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O golpe de 1964 pôs fim ao projeto do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), fundamentado no segundo período do presidente Getúlio Vargas, que pretendia ampliar a participação popular na política e na economia; 40 anos depois, o projeto do PT (Partido dos Trabalhadores), que tem como característica fundamental o compromisso social, corre o mesmo risco, não mais ameaçado pelos militares, mas por gravíssimas denúncias de corrupção e pelo abandono de sua plataforma política, montada a duras penas durante 20 anos.

Escândalos mal investigados atingem o coração do poder, enquanto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva faz alianças estranhas internamente e se alia ao grande capital internacional. “Aquilo que a gente não imaginava acontecer está acontecendo”, analisa a professora Maria Aparecida de Aquino, da USP, especialista em História Social, recomendando investigar seriamente todas as denúncias até chegar à verdade e, se for necessário, cortar na carne mesmo que estejam envolvidas figuras importantes do partido e do governo.

De 24 a 27 de agosto, Maria Aparecida e outros professores do Departamento de História e do Núcleo de Estudos da Violência participam de seminário que vai analisar o Brasil depois do golpe militar. Os dois primeiros dias serão na Unicamp, os demais, na USP.

O que seria

Interrompendo participação em ensaio do Coral da USP, em que canta desde 1999, Maria Aparecida concedeu entrevista ao Jornal da USP. Ela tenta imaginar como seria o País se o processo político da época do presidente João Goulart não tivesse sido interrompido. Ao contrário da opinião daqueles que temiam a implantação do comunismo, do socialismo ou de uma república sindicalista – justificativa dos militares da época para o “contragolpe” –, a professora não acredita nisso. Não havia intenção de dar golpe, interromper o processo eleitoral nem fazer do presidente eleito um ditador. São acusações infundadas para justificar a medida golpista. É certo que a esquerda tinha muita força, com o PTB no governo e o Partido Comunista Brasileiro muito próximo dele, ocupando cargos importantes no segundo e no terceiro escalões da administração pública. Se o País prosseguisse com o governo e as reformas de João Goulart, certamente haveria nos anos seguintes eleições livres e maior participação popular nas decisões políticas e econômicas.

A historiadora social diz que detesta ouvir o rótulo de populista atribuído a Goulart e outras lideranças da época, por entender que conceitos como esse nada explicam. Em sua opinião, não haveria nem comunismo nem socialismo; o Brasil tem uma configuração, inclusive geográfica, com diversidade cultural tão ampla que seria quase impossível fazer aqui o que Fidel Castro fez na ilha de Cuba.

O que havia dos anos 50 até o final da década de 60 era uma explosão, uma revolução cultural profunda, e isso foi interrompido pelo golpe de 1964, com o aniquilamento de lideranças. Que líderes foram perseguidos? A professora enumera: primeiro, o pessoal do PTB comprometido com o governo; depois, os militantes do PCB com participação, ainda que indireta, na administração pública; os militares que tinham pensamento divergente do seu grupo; e o movimento sindical, duramente atingido. Instala-se em seguida uma fase de relativo alívio, para a repressão voltar com toda a força a partir de 1968, agora contra aqueles que já não acreditam em possibilidade de resistência pacífica e apostam na luta armada. Quem? Segundo Maria Aparecida, os velhos comunistas dissidentes do PCB (que não apóia a luta armada), militantes de outros grupos clandestinos e os militares nacionalistas que se aliaram a Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul, cunhado de João Goulart e, nessa época, no exílio.

Mas o grosso dos que vão comandar a resistência armada é composto por estudantes secundaristas e universitários. Nasce assim uma nova liderança, liderança que, embora contida pela repressão, sobreviveu e atualmente comanda a política nacional. Parte dela esteve no poder com Fernando Henrique Cardoso, a exemplo de Pedro Malan (Fazenda), José Serra (Saúde) e Sérgio Mota (Comunicações), que pertenciam à AP (Ação Popular), um grupo clandestino que em certo momento também optou pela luta armada. Também o governo Lula abriga pessoas que pegaram em armas, foram torturadas e banidas do País. “A interrupção provocada pelo golpe de 1964 adia o projeto de uma liderança nascente. Esse projeto é o mesmo que hoje está no poder”, resume a historiadora.
Outra questão, bem complexa, é a da Igreja Católica. Se tomada como cúpula, antes de 1964 já está na conspiração e apóia o golpe. Mas, assim que o novo regime mostra a verdadeira cara, boa parte da Igreja acaba se desvinculando dele, a fim de não pactuar com os desmandos dos militares e com o cerceamento das liberdades democráticas. A isso deve-se somar a gigantesca revolução que então se operava na própria Igreja, graças à eleição do papa João XXIII e ao Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, por ele convocado.

