Surge
a fachada do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Carros
estacionados. Bem alto, música de Villa-Lobos. Corte abrupto.
Um caixão, pétalas de flores vermelhas, um corpo.
Mãos rijas. O rosto, antes coberto por um lenço, aparece
inteiro na tela. As imagens são do curta-metragem de Glauber
Rocha Di-Glauber, ou simplesmente Di, como ficaria mais conhecido.
Rodado em 1976, durante o funeral do pintor Emiliano Di Cavalcanti,
o filme viria a ser exibido em algumas sessões no próprio
MAM, na TV Educativa e no Festival de Cannes, onde, por indicação
de Roberto Rosselini, foi premiado. Poucos foram, no entanto, os
que assistiram à homenagem de Glauber ao amigo. Alegando
danos morais, Elizabeth Cavalcanti, filha adotiva do pintor, entraria
com um processo que levaria à interdição da
obra, desde 1981.
Guardado
nas prateleiras do Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro,
em latas empoeiradas, o filme perdurou como lenda do cinema nacional,
um desconhecido ilustre. Neste mês, no entanto, com a dissertação
de mestrado “Di-Glauber: filme como funeral reprodutível”,
apresentada na Escola de Comunicações e Artes (ECA)
da USP, uma nova história para o curta pode estar começando.
Passados mais de 20 anos, o mítico filme estaria finalmente
liberado para exibição, ou melhor, nunca teria estado
de fato interditado. É o que sustenta José Mauro Gnaspini,
autor do trabalho. Advogado formado pela Faculdade de Direito da
USP, Gnaspini mostrou que não existem fundamentos jurídicos
para a interdição. “A sentença jamais
foi capaz de produzir efeitos”, afirma ele.
Quando
começou a estudar o filme, ainda sem desconfiar da irregularidade,
o advogado foi atrás de uma cópia do processo no Arquivo
Público do Rio de Janeiro. Qual não foi sua surpresa
ao descobrir que ele sumira. Foi preciso uma peregrinação
aos diversos escritórios de advocacia envolvidos no caso
para que ele conseguisse reconstituí-lo e descobrir que algo
estava errado: o processo teria se constituído de forma irregular.
A filha de Di moveu a ação apenas contra a Embrafilme,
detentora dos direitos comerciais, enquanto Glauber Rocha, idealizador
e realizador, não participou do processo que lhe proibiu
a obra. “As partes envolvidas não foram constituídas
devidamente”, diz o pesquisador. “O cineasta não
poderia transferir o seu direito a ninguém, só ele
tinha condições de defender o seu filme. A Embrafilme
poderia responder pela questão patrimonial, mas o direito
do autor é inalienável.”
Gnaspini
explica que não há necessidade de que a Justiça
se manifeste para que a proibição seja considerada
nula. Um processo irregular seria como um processo inexistente,
que, dessa maneira, não teria jamais adentrado o mundo do
direito. Segundo ele, a filha de Di poderia agora mover uma nova
ação, desta vez contra o espólio de Glauber
Rocha. Contudo, as chances de que consiga um novo embargo são
pequenas. “O conhecimento que se tem acumulado sobre a questão
do direito de autor é hoje muito maior do que o que se tinha
naquela época.” Como figura notória, Di Cavalcanti
teria seu direito à intimidade e à própria
imagem diminuído. Além disso, a própria forma
como foi organizado o funeral, realizado não dentro de um
espaço familiar, mas no Museu de Arte Moderna, como uma cerimônia
de caráter público, demonstraria que a família
não expressou nenhum desejo de reserva. Orientado por Rubens
Machado, professor do Departamento de Cinema da ECA, Gnaspini desvenda
não apenas a farsa da proibição, mas também
resgata a história do filme e o contempla esteticamente.
“Como vinha do Direito, ele conseguiu olhar para as duas partes
envolvidas em Di. Primeiro, fez um ótimo trabalho de apreciação
das questões estéticas. Depois, já com esse
embasamento, pôde partir para os aspectos jurídicos
envolvidos. Acho que uma nova fase para esse filme começa
agora”, diz o crítico Ismail Xavier, também
professor do Departamento de Cinema da ECA e um dos maiores estudiosos
da obra de Glauber Rocha. “Essa pesquisa é um exemplo
de como nós, de dentro da Universidade, ainda podemos intervir
diretamente sobre esse cenário.”
Di
foi o filme que Glauber acreditava dever ao amigo. Em uma narração
que mais parece a de um locutor de rádio apressado, o cineasta
faz essa revelação no curta-metragem. “Uma vez
ele me telefonou do Rio pedindo o seguinte: quero que você
venha aqui me filmar.” O diretor de Terra em transe não
foi. “Não vi mais o Di e naquele dia, então,
acordando de manhã, ao receber o impacto da notícia
da morte dele, resolvi fazer um filme.”
Primeiro,
telefonou para Carlos Drummond de Andrade: “Vamos até
lá, Di não morreu, ele está vivo”. Depois,
partiu em uma Brasília vermelha, com uma câmera de
35 milímetros na mão. Juntou pontas de negativos,
sobras de filmes, chamou um fotógrafo, Mário Carneiro,
e uma mulata, a modelo e amante de Di Marina Montini. O destino
era o Museu de Arte Moderna, onde estava sendo velado o corpo. Aos
brados, o diretor dava instruções para o cinegrafista,
pedia àqueles que tocavam no morto para olharem para a câmera.
O caixão já estava fechado e o cortejo andava, quando
ele gritou: “Pára o caixão. Pára que
eu quero a câmera do outro lado”.
Exageros
glauberianos à parte, o que Gnaspini esclarece é que,
apesar de ter sido visto como insulto, Di-Glauber é uma saudação
à arte do pintor das mulatas e à sua genialidade.
A história da amizade entre os dois vai sendo desfiada pelo
cineasta: “Apesar de uma parte da crítica ter negado
as suas grandes qualidades, o Di Cavalcanti na verdade foi um pintor
internacional, assim tão importante para o Brasil quanto
Picasso para a Espanha”.
Ao
som de Paulinho da Viola e Pixinguinha, imagens do velório
e do enterro, no cemitério São João Batista,
vão sendo entrecortadas por quadros do pintor modernista.
O ator Antônio Pitanga samba diante deles. Durante os 18 minutos
do filme, a voz de Glauber continua alta, e ele fala de tudo: de
arte, de política, de suas concepções estéticas.
O cineasta, que naquele ano voltava ao Brasil depois de um giro
pelo mundo – andara de Nova York ao Congo –, fazia de
Di um inventário de suas idéias. Além disso,
os próprios traços da pintura do artista, barrocos,
teriam sido transmutados por Glauber e impressos na sua forma de
filmar.
Mais
ambicioso que isso – e um dos pontos mais originais do trabalho
de Gnaspini – é o fato de o diretor ter criado, no
filme, uma espécie de funeral alternativo, que se repetiria
toda vez que Di-Glauber fosse projetado. “Dentre os procedimentos
típicos de seu cinema alegórico, numa subversão
carnavalizada dos ritos tal como estavam, na convencionalidade do
velório, Glauber empresta ao filme, em si, um caráter
de rito”, escreve o advogado. “Cada exibição
seria como que uma nova missa, um novo desenrolar do rito, eternamente
repetido como produto místico da reprodutibilidade.”
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Cenas
do polêmico documentário de Glauber: do velório
ao funeral , a estética nervosa e a homenagem ao amigo
pintor |
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