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Estudantes
e profissionais da USP viajaram 3 mil quilômetros para
transmitir cidadania, saúde e educação |
Pés
descalços, olhar distante e corpo franzino. Essa é
a aparência da maioria das crianças atendidas pela
Clínica Odonto-Fonoaudiológica implantada no centro
da cidade de Monte Negro, em Rondônia, numa parceria entre
o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP –
que mantém uma subunidade no município – e a
Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB), também da USP. Distante
250 quilômetros de Porto Velho, capital do Estado, aquela
cidade parece estar distante mesmo é de tudo. A população
local, cerca de 15 mil pessoas – considerando a comunidade
urbana e a rural –, necessita de cuidados básicos e,
principalmende, de muita informação. “Eles precisam
de tudo. Precisam de orientações básicas, desde
a importância de ter dentes até a necessidade de escová-los
diariamente”, constata o coordenador dos programas de Odontologia
em Saúde Coletiva em Monte Negro, José Roberto de
Magalhães Bastos. Doutor em saúde pública,
livre-docente em Odontologia Preventiva e professor titular de Saúde
Coletiva da FOB, Bastos tem uma vida dedicada à saúde
pública brasileira. Esteve no primeiro Projeto Rondon, na
década de 60, ocasião em que entendeu o sentido de
sua profissão. “Aquela foi uma experiência definitiva
para solidificar a saúde pública em minha vida”,
explica.
Com
essa bagagem, Bastos, por iniciativa da Reitoria da USP e da diretoria
da FOB, juntou-se aos pesquisadores que já fizeram daquela
região um local de excelência – ali são
desenvolvidas pesquisas de ponta, sobretudo na área de saúde
pública e de doenças tropicais –para oferecer
um aporte estratégico na montagem da infra-estrutura da subunidade
da USP em Rondônia, com pesquisas de campo na área
de odontologia e fonoaudiologia. “Utilizamos técnicas
restauradoras simples e baratas no atendimento em saúde pública.
Isso, no entanto, não compromete a eficácia dos resultados
obtidos”, conta.
Sol,
estrada e poeira – Tudo começou em junho de 2002, quando
a diretora da FOB, professora Maria Fidela de Lima Navarro, esteve
em Monte Negro, com o professor Bastos e o professor João
Adolfo de Caldas Navarro – homenageado postumamente, emprestando
seu nome à clínica odontológica de Monte Negro
–, para conhecer a cidade e o campus avançado da USP.
Um mês depois, ocorreu a primeira viagem de estudantes de
Odontologia, graduandos e pós-graduandos do campus de Bauru,
para levar atendimento odontológico à população
rondoniense. A partir daí, equipes passaram a se deslocar
de Bauru a Monte Negro com mais freqüência.
A mais
recente viagem ocorreu no período de 8 a 22 de julho passado.
De ônibus, seguiram 15 cirurgiões-dentistas e 16 fonoaudiólogos.
Foram quase 3 mil quilômetros de estrada, poeira e cansaço.
Entre os passageiros, cinco graduandos da Unaerp (Universidade de
Ribeirão Preto), 19 graduandos e cinco pós-graduandos
da FOB e dois alunos de cursos de especialização do
Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais
da USP, o Centrinho de Bauru. Um misto de ansiedade e medo do que
viria guiou esses jovens e corajosos profissionais em 46 horas de
viagem.
Ao
chegar, pela manhã, o alívio natural de quem viajou
muito e quer descansar. Sombra? Não: sol. Um calor de 38º
ao longo do dia, com queda de cerca de 20º com a chegada da noite.
Água fresca? Sim. Pelo menos nos alojamentos próximos
à sede do campus avançado há bastante água.
Um dia para se organizar e reconhecer o local, algumas horas de
sono e eis o primeiro dia de trabalho. “Eu não me surpreendi
tanto com o que vi, porque estou habituado a trabalhar com material
escasso em locais pouco ideais”, relata Ricardo Pianta, de
21 anos, especializando do curso de Saúde Coletiva do Centrinho.
Nesse curso, os alunos têm 28 horas de prática e o
exercício profissional é desenvolvido em instituições
filantrópicas da cidade de Bauru – daí a familiaridade
com situações e ambientes pouco favoráveis
para o trabalho odontológico.
Mas
nem todos reagiram com a mesma naturalidade. André Luiz Fortulan,
de 27 anos, quartoanista do curso de Odontologia da FOB, diz ter
ficado surpreso com as condições de higiene bucal
e com a severidade das cáries apresentadas pela comunidade.
“Eu estava psicologicamente preparado para uma situação
muito diferente da que vivemos aqui no Sudeste, mas não pensei
que fosse tão discrepante”, observa. Os estudantes
relatam que muitas crianças demonstram não ter familiaridade
com a escova de dentes, sinal claro da falta de hábito de
higienização bucal. “Algumas delas coçavam
a cabeça com a escova ou varriam o chão”, conta
Pianta.