Define-se então na Igreja latino-americana a “opção pelos pobres” e em 1968 realizam-se reuniões de bispos e teólogos em Medelin (Colômbia) e Puebla (México) para definir as diretrizes para a Teologia da Libertação.

No caso de São Paulo, tiveram papel político importante os dominicanos, não propriamente a ordem, mas os frades do convento de Perdizes, um grupo de jovens que iniciaram a resistência ainda quando integravam a JUC (Juventude Universitária Católica), a JEC (Juventude Estudantil Católica) ou a JOC (Juventude Operária Católica). O grupo dará apoio e cobertura a algumas ações clandestinas, indicando rotas de fuga para quem corria risco de tortura ou morte. Os dominicanos estiveram especialmente ligados ao antigo deputado do PC, eleito em 1946, Carlos Marighela, que em 1967 rompe com o Partido Comunista e funda a ALN (Aliança Libertadora Nacional), estimulando seus seguidores a pegar em armas contra os militares. Mais tarde, Marighela é assassinado numa emboscada.

No projeto Brasil Nunca Mais, de 1985, conta-se a história da repressão aos dominicanos, entre outros, Frei Beto, agora assessor direto do presidente Lula, e Frei Tito de Alencar Melo. De acordo com Maria Aparecida, quando saiam do Doi-Codi (prisão do Exército) ou do Dops (Polícia Civil), os presos respiravam aliviados, porque iam para o Presídio Tiradentes, já contando com assistência jurídica e da família. Assim aconteceu com Frei Tito, mas seu azar foi ter no delegado Sérgio Paranhos Fleury, “de triste memória”, um inimigo pessoal, que o retirou do presídio e o submeteu a brutais sessões de tortura por dias seguidos. Depois, o frade foi trocado pelo embaixador suíço no Brasil Giovani Enrico Búcker, que tinha sido seqüestrado pela guerrilha, e exilado na França. “Destruído por dentro”, de acordo com seus amigos, acabou se suicidando em Lyon.

Como é

“Para a minha geração, tudo o que a gente queria e nem ousava sonhar aconteceu agora”, lembra Maria Aparecida, referindo-se à eleição de Lula para presidente da República.

Isso depois de um longo processo que incluiu a luta por eleições diretas, afastamento do presidente Fernando Collor de Mello por corrupção e oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso. O PT chega ao poder como partido diferente dos outros, que sempre primou pela defesa do direito de cada um de expressar suas idéias. Infelizmente, decepciona-se a historiadora, “no fim do primeiro e quase metade do segundo ano do mandato, aquilo que a gente nunca imaginaria acontecer vem acontecendo”. E o que vem acontecendo? “O Partido dos Trabalhadores, para conseguir governar, esquece o seu programa e faz aliança com o grande capital internacional. Não adianta tentar mudar os dados: 2 + 2 são 4 e isso fecha a questão. Não há possibilidade de um país como o Brasil, na situação catastrófica em que nos encontramos, mudar esse quadro e fazer o crescimento pelo qual todos esperam se continuar pagando os juros extorsivos da dívida financeira. Ou negocia em outras bases com os organismos internacionais, especialmente o FMI, ou toda a sua riqueza será sempre destinada ao pagamento da dívida.” Nesse ponto, a professora se lembra de outro momento histórico muito difícil, o da derrocada da Bolsa de Valores em 1929, nos Estados Unidos.

Só havia um jeito de enfrentar e vencer a Grande Depressão e o presidente Delano Roosevelt não hesitou, determinando investimentos pesados em certos setores que promoviam o consumo e o emprego. Assim nos Estados Unidos como no Brasil; aqui, observa a professora, há gigantesco déficit habitacional e a construção civil é um setor ideal para criar empregos. Para isso necessita-se de muito capital, que apenas o governo possui e pode investir.

