PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  
   
 

A base de lectina, encontrada na semente da jaca, uma pomada desenvolvida na USP estimula a proliferação celular e a produção de colágeno, ajudando na cicatrização de queimaduras de até terceiro grau e evitando a necrose do tecido. O agente ativo do medicamento é a lectina KM+. A descoberta, o isolamento e o uso medicamentoso dessa lectina foram feitos pela equipe da professora Maria Cristina Roque Barreira, do Departamento de Biologia Celular e Molecular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e também contou com a participação da professora Maria Helena Goldman, do Laboratório de Biologia Molecular de Plantas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.

Maria Cristina, uma das coordenadoras da pesquisa, diz que a obtenção da KM+ viabilizou-se economicamente graças a uma técnica chamada “expressão heteróloga de proteína”, que consiste em inserir o gene responsável pela produção da lectina do DNA da jaca numa levedura. Assim, o microorganismo funciona como uma espécie de “fábrica” da substância desejada. Esse processo foi desenvolvido pela professora Maria Helena, biologista molecular de plantas, que conseguiu pegar o segmento do gene que codifica a lectina na planta e transferir para a levedura ou bactéria, a qual passou a funcionar como um gene, produzindo e secretando a proteína idêntica à da planta. “Depois que testamos e vimos que tinha o mesmo efeito da lectina da planta, abriu-se a perspectiva de ser um produto com aplicação farmacêutica em escala industrial”, conta Maria Cristina.

Com o apoio da Fapesp para o financiamento e registro das patentes, o estudo contou com testes realizados em ratos com queimaduras em vários graus, comparando-se a resposta da aplicação de três tipos de pomada: uma com a KM+, uma com outra lectina da jaca, a jacalina (utilizada como reagente bioquímico), e a terceira sem nenhuma lectina. Os resultados mostraram que a KM+ acelerou a regeneração da pele lesada e evitou a necrose local.

 
A professora Maria Cristina e a jaca, fonte de lectina que pode ser usada contra queimaduras: "A reparação do tecido celular se faz muito rapidamente"

Grande surpresa

Maria Cristina explica que a semente da jaca – assim como a de muitos vegetais – contém uma classe especial de proteínas, a lectina, que é o objeto de estudo do Laboratório de Imunoquímica e Glicobiologia da FMRP, do qual ela é coordenadora. “O nosso objetivo, neste laboratório, é o estudo da interação entre as lectinas e os açúcares que revestem a superfície da célula. Demos especial atenção a algumas lectinas presentes na semente da jaca.”

Com dez anos de pesquisa, o resultado mostrou-se bastante produtivo. A lectina KM+, além da propriedade de induzir a migração de neutrófilos – células de defesa presentes no sangue –, também tem efeito na reparação de tecidos. Os estudos, segundo Maria Cristina, eram feitos em modelos de queimadura, provocando uma lesão no animal e tratando com a aplicação tópica da lectina. “Tivemos uma grande surpresa. A reparação tecidual se fez muito rapidamente, logo nas primeiras horas, mesmo sendo queimaduras profundas, denominadas de terceiro grau.”

Em todos eles o efeito da lectina KM+ mostrou-se positivo, evitou a necrose – morte do tecido – e provocou a substituição de um tecido lesado por um normal, funcional. “Verificamos que o animal logo recupera a pelificação local, há uma regeneração da pele em curto espaço de tempo. O efeito da lectina é muito acentuado logo nas primeiras horas”, explica Maria Cristina.

Existem duas formas de se regenerar o tecido: uma é restituindo o tecido lesado por tecido normal. O que sobrou de célula boa e viva vai proliferar e fazer com que o tecido normal substitua o lesado. A outra forma de regeneração é substituir o tecido lesado por fibrose, que é aquilo que conhecemos por cicatriz – que, embora recupere o local lesado funcionalmente, não é muito eficiente. Dependendo do grau da queimadura a pessoa pode ficar com limitação de movimento. “O maior trunfo da lectina KM+”, explica Maria Cristina, “é favorecer a regeneração, que é feita pela substituição do tecido lesado por tecido normal. Nasce pêlo normalmente e não há uma morte expressiva de células, como ocorreu nos animais que não foram tratados com o mesmo medicamento”.

Com patente já depositada no Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), a pomada de lectina de jaca, para se tornar um produto de uso farmacêutico, precisa ainda passar por testes experimentais em indivíduos voluntários e depois em pacientes. Segundo Maria Cristina, agora cabe à Fapesp e à USP, entidades titulares da patente, estabelecer o acordo com a indústria farmacêutica, que cuidará dos protocolos e dos ensaios clínicos. “Acredito que daqui a cinco anos teremos a produção da pomada em escala industrial”, observa.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, enquanto nos Estados Unidos há 2 milhões de casos registrados de indivíduos que sofrem queimaduras por ano, no Brasil apenas 26 mil são notificados. “Acredita-se que a causa do baixo número de casos brasileiros seja por causa da subnotificação, uma vez que este é um dos casos mais importantes de acidente doméstico”, explica Maria Cristina.

A professora lembra que o estudo também contou com a participação do docente da FMRP Marcelo Dias Baruffi e do neurocirurgião Ricardo dos Santos de Oliveira. Ambos, no início da pesquisa, em 1994, eram alunos de pós-graduação e iniciação científica, respectivamente. “Foram os dois alunos curiosos e entusiasmados que arriscaram um teste num final de semana em dois grupos de animais. Para minha surpresa, no domingo pela manhã, eles ligaram em casa eufóricos dizendo que tinha acontecido uma coisa incrível com os ratos tratados com a pomada de lectina. Saí correndo para o laboratório com meus filhos e a máquina fotográfica. Foi emocionante”, conta Maria Cristina.


 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]