Mas
nenhum desses percalços desanimou os profissionais. Pelo
contrário: por mais difícil que seja, todos reconhecem
o peso dessa experiência, profissional e de vida. “Justamente
em virtude dos desafios geográficos, culturais e profissionais
que os alunos precisam enfrentar, selecionamos não só
os melhores projetos, mas também aqueles realizados por alunos
que têm perfil para enfrentar essas barreiras”, explica
o professor Bastos.
Um
dos projetos escolhidos para ser desenvolvido durante a expedição
de julho foi o do estudante de especialização do Centrinho
Ricardo Pianta. Ele desenvolveu um estudo piloto sobre “A
Organização das Políticas Públicas de
Saúde em Monte Negro”. No trabalho, traçou um
perfil do Estado de Rondônia, verificando o crescimento populacional
nas últimas décadas e as regiões que contribuíram
para o fluxo migratório no Estado. “Entre os migrantes,
prevalece a população paranaense, com porcentual de
39%.”
O principal
foco do projeto são as questões sociais, ligadas às
condições de vida da população urbana,
periurbana e rural. “Avaliando as condições
estruturais do município, notamos que, embora haja postos
de saúde e unidades básicas, não há
empenho político para oferecer condições ideais
de saúde pública à população”,
enfatiza Pianta. “Daí a importância fundamental
da sociedade organizada para viabilizar atendimentos especializados,
como ocorre em Monte Negro com a Liga Rural.”
A Liga
Rural – Monte Negro abrange grande parte da selva amazônica
e sua área rural é dividida em linhas. Cada linha
é presidida por uma associação. Diante da omissão
do poder público municipal em relação à
comunidade, as associações de todas as linhas se organizaram
e, em outubro de 2002, criaram a Liga Independente de Saúde
Rural (Lisura). São dois os seus objetivos principais: implementar
ações na área de saúde (medicina, odontologia,
fonoaudiologia), com medidas preventivas e curativas precoces, e
promover o desenvolvimento da agricultura. “Não fosse
essa organização, seria inviável convocar as
pessoas para os atendimentos”, explica o professor Bastos.
E não
é só isso. A Lisura dimensiona a demanda e viabiliza
transporte para que a comunidade vá até a clínica
odontológica, no centro da cidade, e para que os cirurgiões-dentistas
e as fonoaudiólogas se desloquem até as linhas rurais.
Para custeio das atividades, a liga arrecada R$ 5 por família.
“A USP, através dos professores do ICB, assessora e
elabora projetos para a Lisura, realiza atendimento médico
gratuito de seus membros e treina recursos humanos na área
de saúde”, explica o coordenador do Núcleo Avançado
de Pesquisas da USP em Monte Negro, Luís Marcelo Aranha Camargo,
também presidente de honra da Lisura – em reconhecimento
ao incentivo dado pela USP na criação da liga. “A
FOB assessora a Liga Rural na área de saúde bucal
e fonoaudiológica, prestando atendimento gratuito à
população em regime de mutirão, além
de atuar na formação de auxiliares odontológicos”,
completa o professor Bastos. Os cursos são importantes para
amenizar outro problema enfrentado pela comunidade local: a ação
de “dentistas práticos”, pessoas sem formação
acadêmica que “fazem o que podem” para atender
à população.
Na
lista de desafios, essa comunidade ainda enfrenta muitos problemas.
O descaso é um deles. “Todo atendimento médico
é realizado no hospital municipal, distante 100 quilômetros
de alguns núcleos rurais”, conta Aranha Camargo. Além
disso, a comunidade rural enfrenta a falta de sistemas de comunicação
(telefones e rádios), estradas malconservadas e muitas dificuldades
para trabalhar. No tocante à saúde, eles ainda são
atingidos de malária, cárie dentária, verminoses,
leishmaniose, lepra, hepatite B, gravidez indesejada e precoce,
hipertensão arterial e diabete tipo 2. “As ações
da USP vieram preencher, mesmo que parcialmente, essa lacuna do
sistema de saúde municipal. Pela primeira vez na vida, muitas
pessoas estão recebendo assistência odontológica
e fonoaudiológica”, acrescenta o coordenador do Núcleo
Avançado da USP. Segundo
ele, a integração entre a comunidade e a Universidade
ensinou um pouco mais de cidadania aos produtores rurais: “Eles
se organizaram e, de forma civilizada, estão procurando alternativas
para viver melhor diante da omissão do poder público”.
De
julho de 2002 até hoje, foram feitas, ao todo, três
visitas de alunos de graduação e pós-graduação
da FOB a Monte Negro. Nesse período, foi criado um Centro
de Saúde Bucal devidamente montado, com cinco equipos odontológicos,
e um Centro de Saúde Fonoaudiológico, em fase de estruturação.