Em lugar disso, o que faz o governo Lula?, pergunta Maria Aparecida. Uma reforma da Previdência em que os funcionários públicos são sempre chamados de privilegiados e têm retirados os seus direitos, sem que se mexa em nada na vida “desgraçada” dos funcionários das empresas privadas quando se aposentarem. “Isso não é compromisso social. A única coisa que distingue do projeto elitista de 1964 o PT e os velhos homens que pegaram em armas quando jovens, há 30 anos, é o fato de a proposta petista ter compromisso social. No entanto, em nome de uma série de questões, o governo acaba fazendo alianças que descaracterizam profundamente o projeto original. De novo vamos morrer na praia?” Maria Aparecida, que fez Faculdade de Música e, além de cantar, toca acordeão e não perde a esperança de tocar piano (projeto adiado porque na juventude não tinha dinheiro para comprar um), exercita a paciência e espera por tempos mais lúcidos. Para ela, a luzinha brilha no fim do túnel em que Lula e Néstor Kirchner, presidente da Argentina, confabulam sobre estratégia conjunta para enfrentar o FMI. Todos os credores deveriam se reunir e falar a mesma língua, aconselha a historiadora. É fácil ameaçar a Argentina à beira do caos; é fácil ameaçar o Brasil endividado até o pescoço e com uma população em estado de miserabilidade; mas não é tão fácil assim ameaçar a todos os países endividados quando estão unidos. “Não se trata de declarar a moratória, mas de acertar o pagamento da dívida em outras bases. O governo brasileiro já perdeu muito tempo e não adianta fazer projetos para daqui a 20 anos, como propõe o PSDB, ou de oito anos, como fazem petistas, tendo como favas contadas a reeleição de Lula. Um ano em um mandato de quatro é muito tempo perdido; tem que se buscar outro caminho.”

O projeto econômico dos militares, ou a sua bolha de crescimento (de 1964 a 1973), coincidiu com fatores internos e externos excepcionais, por isso ia dando certo, principalmente quando sob o comando de Roberto Campos, até que acabou na crise do petróleo, quando os pequenos e grandes produtores se uniram e ditaram as regras do jogo. O projeto getulista findou com o golpe, o dos militares acabou em 1973 e o do PT vai sendo lentamente destruído, juntamente com a perda dos pequenos direitos sociais antes conquistados.

 
Maria Aparecida: reflexões sobre o País

Como será

Pelo menos numa área o governo Lula vai bem, na interpretação de Maria Aparecida: nas relações internacionais. Tudo o que acontece no mundo afeta o Brasil. E acontece o seguinte: um país (os Estados Unidos) deixou sem referência todos os países do mundo ao anunciar uma guerra preventiva (contra o Iraque). Isso é inadmissível, considera a professora.

Em compensação, na Espanha, a chegada de Zapatero ao poder é um fato alentador, do mesmo modo que o fato de a União Européia vir reunindo os seus líderes para pensar não apenas um projeto de segurança, mas de redistribuição mais justa da riqueza. Maria Aparecida pergunta: como as pessoas, nos Estados Unidos ou na Espanha, podem ficar embasbacadas diante das bombas terroristas? Um senhor perguntava em Madri: “O que querem de nós?”, e a historiadora da USP responde: “Nós quem, cara-pálida? Não temos nada com esse nós; não comemos de seu pão. Como viver em paz numa ilha de instabilidade? Falar em segurança para países onde ela não existe, como em Ruanda, na África, onde há pouco tempo um milhão de pessoas morreram massacradas, não faz diferença nem muda a situação”. Então, a vitória dos socialistas na Espanha e a possível derrota de George W. Bush nos Estados Unidos fazem diferença, sim, porque trazem esperança de um pouco de lucidez dos países ricos, “e lucidez é segurança com distribuição de renda”.

A historiadora considera que o acontecido na Espanha é quase tão importante quanto o 11 de Setembro em Nova York. “Não é pouca coisa o governo perder as eleições em três dias” – o prazo entre os atentados aos trens e as eleições gerais espanholas. Uma imagem não sai de seus olhos: a dos espanhóis gritando na véspera do pleito: “Queremos a verdade até amanhã” (a verdade sobre os reais autores dos atentados).

No contexto internacional, o Brasil não só pode, como está fazendo a sua parte, segundo Maria Aparecida. Para quem vive enterrado na dívida, não é fácil dizer não à guerra no Iraque, dizer não ao golpe na Venezuela contra um governo legitimamente eleito (sem entrar no mérito pessoal de Hugo Chávez), dizer não à tentativa de destruir a ONU. E a diplomacia brasileira vem dizendo isso.

É verdade também que as denúncias de corrupção interna repercutem negativamente no cenário mundial e enfraquecem o poder político do presidente Lula. Por isso mesmo, segundo a pesquisadora, é preciso investigar tudo a fundo, com todos os meios necessários. Não tomar nenhuma medida, ou tomar medidas erradas, é absolutamente contraditório com a trajetória do PT e do presidente e, sobretudo, com tudo aquilo que fez com que o partido se distinguisse dos demais e chegasse ao poder elegendo um operário. “Quando a população diz ‘chega de conversa mole, vamos mudar’, isso fica conspurcado se não se mantiver a mesma coerência de tantos anos de luta”, diz Maria Aparecida, para concluir: “O abandono da plataforma do partido é visível a qualquer um. Se o governo do PT não souber agir, poderá perder o capital político muito rapidamente; não só pelo desgaste natural que o poder acarreta, como também pela forma com que é exercido”.
Depois disso, Maria Aparecida de Aquino voltou ao Coralusp: “Porque cantar é importante na minha vida”.


