,
ao invés de dirigir o processo por peritos e técnicos
de agências externas.
É
preciso incentivar a organização da população
para a discussão de projetos, o desenvolvimento de espaços
comunitários, a participação de pessoas de
diferentes idades, profissões e condição social,
articulando órgãos públicos e privados (unidades
de ensino, saúde, segurança pública, igrejas,
clubes e associações diversas).
Ao
invés de segregar pessoas de idades diferentes em programas
isolados, melhor seria propiciar o encontro entre as várias
faixas etárias, tendo em vista a convivência, a troca
de experiência, o diálogo, o entendimento mútuo,
a exemplo do que ocorre nas culturas ditas “primitivas”,
onde todos participam de tudo.
Nas
periferias das cidades, crianças e jovens, fora da escola
e fora do “mercado” de trabalho, ficam restritos às
ruas e à televisão, tentados pela criminalidade, na
ausência de espaços comunitários de acolhimento,
onde participariam de projetos, voltados para suas necessidades
de educação, formal e não-formal, de saúde,
esportes, cultura e lazer.
Estar
no mundo deixaria de ser uma contingência, constituindo-se
em um processo de opção e escolha, que implica a assunção
solidária de responsabilidades, tanto pelo seu devir pessoal
como pelo coletivo. A descoberta do outro é um processo que
leva à ipseidade (Ricoeur), revelando não apenas o
outro “próximo”, mas um “novo outro”
em nós mesmos.
Superado
o receio do desconhecido, o sujeito, “suporte de um processo
de verdade”, transforma-se, incluindo-se em “ocorrências
locais do processo de verdade” (Badiou). Os sujeitos descobrem
e analisam a configuração do campo gerador dos eventos,
atuando sobre variáveis relevantes e gerando configurações
alternativas para melhor qualidade de vida.
A expressão
e o registro do que cada um gostaria de oferecer ao grupo e o que
esperaria receber dele constituiria um roteiro preliminar em termos
de ofertas e demandas no nicho sociocultural, que orientaria a formulação
de objetivos e a organização das tarefas. Aonde chegar,
o que fazer, como fazer, depende da participação de
todos. É uma decisão coletiva.
A qualidade
de vida depende dos nichos socioculturais, de ambientes saudáveis,
dos grupos primários, das “redes de apoio”, essenciais
à auto-estima e ao controle dos estigmas (mas que, em alguns
casos, podem agravar os problemas, como o consumo de drogas, atribuído
às “más companhias”, mas que expressa,
na verdade, o próprio mal-estar social).
Embora
os impliquem ao longo de suas vidas, as questões transcendem
os indivíduos. De acordo com a Organização
Mundial da Saúde, é preciso construir cidades saudáveis,
cujas características são:
•
comunidades fortes e solidárias, não autodestrutivas;
• ambientes seguros e limpos (inclui a moradia);
• ecossistemas estabilizados e sustentáveis;
• ampla participação e controle públicos
nas questões de qualidade de vida;
• atendimento às necessidades básicas;
• acesso a variada gama de experiências e recursos;
• contatos, interação e comunicação;
acesso universal aos cuidados de saúde/doença;
• alto nível de saúde pública;
• entorno compatível com a preservação
da memória urbana; da herança cultural e biológica
dos cidadãos;
• economia diversificada, vital e inovadora.
Observadas
essas características, muitos dos problemas de convivência,
saúde, educação, cultura e qualidade de vida,
que incidem sobre as cidades hodiernas, seriam equacionados, sem
necessidade de aplicar qualquer injeção dolorosa,
cuja eficácia tem-se revelado cada vez mais problemática,
ao tentar pinçar as bolhas-problema na superfície,
ignorando o que ocorre no caldeirão efervescente.
André
Francisco Pilon é professor da Faculdade de Saúde
Pública da USP
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