Ambos ficam num terreno doado à USP em regime de comodato,
no centro da cidade. “Em um ano e meio de cooperação
entre o ICB e a FOB, totalizaram-se mais de 7 mil procedimentos
odontológicos e 2 mil fonoaudiológicos”, informa
Aranha Camargo. Médico do Departamento de Parasitologia do
ICB, o coordenador também tem uma história de determinação
em favor da saúde pública de um Brasil que, segundo
ele, muitos estudantes não conhecem. “Além de
apresentar esse Brasil ao nosso aluno, a extensão universitária
faz a academia cumprir seu papel como um todo: docência, pesquisa
e assistência”, argumenta. “Dessas visitas de
alunos e professores saíram várias idéias para
serem desenvolvidas em nível de pós-graduação,
tanto em fono como em odonto”, diz Aranha Camargo.
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A
equipe da Faculdade de Odontologia de Bauru realizou mais
de 4 mil procedimentos odontológicos e fonoaudiológicos
em milhares de pessoas humildes de Rondônia |
Linguagem
oral e escrita – Na área de fonoaudiologia, o objetivo
específico do trabalho, segundo a fonoaudióloga Magali
de Lourdes Caldana, é implantar um programa de prevenção,
principalmente para escolares da zona urbana e rural. “Pretendemos
desenvolver programas educacionais com os professores, os alunos
e seus familiares”, explica. “Vamos desenvolver projetos
de pesquisa sobre a otimização do desenvolvimento
da linguagem oral e escrita e identificação precoce
da deficiência auditiva em crianças na pré-escola.”
A fonoaudióloga
também ressalta a oportunidade de desenvolver, treinar e
aperfeiçoar a prática de alunos de graduação
e de pós-graduação com pesquisas de campo sobre
linguagem oral e escrita, voz, motricidade oral e audição.
“Além do atendimento geral à população,
vamos nos concentrar em trabalhos preventivos, visando às
escolas públicas municipais da zona urbana e rural de Monte
Negro”, explica Magali.
Em
odontologia, os profissionais atuam em três frentes: no centro
odontológico, com atendimentos oferecidos duas semanas por
mês, nas escolas públicas e nas linhas rurais, com
equipes móveis e locais improvisados. Aranha Camargo lembra,
porém, que as ações são realizadas em
regime de mutirão e esse tipo de atendimento permite apenas
tratar casos urgentes. “Seria necessário um atendimento
continuado, coisa que estamos pleiteando”, diz. “Após
o atendimento de toda a população, com ações
preventivas com as crianças, restarão ainda os ‘banguelas’,
ou seja, os indivíduos que necessitam de prótese.
Resolve-se um problema e depara-se com outro.”
Segundo
o professor Bastos, nessas primeiras viagens foi feito um diagnóstico
da situação da saúde bucal de uma amostra representativa
da população de Monte Negro, com ações
curativas odontológicas. “A partir de 2004, poderemos
levar projetos de pesquisa mais específicos”, informa.
Uma
das pesquisas que será desenvolvida em 2004, naquela região,
visa ao diagnóstico audiológico e a programas de reabilitação
para usuários de ototóxicos, a exemplo do quinino
– medicamento severo utilizado para combater a malária.
Outro trabalho pesquisará a ação de um medicamento
que combate otite média e cárie dentária.
A próxima
viagem? Em janeiro de 2004, cerca de 30 profissionais, entre dentistas,
fonoaudiólogos, médicos e biólogos, vão
percorrer o selvagem rio Machado – um dos principais afluentes
do Madeira –, numa expedição científica
cujo objetivo é levar saúde pública à
população ribeirinha e estudar a malária que
a acomete com severidade.
Quinze
dias de trabalho
No
período de 8 a 22 de julho passado, a equipe de pesquisadores
e estudantes da USP realizou as seguintes atividades:
•
atendeu 986 pacientes na área de odontologia e 874
pacientes na área de fonoaudiologia;
•
realizou 2.234 procedimentos odontológicos (áreas
de dentística, periodontia, cirurgia e prevenção),
considerando atendimentos realizados na clínica odontológica,
nas escolas, nas creches e nas linhas rurais;
•
Fez 1.880 procedimentos fonoaudiológicos (linguagem
oral e escrita, audiologia e motricidade oral);
•
ofereceu aulas práticas e curso para auxiliares, abordando
temas como introdução à odontologia,
noções básicas de biossegurança,
introdução à anatomia dentária,
noções básicas sobre instrumental odontológico
e manipulação de materiais dentários.
•
Palestras para 21 professores da rede pública municipal
e estadual, enfocando saúde
bucal e saúde fonoaudiológica do escolar.
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