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Tráfico
de drogas se tornou o maior problema da segurança
pública a partir dos anos 70 |
Cinqüenta
e três anos dedicados ao ensino da saúde pública
e à pesquisa de doenças transmitidas por insetos dão
ao professor Osvaldo Paulo Forattini, do Departamento de Epidemiologia
da Faculdade de Saúde Pública da USP, a liberdade
de dizer que o mundo ainda está longe de se considerar livre
das doenças que mais atingiram e mataram brasileiros nas
primeiras décadas do século 20, segundo pesquisa do
IBGE divulgada em 29 de setembro: as infecciosas e as parasitárias.
Se a malária, febre amarela, leishmaniose, doença
de Chagas e assemelhadas vão cedendo diante das ações
profiláticas, outras doenças transmissíveis
surgem no mundo e formas antigas ameaçam voltar. E não
só em países subdesenvolvidos; nos Estados Unidos,
foram descobertos já no início do século 21
casos de febre Nilooeste, assim chamada porque o vírus causador
foi descrito naquela região do Egito. E o que dizer da varíola
humana em macacos, também encontrada nas terras do Tio Sam,
e que ameaça com o retorno de uma das doenças mais
temidas e considerada erradicada? Agora existe ainda uma agravante:
no início do século passado as viagens entre continentes
duravam semanas ou quinzenas, podendo-se dizer que os passageiros
submetiam-se a quarentenas nos próprios navios; atualmente,
os mesmos percursos se fazem em horas, facilitando os contágios.
Daí porque o professor não afasta a possibilidade
de o mundo fazer, no século 21, o caminho inverso ao das
décadas anteriores.
Favelas
– Um dos grandes inimigos da saúde pública é
o incontrolável aumento da população mundial
– de aproximadamente 3% ao ano –, embora a taxa de natalidade
tenha caído drasticamente, mesmo em países em desenvolvimento
como o Brasil; outro, é a multiplicação das
favelas, onde as condições de vida são precárias
e geradoras de doenças. De acordo com cálculos da
ONU divulgados no início da semana passada, um sexto da população
mundial, ou 1 bilhão de pessoas, vive em favelas, número
que pode dobrar em 30 anos se nada for feito para combater a pobreza.
A maior concentração encontra-se na Ásia (60%)
e na África (20%); a América Latina aparece com 14%
e os países ricos com os restantes 6%.
Se
as condições de vida pioram para parcela cada vez
maior da humanidade, se novas doenças flagelam continentes
e aumentam os males crônicos e degenerativos, como explicar
que também seja crescente a esperança de vida na maior
parte dos países? Forattini credita isso ao arsenal terapêutico,
mas não descuida da luta em favor de uma vida mais saudável
para todos. Agora mesmo está lançando a segunda edição,
atualizada com novos capítulos, da obra Ecologia, Epidemiologia
e Sociedade, da Editora Artes Médicas, com 710 páginas,
das quais mais de cem para glossário e índice taxonômico,
além de índice de autores citados. Ele, que traz em
si mesmo seqüelas de leishmaniose contraída no Amapá,
quando foi obrigado a tomar as tóxicas drogas arsenicais
para se curar; que trabalhou com a Superintendência de Controle
de Endemias (Sucen) e que se admira de nunca ter tido malária,
embora estivesse exposto ao mosquito transmissor, agora, octogenário,
trabalha em laboratório e em bibliotecas, preocupado com
as conseqüências da ingerência do homem na natureza.
“A humanidade”, escreve Forattini no livro em lançamento,
“constitui biomassa que representa apenas 4x105. do total
existente na Terra. No entanto, o poder de controle sobre a natureza,
que ela atualmente atingiu, é tão desproporcional
a essa representação que chega a afetar toda a biosfera...
E isso é facilmente compreensível, uma vez que o homem
altera as regras que mantêm a dinâmica do ecossistema,
fazendo-o regredir.”
A mão
do homem na natureza tem conseqüências para a saúde
pública. Observações em tribos primitivas,
ainda hoje existentes na Amazônia, evidenciam que doenças
infectantes apenas na fase aguda, como sarampo e gripe, não
se perpetuaram nessas populações antes que elas tivessem
tido contato com a civilização. Do mesmo modo, a Aids
pode ter tido origem em macacos africanos, passando para o homem
acidentalmente e se disseminando rapidamente graças ao aperfeiçoamento
dos meios de transporte e aos movimentos migratórios. A atual
pandemia seria, então, mais conseqüência do desenvolvimento
do que do subdesenvolvimento; da tecnologia, que permitiu superar
as barreiras naturais e sociais. Essa e outras doenças, como
a própria malária, agora se transmitem mediante o
uso de agulhas e seringas e de transfusão de sangue. O processo
contrário também ocorre: a ancilostomíase intestinal
decresce à medida que aumenta a urbanização,
pois a pavimentação em larga escala torna o solo impróprio
para o desenvolvimento dos parasitos.
Forattini
lembra que nas últimas décadas novas doenças
entraram no vocabulário médico, além da Aids.
