...não
consigo lembrar-me de qualquer delito, por menor que seja,
do qual possa ser censurado. Mas até isso é
de pouca importância; a verdadeira pergunta é:
quem me acusa? Qual a autoridade que instaurou este processo?
Os senhores são representantes da lei? As
perguntas são algumas das primeiras do personagem Joseph
K., criado por Franz Kafka, no início do livro O processo.
K. acorda no dia de seu aniversário de 30 anos com
uma ordem de prisão sem explicação lógica.
Em nenhum momento ele foge, mas resigna-se a tentar compreender
de que foi acusado, esperando pelos acontecimentos futuros,
pelos próximos trâmites do processo. Também
em nenhum momento ele chega a saber o crime que teria cometido.
Mas permanece numa busca em direção ao abismo,
guiado pelo sentimento de que alguma coisa deve ter feito.
É levado pela culpa que carrega em suas costas. É
desse sentimento que parte o espetáculo de dança
O processo, o segundo em que o grupo de dança Far 15
se inspira em Kafka.
Não
é a primeira vez que o livro O processo é transposto
para outras artes além da literatura. Não raramente
as adaptações se restringem à crítica
à burocracia. O grupo, no entanto, movimentou-se por
um rumo diferente nesta coreografia assinada por Sandro Borelli.
Direcionou sua dança para traduzir não o livro,
mas o sentimento de culpa, que Kafka analisa não só
nessa obra. “Sandro (Borelli) sempre trabalhou o universo
de angústia, opressão, do personagem solitário.
A obra de Kafka se encaixou muito bem como inspiração”,
conta Sônia Soares, diretora geral do Far 15 e dançarina
que representa a figura da culpa.
O
corpo de Sônia passa, desliza e pesa sobre os outros
que integram o elenco. “É o fardo que todos carregam,
sem conseguir pegá-lo”, explica. Os outros bailarinos
representam o personagem Joseph K., visto por vários
ângulos, como se fossem espelhos um do outro. Inclusive
o “homem da lei” é envolvido pelo processo.
Todos vestidos com os ternos pretos a que Kafka constantemente
se refere, num figurino desenhado por Marcelo Quadros. Participa
na iluminação Cibele Forjaz, que antes de tornar-se
uma consagrada diretora teatral, fez carreira como iluminadora.
“Quis colocar uma fonte única de luz, de interrogatório.
Uma luz que pudesse seguir mais a justiça do que o
Joseph K.”, explica ela.
Perguntas
sem resposta – O absurdo tão bem retratado nas
palavras do escritor checo é traduzido em corpos que
dançam e representam. São sensações
transmitidas através de movimentos em vez das palavras.
Palavras, aliás, que não conseguem sair. Porque
é proibido a K. falar. Porque o que ele diz, os outros
não podem escutar. E se podem, não entendem.
Enquanto passam pelo “processo” no espetáculo,
os personagens sussurram palavras, muitas vezes incompreendidas
pelo público, retiradas de livros de Kafka. “K.
nunca conseguia ser entendido e ouvido”, explica Sônia
se referindo às passagens em que os dançarinos
falam um texto em voz baixa, que sai “da traquéia”,
conforme insiste o coreógrafo e diretor artístico
Sandro Borelli com o elenco, do qual ele também participa.
Sônia
acrescenta a hipótese de que o texto represente algo
que não pode ser pronunciado, como um segredo, permanecendo
entre as pergunta sem respostas de Kafka. Que não se
colocam apenas na voz quase silenciosa de K., mas na de todos
os homens. É por isso que no espetáculo o público
também se torna parte dele. “É como um
jogo de espelhos, você se vê no personagem que
está no palco”, compara Borelli, lembrando ainda
o momento em que as pessoas acordam e, diante do espelho,
refletem sobre o que fizeram ou não. É por isso
que a platéia pode sentir-se convidada a enfrentar
o processo e a envolver-se nos movimentos dos dançarinos.
Mais um K. que não consegue abrir a porta para além
do abismo e do absurdo. Mais um fantoche do mundo.
O
espetáculo O processo está em cartaz até
7 de dezembro, às sextas e sábados, às
21h, e aos domingos, às 20h. No novo espaço
cultural da cidade, Viga Espaço Cênico, localizado
à r. Capote Valente, 1.323, Pinheiros, tel. 3801-1843.
Ingressos: R$ 15,00.
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