Linha do tempo

  De 6/9/1961 a 1/4/1964

Durante a presidência de João Goulart o Brasil passa por turbulência política. No dia 31 de março Goulart convoca o povo para o “Comício da Central” e anuncia seu Programa de Reformas de Base. Eclosão do golpe militar. O presidente Goulart deixa o cargo, substituído pelo general Castello Branco.
  De 15/41964 a 15/3/1967

Castello Branco chega ao governo com a deposição de João Goulart. Inicia-se a ditadura militar no Brasil. Nesse período são extintos os partidos políticos, criando-se o bipartidarismo, com Arena e MDB. Estudantes protestam contra o MEC e é editado o primeiro Ato Institucional e promulgada a Lei de Segurança Nacional.
  De 15/3/1967 a 31/8/1969

Artur da Costa e Silva assume o poder. Multiplicam-se as organizações guerrilheiras que pretendem fazer luta armada no Brasil. Costa e Silva, para fortalecer o Executivo, decreta outros Atos Institucionais, coroada com o AI-5, em dezembro de 1968. É afastado devido a uma doença e uma junta militar assume o poder.
  De 30/10/1969 a 15/3/1974

O período dos anos mais duros da ditadura inicia com a eleição indireta do general Emílio Garrastazzu Médici para a Presidência da República. É criado o DOI-Codi. São feitas campanhas para combater a guerrilha do Araguaia. A Transamazônica é inaugurada e o Tratado de Itaipu, assinado.
  De 15/3/1974 a 15/3/1979

O general Ernesto Geisel toma posse na presidência. Durante seu governo ocorrem várias greves, morre o jornalista Vladimir Herzog no quartel-general do II Exército, em São Paulo, é revogado o AI-5. O governo anuncia ministérios para as áreas sociais, fecha o Congresso Nacional e cria “senadores biônicos”.
  De 15/3/1979 a 15/3/1985

O presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo continua o processo de abertura do regime político, período em que se assiste à reforma partidária: do bipartidarismo sai a maioria dos atuais partidos políticos e à Lei da Anistia, em agosto de 1979. Surgem os movimentos pela Tortura Nunca mais e pelas Diretas Já. Pede para ser esquecido.


ECA mostra Arquivo
Miroel Silveira

A fotografia pode ser um poderoso meio de denúncia em tempo de repressão política. No entanto, as imagens documentais referentes ao período militar são raras, ou por terem sido confiscadas ou porque não foram publicadas, uma vez que os jornais e demais meios de comunicação escritos eram submetidos à censura ou à autocensura. O que existe em maior número são imagens simbólicas, com valor universal, criadas por artistas ou fotógrafos profissionais que conseguiam driblar a censura. Na época, seria impossível publicar uma foto de um prisioneiro sendo torturado em pau-de-arara, mas “fotografias de arte” simbolizando a violência passavam despercebidas pelos censores. Um exemplo disso são as fotos de Boris Kossoy (acima), professor de História e Estética da Fotografia do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Uma delas, de 1970, mostra um maestro paramentado regendo no cemitério. “Para bom entendedor funciona”, diz o fotógrafo.

Kossoy falará sobre o tema em palestra nesta quarta-feira, dia 31, às 17 horas, na ECA, durante a abertura da exposição do Arquivo Miroel Silveira. O professor apresentará as imagens que compõem o arquivo. Na mesma ocasião, a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da USP, fará palestra sobre as pesquisas que realiza nos arquivos do extinto Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social). O evento terá ainda a participação da professora Cristina Costa, da ECA, que falará sobre o projeto A Censura em Cena. Esse projeto prevê a catalogação e classificação de todo o material coletado pelo professor Miroel Silveira, formado por processos de censura de peças de teatro entre 1938 e 1968. Até agora, apenas 12% do material foi catalogado, correspondendo aos anos 40 e ao período da ditadura Vargas. “O arquivo representa o resgate da história do teatro paulista, porque os processos contêm os textos originais de peças que, de outra forma, estariam perdidos”, afirma Cristina Costa. A entrada para as palestras e para a exposição é gratuita.

Mais informações
podem ser obtidas pelo telefone 3091-4066.

 

 




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