Menciona casos de legionelose, de doença de Lyme, de febre
purpúrica brasileira e de infecções decorrentes
de mutações ou recombinações gênicas
entre agentes virais. E faz um alerta: por influência da cozinha
oriental, propaga-se nas sociedades ricas o costume de comer carnes
cruas, especialmente de peixes, o que tem possibilitado a infestação
acidental por larvas de nematóides Anisakis, parasitos normais
de animais marinhos, resultando em quadros inflamatórios
gastrointestinais.
Trabalhos
de campo, o professor aposentado só conta um, com galinheiros
experimentais. Foi quando, no interior de São Paulo, fechou
três galinhas em cercado de sapé infestado de “barbeiros”
transmissores da doença de Chagas. Depois de anos de confinamento
das galináceas, observou que os insetos – que se alimentavam
do sangue das aves – rejuvenesciam e saiam em revoada de seis
em seis meses, como fazem as içás (formigas) –
em março/abril e em outubro/novembro. A descoberta permitiu
estabelecer vigilância epidemiológica contra os “barbeiros”
no primeiro período do ano para certas espécies e,
no segundo, para outras.
Discreto
ao contar sobre sua carreira de pesquisador e professor, Forattini
diz que não sabe a que creditar o excelente conceito de que
desfruta no meio acadêmico: “Não viajo, não
vou a congressos, saio raramente, estou na USP há 53 anos,
nunca trabalhei em outra universidade e não aprovo a exigência
da língua inglesa nas publicações científicas”.
O que ele aprova mesmo, quando está fora da faculdade, é
o Palmeiras, mesmo que o time esteja disputando a Segunda Divisão,
e a música erudita, sem desdenhar de qualquer outro gênero.
Criminalidade
– Os delitos, como aconteceu com as doenças, mudaram
de natureza no decorrer do século 20, também de acordo
com a pesquisa do IBGE divulgada no final de setembro. Nas primeiras
décadas, predominaram os crimes contra a pessoa física;
a partir dos anos 40, avultam os delitos contra o patrimônio
e, no final, os derivados do tráfico de drogas. Estudos
anteriores às estatísticas divulgadas pelo IBGE, feitos
pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, já
confirmavam essa tendência. O sociólogo e pesquisador
do NEV Fernando Sala observa que, nos primeiros registros policiais
do século, aparece grande número de condenados por
homicídio, com uma característica marcante: os crimes
ocorriam majoritariamente em família ou em ambiente de trabalho.
Os casos de latrocínio ou roubo contra estranhos eram mínimos.
Nas décadas de 30 e, principalmente, 40, e até os
anos 80, o crime volta-se contra o patrimônio e também
contra a pessoa, com agressões e homicídios, agora
envolvendo também desconhecidos do autor do delito. Daí
por diante, principalmente a partir dos anos 70, o maior problema
de segurança pública diz respeito ao tráfico
de drogas. Um flagelo mundial. Todos os países passam a combatê-lo,
criam novas leis e aparatos de repressão, gastam fortunas;
a justiça aparelha-se melhor e investe no sistema penitenciário,
multiplicando o número de presos. Um crescimento do crime
associado a novas leis e novas ações repressivas.
Quem
indagar sobre a razão do aumento do tráfico terá
de levar em conta, para a resposta, que se trata de uma atividade
altamente lucrativa. O que antes estava circunscrito a grupos reduzidos
de consumo dissemina-se por camadas mais amplas, e a produção
da droga movimenta economias clandestinas. E onde há muito
dinheiro, há também empecilhos para combater a produção
e a comercialização da droga. Arma-se uma teia complexa
de dinheiro, demanda, oferta e corrupção.
Nas
últimas duas décadas do século ganhou força
o uso de cocaína e se tornou mais fácil o acesso aos
elementos químicos para processá-la, sem esquecer
ainda que mudou o perfil da sociedade, agora mais tolerante e receptiva
às drogas. Na ponta oposta à gente de fortuna, a miséria
ampliada, criando condições para o envolvimento de
uma população que procura alternativas de sobrevivência.
O pesquisador do NEV não confunde as coisas, nem atribui
aos favelados a condição de grandes consumidores de
droga. É certo que nas áreas degradadas criam-se pequenas
redes de tráfico, às vezes conectadas com os grandes
centros produtores e distribuidores, mas o consumo maior está
sempre nas classes média e alta. O empobrecimento não
se liga necessariamente ao vício. Para fugir a essa alternativa
de vida, deve-se levar em conta outros fatores, como a formação
moral, religiosa e familiar do socialmente excluído.
Segundo
Sala, existem formas de delito bem mais danosas, mas invisíveis,
que mereceriam maior atenção dos governantes. São
os crimes de colarinho branco, contra o sistema financeiro e a ordem
tributária. Algumas vezes eles são trazidos à
tona pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, mas
geralmente ficam esquecidos em seguida.
O Núcleo
de Estudos da Violência faz a sua parte. Realiza estudos sobre
temas relevantes para a vida nacional, discute os resultados com
autoridades e com a população, por intermédio
das organizações não-governamentais, e apresenta
subsídios para a definição de políticas
públicas para o setor. Um de seus ex-diretores, Paulo Sérgio
Pinheiro, foi secretário de Direitos Humanos no governo Fernando
Henrique Cardoso. Agora, a entidade é dirigida pelo sociólogo
Sérgio Adorno.
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Forattini:
riscos ainda presentes |
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